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sexta-feira, 16 de junho de 2023

Uma Filosofia Clínica dos casos perdidos*

“Sabendo que não há causas vitoriosas, gosto das causas perdidas: elas exigem uma alma inteira, tanto na derrota quanto nas vitorias passageiras”

                                             Albert Camus                                                                                              

É incrível tentar descrever os atendimentos de casos perdidos. Aqueles que acontecem bem depois da sentença diagnóstica do psiquiatra ou da interdição jurídica (interesses familiares). Caracterizam um mundo de recursos pessoais desmerecido que é possível encontrar numa subjetividade confusa. Algo a mais se insinua nas entrevistas da razão. Uma geografia fora de si pode cegar uma pessoa na relação consigo mesma, sob as mais variadas formas.

A atração das axiologias, imperceptíveis quando desejam ofuscar epistemologias, por exemplo, é capaz de desconstruir os raciocínios mais bem postados. Elaborar armadilhas conceituais e sustentar paixões dominantes podem esboçar alguma forma de dependência, na relação do partilhante com os princípios de verdade, recém inventados na teia de sua imaginação. Enquanto o vínculo interno é de prazer e autorrealização, os desdobramentos externos podem indicar caos e derrocada; a dependência química é um dos exemplos desse tipo de situação.

Uma estranha lógica a oferecer atrativos irresistíveis ao desabrigo de si mesma. Ela, assim, flerta e atrai suas vítimas, ainda mais quando as pessoas dizem ter o controle da situação; são ideias complexas numa versão radical. Outro exemplo é aquilo que se conhece como delírio. Nesses casos, o que se avizinha é uma contradição entre o mundo das ideias e sua repercussão cotidiana. Um endereço sedutor, se vinculado a uma cegueira tóxica, para sustentar uma estrutura refém de suas certezas.

Essa ótica dos casos perdidos faz referência ao transbordar pessoal na direção do equívoco, do engano, do autoextermínio, ainda que sob as mais distintas expressividades e justificativas existenciais.

Um desses casos é a pessoa que produz dificuldades, para, na sequência surgir como salvadora da pátria, deixando entrever, ao olhar mais apurado, sua real motivação: chafurdar na miséria para alimentar vontades. Como um colecionador de adversidades, seu centro de gravidade é um misto de armadilha conceitual e paixão dominante, enredado nas ideias complexas, em rotas de colisão consigo mesmo.

Sua estrutura de realismo fantástico, distorcida, costuma ser a antessala das crises. O refúgio, em algum festejo meteórico, desdobra velhos conhecidos na miragem de ser algo mais. Essa penúria exótica e fugidia aprecia surgir satisfeita consigo mesma.

Refém de um olhar de compaixão dos outros, sua atitude de aparente sofrimento faz referência aos labirintos do acaso, numa atividade manipuladora difícil de acessar ao primeiro contato. Seu recordar sobre o acolhimento da lama, ainda quando refere o contrário, atualiza agendamentos, intencionalidades e equivocidades discursivas.

Assim os jogos de linguagem elaboram monólogos para sustentar as conquistas da decadência. Os personagens, até então imaginários, adquirem simulacros no cotidiano, semelhantes ao seu autor; uma espécie de protagonista de enredos distorcidos. Num mundo assim estruturado, vencer significa perder; os álibis de causa própria sustentam uma atraente decadência. Sua intencionalidade, mesmo em momentos de alegria, recorda algum viés de renúncia.

Os padrões de perda e extravio se instituem como uma droga irresistível. Uma singular acrobacia existencial costuma alimentar a lógica dos casos perdidos. Parece focar a vida em autodestruição. Um chão onde a pessoa executa suas derrapagens existenciais. O viciado nessa condição peculiar, mantém distante as possibilidades de desconstrução. Em uma vida ao sabor dos ventos contrários, sua expressividade aprecia sinalizar, um pouco antes de se desrealizar.

A tendência excessiva ao recolhimento interior, ao sentimento de autocomiseração ou a preferência pelo desalento, se encontram numa atração irresistível, a festejar a iminência da sarjeta.

Um sujeito assim estruturado, quando se refere a amanhãs é como um pressentimento de errância, perdição ou abandono, em uma conversação enredada em si mesma. Assim a estrutura retórica das causas perdidas possui aliados sofisticados: um pessimismo camuflado, a ideia de beco sem saída, identificação com as desilusões cotidianas. A essa forma de viver se pode perceber uma sensação cultivada de sofrimento. Ao contrário de algum bem-estar, é o mal-estar que realiza e faz bem.

Nesse ponto de vista, os assuntos últimos aparecem travestidos de justificação e fundamento. A coerência notável de seu discurso atua como jogo de cena. Em que as coincidências são itens de um destino arquitetado. Críticas, aconselhamentos e súplicas servem para acentuar a integração entre paixões e armadilhas, o que acha de si mesmo e o que busca.

Um olhar de desmerecimento só faz alimentar essa estrutura de pensamento, abastecendo as distorções ao seu redor. Essa lógica da antítese faz referência à singularidade desconhecida em cada um.

Num contexto dessa natureza, as cogitações padecem em um escasso limiar. Ainda assim, sua epistemologia se multiplica em lógicas daquilo que tenta excluir. Um Quixote amordaçado se realiza em conjecturas de insensatez.

Uma mescla de verdades parece rascunhar algo por vir; no entanto, essa pequena brecha não chega a transpor as frágeis suposições. A pessoa congela o que poderia ter sido com o alívio das promessas não cumpridas. Espécie de embriaguez cotidiana a efetivar profecias irrealizáveis.  

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2021. 

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