Conjugar Filosofia e Literatura é um convite para decifrar aspectos da estrutura de pensamento de autores e leitores. Inicialmente pela escolha de obras, bem como dos conteúdos, conjugados por sua representação de mundo. Mais que um tratado de informação dirigida, é um procedimento ao alcance das pessoas, no caso de se indicar um livro, filme, teatro. Algo que possa oferecer pistas ao leitor sobre si mesmo em interseção com a obra.
Talvez promova um diálogo para o
acolhimento de um imenso saber, compartilhado na forma de uma escritura, por
exemplo. Como Jorge Luis Borges, que auxilia a compreensão e o entendimento da
categoria lugar, pelos apontamentos de sua literatura, pela qual se anunciam os
princípios de verdade para sua formação estrutural. Borges traduz: “As ruas
de Buenos Aires são-me já as entranhas da alma.” (Borges, uma biografia,
1999). As palavras revelam, em sua narrativa, a fonte da qual brotaram.
Na mesma direção, quando o autor
busca traduzir aos pais a razão de ter escrito um ensaio sobre o poeta Evaristo
Carriego, considerado ‘menor’ em sua categoria (trabalho com o qual Borges
ganhou um prêmio municipal), e relata: “Carriego foi o homem que descobriu
as possibilidades literárias dos difamados e andrajosos subúrbios da cidade: o
Palermo da minha infância.” (Borges, uma biografia, 1999).
Sendo o mundo vontade e
representação, como ensina Schopenhauer, o autor esboça sua medida de todas as
coisas, na redação de suas memórias.
Outro exemplo do significado e alcance da categoria lugar, princípios de
verdade, representação de mundo e paixão dominante, pode ser verificado em sua
descrição sobre a biblioteca onde trabalhou: “(...) depois de ter deixado a
biblioteca e nela parte da própria alma (...) em qualquer lugar do mundo em que esteja
a visito nos meus sonhos. (...) sonho com a biblioteca (...) e
inexplicavelmente, como costuma ocorrer nos sonhos, a biblioteca é infinita e
me pertence.” (Borges, uma biografia, 1999).
A narrativa da historicidade pelo
partilhante, na perspectiva fenomenológica, em versão atualizada, esboça ao
olhar do filósofo uma percepção de sua estrutura de pensamento.
Para Borges o lugar significa um
fundamento, seja ele empírico ou imaginário; sua essência brota das ruas e do
bairro onde viveu, em interseção com os desdobramentos de sua singularidade, na
descrição de suas memórias e sonhos.
Em outra obra ele se refere à
importância do olhar e dos deslocamentos no seu cotidiano: “A base da geometria
visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e
declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam”
(Ficções, 2007).
Como o mundo parece e aparece
surge em quase todos os seus relatos, bem como a interseção com suas paixões
dominantes, axiologias, seus devaneios criativos. A singularidade, pedra de
toque da Filosofia Clínica, e talvez a maior distinção metodológica das demais
abordagens – por descartar tipologias – aparece a todo instante nas páginas do
autor de Ficções. Não seria improvável, dentre as competências da Filosofia
Clínica, acrescentar sua aptidão para o diálogo entre realidade e ficção.
Jorge Luis Borges também
compartilha seus pré-juízos em relação aos alunos quando diz: “Depois de
nove ou dez noites compreendi com alguma amargura que nada podia esperar
daqueles alunos que aceitavam com passividade minha doutrina, e sim daqueles
que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável.” (Ficções, 2007). Um
ponto significativo na literatura do mestre argentino é sua íntima relação com
as repercussões da vida dos sonhos. Desse modo, sua obra agrega fantasia,
cotidiano, e algo mais, sempre algo mais.
Nesse sentido encontramos uma
referência importante à atividade clínica do filósofo, o qual, na interseção
com seu partilhante, elabora um lugar (consultório, jardins, beira da praia,
cafés) onde esse possa exercitar as possibilidades de sua estrutura de
pensamento; um espaço de ensaio, experimentação, subversão em direção a sua
melhor condição singular.
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto
Alegre/RS.
**Instagram: @helio_strassburger
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