"Quando eu morrer, meu chalé cairá comigo, para dar lugar a mais um edifício de apartamentos.”
Chico Buarque
Imaginava um rascunho nalgum
ponto entre as fronteiras do dizível. Ensaio em que realidade e ficção pudessem
repaginar suas diferenças. Espécie de contragolpe na lucidez arrebatadora, a
persistir naquilo que se busca esquecer. Tratativas com um quase na subjetividade
por onde o dicionário ultrapassa suas origens.
Talvez desenhar a ponte ideal
onde os termos do raciocínio bem estruturado pudessem conviver com as
contraditórias miragens. Como uma dança fugaz para acordar a racionalidade a
cegar o próprio olhar.
Nessa percepção de consciência
alterada, os fenômenos seriam reconhecidos por seu apelido. Por esses monólogos
sobre a ilusão da realidade e a realidade da ilusão, restaria o viés
especulativo de um fim sem começo.
Roupagens estranhas a vagar pela
inesperada versão, em que tudo iria parecer inacessível ou fora de lugar.
Conexão às ruas pouco antes de ter um nome conhecido. Suas margens e contornos
de ótica distorcida atribuem provisórias verdades.
Roland Barthes poetiza os desatinos
da escrita: “O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários
sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível. O
texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois,
depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma
disseminação.” (O rumor da língua, 2004).
Mesmo quando se atrapalha aponta
contradições à estrutura do dizer, parece tentar descrever o momento em que a
exceção inaugura novas regras. O presente multiplica os estranhos sons de
travessia.
Uma fenomenologia da linguagem se
atreve a relatar eventos extraordinários. Ao fora de si onde nada deveria
surgir, a coincidência-intuitiva esparrama deixas para elucidação. Como a luva
na parede a acenar para a mão que se foi.
Esse vocabulário celebra o
encanto primitivo de uma porta entreaberta. Condição para certezas e dúvidas se
encontrarem num closet de difícil acesso, onde as palavras se experimentam, um
pouco antes do autor, na sala ao lado, realizar suas escolhas. Nesse exercício
a transbordar buscas dalgum sentido, a interseção com os esconderijos da
vontade multiplica verdades.
Em Jorge Luis Borges, encontra-se
um frágil ponto de apoio: “Hladik preconizava o verso porque ele impede que
os espectadores se esqueçam da irrealidade, que é a condição da arte.”
(Ficções, 2007).
Um parêntese onde a manifestação
narrativa contida no texto, convidasse a decifrar a matéria-prima por entre os
dedos de quem escreve. A representação expressiva em devaneios de preparação
anunciaria a fragilidade das convicções. Uma simbologia ritual prepara
oferendas ao ilegível da voz.
No laboratório difuso da
especulação sem lei, os relatos a confundir o velho e o novo pluralizam o
discurso. As transcrições apreciam algo mais as hermenêuticas da releitura.
Mesmo o ponto que se quer final desdobra-se noutras interrogações.
A natureza improvável dessas
epistemologias elabora arquiteturas em que ser e não ser se conjugam
imediatamente. Nesse território sagrado às lógicas do exagero, convivem também
as dialéticas do equilíbrio. Um lugar onde o impensável seduz o conceito no
qual irá sobreviver.
Interessante notar a eficácia da
quimera, como precursora das mensagens de maior alcance. Seu recado parece
atravessar a história, como parte de um segredo bem guardado, para ser
reconhecido nalguma faceta inesperada.
Djandre Rolim aponta sua
estética: “Não pude dispersar os meus deslimites que caíam e refaziam os
caminhos de volta a mim: e agora... encontro-me enfermo de sonhos!” (Deslimites
da razão, 2010).
Por esses apontamentos de
prefácio sem direção, antecipa a inocência do desacordo entre os originais e as
derivações. Mesmo depois da revisão, trata de deixar indícios do que teria sido
se continuasse esboço.
À investigação pretérita o que
aparece é um imenso contraste, num território a preservar gestos sem amanhã, A
absurdidade, então, se faz neblina ao olhar de quem procura certezas
duradouras. Na incompletude da palavra transgressora, as regras de uma só direção
se espalham com a estética das ventanias. Dissipação de alguma duração na
descontinuidade a querer ficar.
Menção a insinuar originais no
convívio de um agora. Sua lógica insensata e de aspecto delirante evoca utopias
esquecidas. Quem sabe o imprevisível refaça conjecturas aos futuros
entendimentos. Ao aproximar o espanto inicial com a natureza de sua descrença,
a redação sem nexo desencontra-se para ser mensagem. Seu equilíbrio frágil
tropeça na vertigem surpreendente dos vislumbres.
Clarice Lispector a desvendar
Clarices: “O principal a que eu quero chegar é surpreender-me a mim mesma
com o que escrevo. Ser tomada de assalto: estremecer diante do que nunca foi
dito por mim.” (Um sopro de vida, 1999).
Ainda assim, a atração irresistível
da página em branco acena uma liberdade que deixa de existir após o primeiro
traço. Contraponto das escolhas a delimitar as grades ao seu redor. Frase,
parágrafo, ponto e vírgula serviriam para conter, nalgum ponto eficaz da
sintaxe, o desvario conceitual a querer significar. Ao fazer referências ao
passado, a hermenêutica oferece outras possibilidades à mesma pessoa.
A aventura de viver acontece
aquém-além das molduras da eficácia narrativa. Nos roteiros é possível perceber
o deslize para transpor a língua dos consensos.
Ao desenhar refúgios entrelinhas
de saber excessivo, um velho conhecido se faz estrangeiro à natureza que muda
para se manter. Na interrogação das incertezas o silêncio oferece novas versões
na transgressão da palavra.
*Hélio Strassburger in “Pérolas
Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed. Sulina.
2012.
**No Instagram:
@helio_strassburger
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