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domingo, 2 de julho de 2023

Um texto absurdo*

"Quando eu morrer, meu chalé cairá comigo, para dar lugar a mais um edifício de apartamentos.”

                                                           Chico Buarque 

Imaginava um rascunho nalgum ponto entre as fronteiras do dizível. Ensaio em que realidade e ficção pudessem repaginar suas diferenças. Espécie de contragolpe na lucidez arrebatadora, a persistir naquilo que se busca esquecer. Tratativas com um quase na subjetividade por onde o dicionário ultrapassa suas origens.

Talvez desenhar a ponte ideal onde os termos do raciocínio bem estruturado pudessem conviver com as contraditórias miragens. Como uma dança fugaz para acordar a racionalidade a cegar o próprio olhar.

Nessa percepção de consciência alterada, os fenômenos seriam reconhecidos por seu apelido. Por esses monólogos sobre a ilusão da realidade e a realidade da ilusão, restaria o viés especulativo de um fim sem começo.

Roupagens estranhas a vagar pela inesperada versão, em que tudo iria parecer inacessível ou fora de lugar. Conexão às ruas pouco antes de ter um nome conhecido. Suas margens e contornos de ótica distorcida atribuem provisórias verdades.

Roland Barthes poetiza os desatinos da escrita: “O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível. O texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação.” (O rumor da língua, 2004).

Mesmo quando se atrapalha aponta contradições à estrutura do dizer, parece tentar descrever o momento em que a exceção inaugura novas regras. O presente multiplica os estranhos sons de travessia.

Uma fenomenologia da linguagem se atreve a relatar eventos extraordinários. Ao fora de si onde nada deveria surgir, a coincidência-intuitiva esparrama deixas para elucidação. Como a luva na parede a acenar para a mão que se foi.

Esse vocabulário celebra o encanto primitivo de uma porta entreaberta. Condição para certezas e dúvidas se encontrarem num closet de difícil acesso, onde as palavras se experimentam, um pouco antes do autor, na sala ao lado, realizar suas escolhas. Nesse exercício a transbordar buscas dalgum sentido, a interseção com os esconderijos da vontade multiplica verdades.

Em Jorge Luis Borges, encontra-se um frágil ponto de apoio: “Hladik preconizava o verso porque ele impede que os espectadores se esqueçam da irrealidade, que é a condição da arte.” (Ficções, 2007).

Um parêntese onde a manifestação narrativa contida no texto, convidasse a decifrar a matéria-prima por entre os dedos de quem escreve. A representação expressiva em devaneios de preparação anunciaria a fragilidade das convicções. Uma simbologia ritual prepara oferendas ao ilegível da voz.  

No laboratório difuso da especulação sem lei, os relatos a confundir o velho e o novo pluralizam o discurso. As transcrições apreciam algo mais as hermenêuticas da releitura. Mesmo o ponto que se quer final desdobra-se noutras interrogações.

A natureza improvável dessas epistemologias elabora arquiteturas em que ser e não ser se conjugam imediatamente. Nesse território sagrado às lógicas do exagero, convivem também as dialéticas do equilíbrio. Um lugar onde o impensável seduz o conceito no qual irá sobreviver.

Interessante notar a eficácia da quimera, como precursora das mensagens de maior alcance. Seu recado parece atravessar a história, como parte de um segredo bem guardado, para ser reconhecido nalguma faceta inesperada.

Djandre Rolim aponta sua estética: “Não pude dispersar os meus deslimites que caíam e refaziam os caminhos de volta a mim: e agora... encontro-me enfermo de sonhos!” (Deslimites da razão, 2010).

Por esses apontamentos de prefácio sem direção, antecipa a inocência do desacordo entre os originais e as derivações. Mesmo depois da revisão, trata de deixar indícios do que teria sido se continuasse esboço.

À investigação pretérita o que aparece é um imenso contraste, num território a preservar gestos sem amanhã, A absurdidade, então, se faz neblina ao olhar de quem procura certezas duradouras. Na incompletude da palavra transgressora, as regras de uma só direção se espalham com a estética das ventanias. Dissipação de alguma duração na descontinuidade a querer ficar.

Menção a insinuar originais no convívio de um agora. Sua lógica insensata e de aspecto delirante evoca utopias esquecidas. Quem sabe o imprevisível refaça conjecturas aos futuros entendimentos. Ao aproximar o espanto inicial com a natureza de sua descrença, a redação sem nexo desencontra-se para ser mensagem. Seu equilíbrio frágil tropeça na vertigem surpreendente dos vislumbres.

Clarice Lispector a desvendar Clarices: “O principal a que eu quero chegar é surpreender-me a mim mesma com o que escrevo. Ser tomada de assalto: estremecer diante do que nunca foi dito por mim.” (Um sopro de vida, 1999).  

Ainda assim, a atração irresistível da página em branco acena uma liberdade que deixa de existir após o primeiro traço. Contraponto das escolhas a delimitar as grades ao seu redor. Frase, parágrafo, ponto e vírgula serviriam para conter, nalgum ponto eficaz da sintaxe, o desvario conceitual a querer significar. Ao fazer referências ao passado, a hermenêutica oferece outras possibilidades à mesma pessoa.

A aventura de viver acontece aquém-além das molduras da eficácia narrativa. Nos roteiros é possível perceber o deslize para transpor a língua dos consensos.

Ao desenhar refúgios entrelinhas de saber excessivo, um velho conhecido se faz estrangeiro à natureza que muda para se manter. Na interrogação das incertezas o silêncio oferece novas versões na transgressão da palavra.

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed. Sulina. 2012.

**No Instagram: @helio_strassburger  

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