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historicidade das publicações

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Noção de construção compartilhada*

Estive pensando sobre a importância das construções compartilhadas em Filosofia Clínica. Caso tivesse de eleger um dos aspectos de maior destaque em nosso trabalho, seria a competência do filósofo em realizar conjugações e ensaios com seu partilhante no espaço de laboratório.

Quando se pensa nessa forma de integração, é possível, para algumas pessoas, recordar momentos compartilhados num café depois de um filme, discutindo o roteiro e seus personagens; ou saboreando uma comidinha preparada com amor, ou num grupo de amigos; talvez um pôr do sol ou uma caminhada sem pressa. Assim, pode-se ter uma ideia de construção compartilhada entre duas ou mais pessoas.

Antes de entrar no tema propriamente dito, precisamos estabelecer uma base de apoio e sustentação para que algo assim seja possível. Para que um evento dessa natureza aconteça, são necessários alguns pré-requisitos: interseção positiva (predominantemente), exames categoriais bem apontados, semiose, o alcance da estrutura de pensamento do filósofo na relação com a estrutura de pensamento do partilhante, os movimentos da subjetividade nos relatos da historicidade, a escuta fenomenológica.

A matéria-prima, assim pensada, vai surgindo como fonte de inspiração aos procedimentos clínicos, numa dialética do ir e vir de um ponto a outro da relação. Descobrir por onde a pessoa efetiva sua comunicação e expressividade. Como se relaciona com os outros, consigo mesma, conhecer suas preferências existenciais, podem ser um bom começo para saber mais sobre seu território singular aos cuidados do filósofo.

Com a categoria tempo também é possível ajustar os integrantes desse processo ao endereço da clínica, superar os contrastes iniciais, as variações discursivas, o tom de voz, o olhar, o contexto da situação terapêutica, os ensaios de reinvenção, desconstrução, reconstrução.

Sim, no primeiro encontro já podem acontecer construções compartilhadas, talvez não com o alcance posterior, quando o filósofo tiver mais dados da pessoa. O acolhimento inicial, a escuta, a partilha, o desabafo e tudo mais que for acontecendo, inauguram um espaço privilegiado de convivência clínica.

Existem pessoas com enorme dificuldade para efetuar construções compartilhadas pelo dado presencial (olho no olho). Assim, é possível utilizar recursos como o mundo virtual (internet), telefone, cartas (alguém ainda escreve?), fotografias. No entanto, nesses casos (presencial-virtual), pode ser necessário emancipar a categoria tempo e semiose como ingredientes preliminares para qualificar a interseção e as demais etapas da terapia.

Quando alguns alunos chegam na especialização com essa dificuldade – realizar recíproca de inversão (visitar o mundo do outro) -, pode ser difícil passar os conteúdos básicos da Filosofia Clínica. Um de seus pressupostos é o talento, a sensibilidade de se colocar no lugar do outro, ainda que em perspectiva, e aprender, também a regressar ao seu eixo existencial (com a matéria-prima das visitas).

É possível exercitar essa capacidade, desenvolver certas habilidades. No entanto, penso naquelas pessoas que trazem consigo essa aptidão como um componente de sua natureza, tornando mais acolhedor os encontros de estudo, o processo da formação clínica, incluindo a teoria (especialização), a terapia pessoal, a supervisão, os primeiros anos de atendimento, a formação continuada.

Existem inúmeras possibilidades para se realizar reciprocidade, seja com o mundo do outro ou consigo mesmo, nos deslocamentos da clínica pessoal; e ainda com seu meio ambiente, ou seja, com a cidade, o bairro, a vizinhança, as pessoas na rua.

No entanto, é na terapia que essa virtude demonstra a que veio, ou seja, na percepção (clínica) investigativa do filósofo com a pessoa diante de si. É no estudar e aprender com o outro, em colocar-se (em perspectiva) na ótica do partilhante, inclusive realizando reduções fenomenológicas (suspensão provisória dos juízos) de qualidade, retornando ao seu eixo próprio, qualificando o papel existencial cuidador.

Um ponto de partida em Filosofia Clínica é a aptidão aprendiz do filósofo, pois, como não trabalha com manuais ou classificações a priori, está sempre recomeçando, em um método de acolhimento ao discurso existencial singular.  Nesse sentido, sua abordagem possui um forte componente antropológico, sendo o filósofo um guia em uma exploração compartilhada.

Assim, a competência em realizar conjugações pode mostrar muito da qualidade da terapia, evidenciando um alcance significativo da malha intelectiva do filósofo e do partilhante, numa interseção com palavras, silêncios, atitudes, gestos, elaborações, na busca de fortalecer o partilhante nos seus desdobramentos existenciais.

Penso que a aptidão de realizar construções compartilhadas seja um fundamento que pode ser aprendido, exercitado. No entanto, cabe ao filósofo clínico, com atividade efetiva em consultório, desenvolver este e outros ingredientes de sua maestria, para tratar as necessidades e contingências do partilhante.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021. 

**No Instagram: @helio_strassburger

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