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historicidade das publicações

sexta-feira, 16 de junho de 2023

A subjetividade interdita no delírio***

A relação estapafúrdia e de aparente sem nexo entre abstração e a objetivação do real constitui aspecto significativo em busca de tradução para as linguagens da loucura. Na pessoa alterada, essa perspectiva é naturalmente imprecisa. Descortina territórios às desconstruções e reestruturações, antes mesmo de serem veiculadas ao mundo compartilhável da sua aldeia existencial.

Fonte inesgotável de surpresas refugiada em evasivas e desvios. Longe de ser faceta desligada da realidade, possui íntima descontinuidade com as coisas inteligíveis. Para domesticar as transgressões ao contexto normal, a internação involuntária surge recheada de fundamentação teórica. A loucura, no entanto, permanece como realidade calada. A prática médica reconhecida, sem saber, favorece a euforia criativa ao alargar horizontes improváveis da pessoa com suas drogas.

Contraponto a referir significados de plasticidade e reciprocidade fora do comum.  Tudo isso, considerado incapacidade ou inaptidão, a partir de agora, desdobra-se em sinais para além da palavra silenciada.

Ao sujeito assim estruturado, os convívios podem ficar estranhos. A família, o alienista, o poder judiciário e a igreja não conseguem entender o querer dizer das novas línguas. A subjetividade permanece irrenunciável e aparece em abrigos de introspecção.

Fenômeno complexo e de difícil entendimento, se distanciado das representações de cada um. A estrutura delirante, ao surgir camuflada, insinua poéticas de refúgio.

No discurso da historicidade, muitas vezes fragmentado e em vias de incompletude, é possível, ao entrelaçar lacunas e vazios, realizar um percurso aprendiz por esses dialetos da desrazão. Influências do mundo sensível podem ser pedra de toque às recordações mais antigas.

Gaston Bachelard ensina que: “As ilusões possuem uma importância decisiva, porque a vida do espírito é ilusão antes de ser pensamento”. (A intuição do instante, 2007).

Nem sempre é possível conversar com a subjetividade delirante. Seus rituais de intimidade costumam estar protegidos aos acessos da versão normal. Nuança indefinida a multiplicar-se nos padrões do acaso. Um pacto estrangeiro insinua-se na desordem dos instantes. A pessoa procura tornar-se perspectiva acreditável aos contextos de convívio com sua vastidão interior. Como as palavras podem ser uma semiose sem sentido, também pode encontrar recursos na fonte renovada das crises.

Na reciprocidade com o mundo ordinário, as contradições podem descobrir os trânsitos das lógicas da insensatez pelas atmosferas da irrealidade. Versão fora de série a integrar a natureza das reinvenções. Intercâmbio animado na inconformidade de ser apenas uma coisa ou outra. Sutil desequilíbrio para pensar o impensável.

Heidegger diz assim: “(...) ser o dizer projectante aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo”. (A caminho da linguagem, 2004).

Na parcialidade dos acontecimentos, atalhos de imperfeição desnudam exílios, onde personagens fantásticos percorrem subúrbios clandestinos à verdade esperada.

Manuscritos, até então impensáveis, demonstram fluência nas entrelinhas de incompreensão. Apreciam convívios intercalados nas fronteiras com a perplexidade. Alegorias indescritíveis atropelam as formas clássicas do dizer. Um apelo superlativo insinua algo mais na estrutura maldita pelas palavras.

O partilhante internado e sem poder compartilhar seu ser forasteiro, se esquiva nalgum recanto extraordinário de si mesmo. In-tradução a distanciá-lo dos outros. Subjetividade a se deslocar em um tempo sem amanhã. A contradição, longe de excluir, pode insinuar outras possibilidades de viver diferente.

Schopenhauer indica: “(...) ter encontrado em manicômios sujeitos com inegáveis indícios de disposições geniais que, devido à raridade proporcional da loucura, mais até que o gênio, não podem ser atribuídas ao acaso, mas justamente confirmam o que sempre se observou e explicou – que o gênio de algum lado faz fronteira com a loucura, sim, com facilidade a ultrapassa”. (O mundo como vontade e representação, 2001).

No dizer interdito pelo tumulto interior, signos estapafúrdios descrevem novas ideias. Ponto de vista impensável não fora as minúcias dos achados de singularidade. A existência assim disposta se esparrama na embriaguez mal disfarçada da ilusão. Ideias complexas inspiram a vertigem sensorial a desestabilizar o terreno sob seus pés.

A pessoa, antes dessa travessia para a introspecção, ainda tenta traduzir suas visões e escutas. No entanto, as palavras e atitudes soam como ameaça inesperada. Na imensidão desses espaços de aparente vazio, a vida também acontece. A multiplicidade dos labirintos reivindica interseção entre a realidade empírica e abstrações. Na inquietude das crises um estranho silêncio anuncia desfechos por território novo. 

O saber médico da tradição não sabe a extensão do que ignora.

Tzvetan Todorov reflete: “(...) o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir: logo, a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao passado”. (Poética da prosa, 2003).

Eis que surge esse lugar alheio em cada um. Comoção passageira por onde se esboça o desconcerto originário a denunciar a natureza transformadora.

Novos paradigmas apreciam surgir nas lógicas incompreendidas.

Na voz intercalada dos presságios, insinuam-se devaneios de ficção. Versão de novidade entrevista nos exílios de singularidade. O louco ao perseguir e tentar descrever outras verdades mantém, para com o mundo normal, uma recusa contraditória.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-papers/RJ. 2009.

**Esses escritos têm sua fonte de inspiração nos atendimentos de um Filósofo Clínico em clínicas e hospitais psiquiátricos brasileiros. 

***Até a publicação dessa obra, o tema: 'autogenia' era apenas mais um tópico aos estudos em Filosofia Clínica. Depois...  

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