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segunda-feira, 19 de junho de 2023

A magia da interseção*

"Minha alegria permanece impessoal e sem brilho, enquanto dela não participares como confidente – ao menos por intermédio de alguma anotação íntima e sincera sobre esta alegria em um livro que te pertence.”                                                                                                        

                                                                             Rainer Maria Rilke 


Existe um ponto de frágil equilíbrio nas relações entre as pessoas. Alianças para aproximação com o extraordinário da condição humana. Pelas rotas de acesso, a representação de cada um, vastos e inexplorados continentes podem mostrar-se.

A partir dessas circunstâncias é possível localizar as crises, lá onde elas nascem e se estruturam, evidenciando singularidades. Uma relação dialética com seus outros. Encontros com a obra aberta pela interseção, revelando desconstruções possíveis à terapia.

Nos exames categoriais, lugar onde os sujeitos vão descrevendo-se à investigação do filósofo clínico, é também um endereço para identificar as matérias-primas ao contraveneno às questões últimas.

Vestígios dessa raridade existencial se antecipam nos primeiros encontros, através do sofrer em pedidos de ajuda. Percepções em desconformidade com qualquer procura. Escutas, olhares e sentires em aprendizagem com os ritmos e sons oferecidos por essa linguagem única em formas de vir-a-ser.

O ser terapeuta interage esboçando trajetos pela intimidade da pessoa partilhante. Mergulha em águas desconhecidas, onde a abordagem metodológica é companhia para decifrar o desconhecido em propensões de se mostrar.

Pela via da interseção, peculiares experimentações se oferecem ao papel existencial do ser terapeuta. Fenômenos a constituírem mensagens em busca de tradução.  

Existem desafios, riscos e limites para se manter reciprocidades com o mundo do outro. Um dos mais significativos é por desconhecimento da própria estruturação do clínico quando no dia a dia do consultório. Desacostumado a percorrer espaços próprios, pode encontrar dificuldades nos trajetos de ir e vir da relação terapêutica. Uma despreocupação atenta se mostra como ingrediente sofisticado ao tratamento. Através dela pode-se viabilizar uma melhor suspensão dos juízos na pessoa do filósofo. Pré-requisito ao entendimento da condição do ser outro.

Um ato de amor se realiza pela magia da interseção. Aqui a confiabilidade e abertura pessoal constituem aliados poderosos para sustentá-la. É nos sobrevoos pelas contradições do partilhante onde o assunto último e as possibilidades para suas desconstruções se mostram. Privilegiado acesso às sombras do existir. Efêmeros encantamentos se dão por essas aproximações em perspectiva com o desconhecido. A partir deles pode-se encontrar melhores ângulos à reciprocidade, onde até os sonhos podem ganhar vida pelos experimentos da terapia.

As traduções de um indizível a romper com seus limites pode se apresentar na forma da objetividade clínica. Propondo rupturas com as estruturações de onde tirava forças para limitar as possibilidades de melhor viver. O respeito à literalidade da narrativa pode tornar possível uma compreensão para com as intencionalidades do sujeito em buscas de encontrar-se.

Tais eventos são difíceis de descrever. Nem sempre possuem intimidade com o melhor relato, costumam se oferecer mais à vontade pelas formas estéticas, compondo os aspectos não-verbais desses encontros. Uma espécie de expansão ao eixo tênue da normalidade, lá onde ela busca significar seu existir. Uma espécie de armadilha conceitual em formas de paixão dominante pode atualizar o papel existencial do ser terapeuta. Relações embriagadas de aparentes incongruências repercutem, na pessoa do filósofo clínico, contextos somente encontrados no outro lado da interseção.

Essas abordagens podem antecipar os acessos para com as expressividades do partilhante. Formas de aparente loucura, onde não mais importa ao sujeito justificar-se socialmente. Lá onde anteriormente buscava efetivar-se em ser normal.

A partir da historicidade, os saltos temporais, devaneios e maquiagens da hora, podem esboçar contradições a serem trabalhadas nos locais onde adquirem significados. Originais estruturações revelam-se distantes das tipologias em seu espírito de rebanho conceitual.

Indizíveis aspectos mantêm as relações assim constituídas. Facetas escondidas pelas máscaras do convívio social podem ressignificar trajetórias e impulsionar mudanças a partir do espaço de vida da terapia.

No instante dessas aproximações com o sujeito partilhante, pelo caminho a ser elaborado pela interseção, o filósofo clínico deixa-se enredar, momentaneamente, na teia sutil das estruturas do outro, em movimentação compartilhada por seus territórios.

Há poesia em todo trajeto. Lendas e sonhos são os frutos de uma ingenuidade em ritmos de desvendar-se na pessoa, ora evidenciados pela localização compartilhada das origens do sofrer. Narrativas e ressignificações se oferecem ao sujeito nessa dialética do existir. De sessão em sessão as reelaborações são oferecidas pela interseção clínica. Via de acesso ao fenômeno, muitas vezes marginal, espécie clandestina em território próprio, insinua-se por meio das contradições e crises. Essas temíveis aliadas, em antecipar novos horizontes.

Na identificação das antíteses estruturais as ressignificações podem se constituir em frestas abertas à qualificação clínica, permitindo um livre trânsito desses conteúdos pela geografia interna do sujeito, acostumando-o com a ideia desse diferente a brotar de si mesmo.

As sínteses em terapia podem ocorrer por uma transformação inequívoca, atualizada pelos impactos causados na pessoa do filósofo clínico, uma espécie de ‘fio condutor’ dessas relações com o partilhante em vias de experimentação. As repercussões no ser do terapeuta, desses trânsitos pelas absurdidades do outro, constitui um aperfeiçoamento ao indeterminado da interseção e qualificação aos tratamentos. A estruturação do clínico pode integrar a dialética da pessoa.

O filósofo clínico empresta, muitas vezes, seu ser ao não-ser da interseção. Esse aspecto costuma ser uma referência ao tratamento. Lugar onde a perspectiva do outro pode efetivar-se em ensaios, sem perder de vista as próprias buscas. Essas autogenias buscam viver melhor. Provisórias formas de irracionalidade possuem um caráter mutante, em busca de estabelecer padrões e identificar alternativas para superação dessas etapas.

Linguagem de aparência incompreensível são apropriadas pela reciprocidade do filósofo clínico, o qual não busca normalizar seu cúmplice de caminhada. Aon contrário, estabelece com ele os melhores ritmos em direção à sua originalidade, investigando e compartilhando formas de desconstrução, às vezes, tão próximas de si.

Existe um fascínio nessas descobertas. Possibilidades para um melhor viver vão se mostrando, revelando singularidades por trás de uma anterior dedicação em normalizar-se. Significados somente encontrados na subjetividade do outro em devir.

Os riscos assumidos nessa relação, pelo filósofo clínico, constituem parte insubstituível do ser terapeuta. Quando, encaminha-se em direção a esses universos, a priori, não sabe o que irá encontrar do outro lado da interseção. Sem perder a perspectiva clínica, sequer cogita como fará para retornar ao seu eixo, deixando-se impregnar pelo tempero das incongruências dessa visita ao outro da relação.

A maiêutica atualiza-se quando ocorre um desenvolvimento em direção a melhor singularidade. A matéria-prima para existir melhor costuma ser encontrada nas próprias ruínas, sob os escombros das desconstruções. Etapas de um reconstruir efetivado a partir desse lugar com aparência de terra arrasada.

Depois disso, as pessoas podem distanciar-se existencialmente das suas anteriores relações. Trata-se de desalojar a poeira dos armários, arrumar gavetas, modificar a disposição dos móveis e selecionar conteúdos guardados, verificando se existe possibilidade em manter algo das antigas conformações.

A vida exercita-se através das pessoas. Universal magia em desdobramentos de existir singular.  Atualiza-se e renova forças com a natureza desses encontros. Uma dialética em busca por viver melhor.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da singularidade”. Ed. E-papers/RJ. 2007.  

**Instagram: @helio_strassburger

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