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historicidade das publicações

terça-feira, 4 de julho de 2023

Filosofia Clínica e Literatura*

Conjugar Filosofia e Literatura é um convite para decifrar aspectos da estrutura de pensamento de autores e leitores. Inicialmente pela escolha de obras, bem como dos conteúdos, conjugados por sua representação de mundo. Mais que um tratado de informação dirigida, é um procedimento ao alcance das pessoas, no caso de se indicar um livro, filme, teatro. Algo que possa oferecer pistas ao leitor sobre si mesmo em interseção com a obra.  

Talvez promova um diálogo para o acolhimento de um imenso saber, compartilhado na forma de uma escritura, por exemplo. Como Jorge Luis Borges, que auxilia a compreensão e o entendimento da categoria lugar, pelos apontamentos de sua literatura, pela qual se anunciam os princípios de verdade para sua formação estrutural. Borges traduz: “As ruas de Buenos Aires são-me já as entranhas da alma.” (Borges, uma biografia, 1999). As palavras revelam, em sua narrativa, a fonte da qual brotaram.    

Na mesma direção, quando o autor busca traduzir aos pais a razão de ter escrito um ensaio sobre o poeta Evaristo Carriego, considerado ‘menor’ em sua categoria (trabalho com o qual Borges ganhou um prêmio municipal), e relata: “Carriego foi o homem que descobriu as possibilidades literárias dos difamados e andrajosos subúrbios da cidade: o Palermo da minha infância.” (Borges, uma biografia, 1999).

Sendo o mundo vontade e representação, como ensina Schopenhauer, o autor esboça sua medida de todas as coisas, na redação de suas memórias.  Outro exemplo do significado e alcance da categoria lugar, princípios de verdade, representação de mundo e paixão dominante, pode ser verificado em sua descrição sobre a biblioteca onde trabalhou: “(...) depois de ter deixado a biblioteca e nela parte da própria alma (...) em qualquer lugar do mundo em que esteja a visito nos meus sonhos. (...) sonho com a biblioteca (...) e inexplicavelmente, como costuma ocorrer nos sonhos, a biblioteca é infinita e me pertence.” (Borges, uma biografia, 1999).

A narrativa da historicidade pelo partilhante, na perspectiva fenomenológica, em versão atualizada, esboça ao olhar do filósofo uma percepção de sua estrutura de pensamento.

Para Borges o lugar significa um fundamento, seja ele empírico ou imaginário; sua essência brota das ruas e do bairro onde viveu, em interseção com os desdobramentos de sua singularidade, na descrição de suas memórias e sonhos.

Em outra obra ele se refere à importância do olhar e dos deslocamentos no seu cotidiano: “A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam” (Ficções, 2007).

Como o mundo parece e aparece surge em quase todos os seus relatos, bem como a interseção com suas paixões dominantes, axiologias, seus devaneios criativos. A singularidade, pedra de toque da Filosofia Clínica, e talvez a maior distinção metodológica das demais abordagens – por descartar tipologias – aparece a todo instante nas páginas do autor de Ficções. Não seria improvável, dentre as competências da Filosofia Clínica, acrescentar sua aptidão para o diálogo entre realidade e ficção.

Jorge Luis Borges também compartilha seus pré-juízos em relação aos alunos quando diz: “Depois de nove ou dez noites compreendi com alguma amargura que nada podia esperar daqueles alunos que aceitavam com passividade minha doutrina, e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável.” (Ficções, 2007). Um ponto significativo na literatura do mestre argentino é sua íntima relação com as repercussões da vida dos sonhos. Desse modo, sua obra agrega fantasia, cotidiano, e algo mais, sempre algo mais.

Nesse sentido encontramos uma referência importante à atividade clínica do filósofo, o qual, na interseção com seu partilhante, elabora um lugar (consultório, jardins, beira da praia, cafés) onde esse possa exercitar as possibilidades de sua estrutura de pensamento; um espaço de ensaio, experimentação, subversão em direção a sua melhor condição singular.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS.

**Instagram: @helio_strassburger

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