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terça-feira, 20 de junho de 2023

Dialéticas do inesperado*

“Já não é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio”

                                                              Gilles Deleuze

O pátio do hospício é um desses lugares onde o extraordinário esboça preferências. Muros, paredes e vigias atualizam a contenção do corpo, para que a alma consiga refúgio em devaneios de transgressão. Institui arranjos de novidade na arte de existir sem razão.

Na invisibilidade dos deslocamentos o compartilhar nem sempre é possível. Talvez por isso, no sujeito delirante, a realidade apareça disfarçada de irrealidade. Na estrutura inquieta, onde as visões dialogam entre si, uma vida inteira pode ser insuficiente para alguma tradução.

A desarticulação das palavras se faz cúmplice ao pensar contraditório das in-completudes. Algo mais nos anúncios desses percursos da introspecção. Talvez alguma indicação à transgressão em torno das paredes do asilo. Mirante às perspectivas fantásticas da natureza humana encarcerada pelas grades da epistemologia da tradição.  

É de saber incerto o que leva as pessoas a buscar abrigo nas lonjuras incomunicáveis dentro de si mesmas. Acaso no território livre das abstrações, onde o aprisionamento nos rituais da normalidade pode se desfazer. Prosperar das diferenças entre a experiência sensível e seus paradoxos. Os segredos indescritíveis seguem à espera de exploradores.

Quiçá a vertigem possa anteceder essas aproximações com o inexplicável da pessoa internada. Enquanto isso, as incógnitas da loucura permanecem à margem, em refúgios de aparente sem sentido. A força narrativa dessas ilegibilidades desloca-se por universos de ambiguidade.

Deleuze refere: “(...) a interioridade não para de nos escavar a nós mesmos, de nos cindir a nós mesmos, de nos duplicar, ainda que nossa unidade permaneça”. (Crítica e clínica, 2004). Perspectiva delirante a denunciar pré-tensas realidades compartilhadas. Ponto de vista onde os consensos se veem ameaçados.  

Ao transgredir o embaçamento do visar normal, surgem outras derivações: uma poética dos milagres aprecia surgir como espetáculo, onde a pluralidade dos personagens exila, momentaneamente, o sujeito originário para descortinar seus outros.

Suspeitas de múltiplas origens procuram algum sentido ao não ser elaborado nas lógicas da esquiva. Diálogos com as formas do estranho descobrem inéditos percursos por trás dos velhos mapas. Os fenômenos integrantes da singularidade se anunciam nas tramas significantes dos relatos. Ao tentar entender a origem dessas viagens, um vislumbre cosmopolita aponta indícios de terra estrangeira.

A rede de saberes incompleta-se por todo lado. Em muitos casos, a estrutura caótica, por seu desvalorizada socialmente, institui novidades, mesmo quando socializa impressões de espectador numa cena que não lhe pertence. Nos convívios de marginalidade, a expressividade decadente denuncia esconderijos onde as palavras não conseguem chegar.

O sujeito subverte as tramas e desloca forças entremeios de certeza, vigilância e domesticação. Atribui-se raridade e funda algo mais, até então calado na estrutura inconformada ao olhar de multidão. Rituais incontáveis transgridem as antinomias de lucidez e submissão.

Um rastro de saber desarrazoado sugere outras lógicas aos traços de surrealidade. Matéria-prima em delírios de re-invenção, a descontinuar-se no vocabulário errante que se faz meio de apresentação, exploração e descoberta.

Em Félix Guattari: “Os lapsos, os atos falhos, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Nas se trata de interpretá-los. Trata-se antes de detectar sua trajetória para ver se podem servir de indicadores de novos universos de referência suscetíveis de adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação.” (Caosmose - Um novo paradigma estético, 2000).   

As falas da descontinuidade parecem preferir a instabilidade dos paradoxos, para vislumbrar as quimeras da insensatez. A improvável fala de aparente sem nexo qualifica interseção com o transbordar desses instantes de perdição e encontro. Insanidade ao olhar classificador do alienista. Estética provisória a se instaurar no início sem-fim das conversações com o exagero de si mesma. Ao ensimesmar-se a singularidade se desconcerta para ser exceção.

A farmácia interior também se qualifica nos ensaios do viajante. Distorção a perder de vista na relação com suas anterioridades. Fenômenos de extravagância ao compartilhar da terapia. Pessoas atormentadas por fantasmas indescritíveis podem enfraquecer seus temores e inseguranças, na compreensão desses vislumbres de razão alterada. Propõe compartilhar o depois de amanhã ainda inexplicável ao presente. A história reescrita faz surgir atributos de profecia, até então desconhecidos para si mesma.

Labirintos excepcionais denunciam outras verdades, entrevistas na realidade delirante. Inauditos discursos assopram sentidos divergentes aos ditos de euforia.

Jacques Derrida insinua: “Como o deserto e a cidade, a floresta, onde formigam os signos amedrontados, diz sem dúvida o não-lugar e a errância, a ausência de caminhos prescritos, a ereção solitária da raiz ofuscada, fora do alcance do sol, em direção a um céu que se esconde. Mas a floresta é também, além da rigidez das linhas, das árvores em que se agarram às letras enlouquecidas, a madeira que a incisão poética fere.”  (A escritura e a diferença, 2005).

O Filósofo Clínico se faz cúmplice, em seu papel existencial, na busca de um alívio compartilhado, para o alvoroço dessas reestreias do sujeito. Embora isso tudo reivindique nomes ou apelidos, quase sempre permanece como saber obtuso. Poéticas de interrogação alternam-se na obscuridade das lacunas.

Focos de miragem na investigação das impermanências. Mutante a surgir como fragilidade bem disfarçada aos diagnósticos de objeção. A trama significante escolhe o delírio exilado nas circunstâncias para se fazer ver. Inúmeras incógnitas aguardam tradução em seus esconderijos. Fonte se originalidades a permanecer dissonância. Talvez a vida normal seja sua ilusão mais bem acabada.

Nesses percursos pela desmedida dos segredos, as intencionalidades transitam entremeios de um pretérito-futuro. Embora o deslize do traço, muitos são os inéditos à deriva. Inacreditáveis sugestões no esboço das imperfeições.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger 

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