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sexta-feira, 30 de junho de 2023

Anotações sobre a estrutura do abismo*












"O homem articula-se até o fundo de si mesmo em linguagens distintas.”

                                                  Roland Barthes

É incomum a busca para alguma tradução da linguagem da loucura. Na sua relação de aparente sem nexo com a realidade, seu saber delirante costuma ser distanciado da rotina dos convívios. No caso do diagnóstico das práticas da tradição, a vida (do louco) é colocada num parêntesis, pela fundamentação a propor tratamento aos seus refúgios de abstração.

Qualificar diálogos com a natureza das desestruturas reivindica plasticidade e uma aptidão aprendiz fora do normal. Sob incerto aspecto, se trata de transitar por onde a vida acontece, mesmo quando em contrastes com o mundo conhecido.

Ao contradizer seu passado recente, constitui uma fonte inesgotável de surpresas, através das evasivas ao ser singular. Longe de uma faceta desligada da realidade, se apresenta, também, na descontinuidade das coisas inteligíveis. Para domesticar as transgressões à norma social, a internação involuntária surge recheada de fundamentação e rigor tecnicista.

O sujeito em vias de mudança expressa desconformidade com os moldes até então conhecidos da convivência social. A partir de agora um mundo estranho lhe aparece diante da janela. A família, o poder judiciário e a igreja, muitas vezes, costumam ter cumplicidade (para exclusão) entre si. O exílio partilhante surge como estratégia de fuga em abrigos de introspecção radical.

Fenômeno complexo e de difícil entendimento, se distanciado da representação da pessoa. A subjetividade da estrutura caótica não se mostra a qualquer um. Suas narrativas surgem estilhaçadas na incompletude das ideias e jeitos de ser.

Gaston Bachelard poetiza seu dizer: “As ilusões possuem uma importância decisiva, porque a vida do espírito é ilusão antes de ser pensamento.” (A terra e os devaneios do repouso, 2003).

Nem sempre é possível realizar alguma forma de conversação com a subjetividade delirante. Ela possui rituais muito íntimos de escolha e expressividade, ao se distanciar da superfície dos convívios, suas palavras podem se mostrar semiose inútil. Nuança indefinida a multiplicar-se em regras do acaso. Estranha desordem nos simulacros de reinvenção.

A pessoa existe na contrariedade das manifestações de sentido único. Ao tornar-se uma perspectiva acreditável, aproxima contextos de aspecto contraditório, sem desmerecer vivências de interioridade. Aqui se trata de acolher a matéria-prima numa fonte que se renova com as crises.

Interferências mútuas descobrem algo mais até então desprezado como insignificante. As lógicas da insensatez permitem transitar por atmosferas de irrealidade. Intercâmbio animado pela inconformidade de ser apenas uma coisa ou outra. Desequilíbrio ao pensar impensável se legitimar na obra de arte da singularidade incompreendida.

Heidegger ensina: “(...) ser o dizer projectante aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo.” (A caminho da linguagem, 2003).

A parcialidade cotidiana esboça esconderijos e preferências ao devaneio pessoal. Para melhor entender os discursos de incompletude, é impreciso descortinar atalhos de imperfeição e desnudar exílios escondidos no próprio olhar. Personagens fantásticos habitam ruelas e guetos clandestinos as unanimidades.

Os manuscritos do desatino se protegem entrelinhas de incompreensão. Persistem anônimos à normalidade, embora tenham desenvoltura nos roteiros de loucura e normalidade. Apelos extraordinários insinuam algo mais, ao reinventar normas para o absurdo das palavras.

As inquietudes do delírio apreciam esconderijos de raridade. Ensimesmadas e sem vocabulário conhecido para se expressar, escolhem um bairro existencial distante para morar. In-tradução de linguagem própria na distância dos demais, onde o tempo sem amanhã rascunha indescritíveis presentes. Abismos significativos desarticulam as fronteiras bem limitadas pelas epistemologias da tradição. A tradução dos asilos reinventa-se na impermanência de um agora.

Schopenhauer indica: “(...) ter encontrado em manicômios sujeitos com inegáveis indícios de disposições geniais que, devido à raridade proporcional da loucura, mais até que o gênio, não podem ser atribuídas ao acaso, mas justamente confirmam o que sempre se observou e explicou – que o gênio de algum lado faz fronteira com a loucura, sim, com facilidade a ultrapassa.” (O mundo como vontade e representação, 2001).

A proliferação de novas ideias antecipa-se no dizer inter-dito dos signos estapafúrdios. Ponto de vista impensável não fora sua identificação na informalidade criativa das interseções. Minúcias de imperfeição sugerem roteiros de novidade. A realidade assim disposta se esparrama na embriaguez mal disfarçada da ilusão. Complexidade inspirada na vertigem sensorial a desestabilizar o chão sob seus pés.

O sujeito, antes desses instantes de travessia e refúgio para si mesmo, muitas vezes tenta expressar seus desatinos. No entanto, tropeça na escolha das palavras e atitudes, as quais podem soar como ameaça ininteligível. Na perplexidade desses espaços imensos, a pessoa se desconstrói em labirintos de abstração. Na inquietude das crises os indícios podem se confundir.

Para Tzvetan Todorov: “(...) o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir: logo, a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao passado.” (Introdução à literatura fantástica, 2008).  

Lugar privilegiado no esboço entre o tudo e o nada de cada um. Alegorias por onde a vida também se experimenta. O desconcerto originário anuncia a natureza transformadora, mesmo quando inacabada em seus ímpetos. Sua expressividade pode deixar entrever os primórdios de uma ausência.

Nesse sentido, o saber médico tecnicista não sabe a extensão do que ignora. Novos paradigmas apreciam o esconde-esconde das lógicas do desmerecimento. Um ser mestiço chama atenção ao fato do delírio não recusar nada, sequer a medicação que busca destruí-lo, enquanto a normalidade cristaliza práticas de segregação.

Na voz intercalada dos presságios a contradição é prefácio para um dicionário da loucura. Erudição maldita contida nas lógicas do desatino. Relatos das ideias, palavras e sensações até então indescritíveis à luz do dia. Denúncia dos abismos de incompreensão por essas peças de ficção inacabada.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos. Ed. E-Papers/RJ. 2009).

**Instagram: @helio_strassburger 

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