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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Anotações sobre a estrutura do abismo*












"O homem articula-se até o fundo de si mesmo em linguagens distintas.”

                                                  Roland Barthes

É incomum a busca para alguma tradução da linguagem da loucura. Na sua relação de aparente sem nexo com a realidade, seu saber delirante costuma ser distanciado da rotina dos convívios. No caso do diagnóstico das práticas da tradição, a vida (do louco) é colocada num parêntesis, pela fundamentação a propor tratamento aos seus refúgios de abstração.

Qualificar diálogos com a natureza das desestruturas reivindica plasticidade e uma aptidão aprendiz fora do normal. Sob incerto aspecto, se trata de transitar por onde a vida acontece, mesmo quando em contrastes com o mundo conhecido.

Ao contradizer seu passado recente, constitui uma fonte inesgotável de surpresas, através das evasivas ao ser singular. Longe de uma faceta desligada da realidade, se apresenta, também, na descontinuidade das coisas inteligíveis. Para domesticar as transgressões à norma social, a internação involuntária surge recheada de fundamentação e rigor tecnicista.

O sujeito em vias de mudança expressa desconformidade com os moldes até então conhecidos da convivência social. A partir de agora um mundo estranho lhe aparece diante da janela. A família, o poder judiciário e a igreja, muitas vezes, costumam ter cumplicidade (para exclusão) entre si. O exílio partilhante surge como estratégia de fuga em abrigos de introspecção radical.

Fenômeno complexo e de difícil entendimento, se distanciado da representação da pessoa. A subjetividade da estrutura caótica não se mostra a qualquer um. Suas narrativas surgem estilhaçadas na incompletude das ideias e jeitos de ser.

Gaston Bachelard poetiza seu dizer: “As ilusões possuem uma importância decisiva, porque a vida do espírito é ilusão antes de ser pensamento.” (A terra e os devaneios do repouso, 2003).

Nem sempre é possível realizar alguma forma de conversação com a subjetividade delirante. Ela possui rituais muito íntimos de escolha e expressividade, ao se distanciar da superfície dos convívios, suas palavras podem se mostrar semiose inútil. Nuança indefinida a multiplicar-se em regras do acaso. Estranha desordem nos simulacros de reinvenção.

A pessoa existe na contrariedade das manifestações de sentido único. Ao tornar-se uma perspectiva acreditável, aproxima contextos de aspecto contraditório, sem desmerecer vivências de interioridade. Aqui se trata de acolher a matéria-prima numa fonte que se renova com as crises.

Interferências mútuas descobrem algo mais até então desprezado como insignificante. As lógicas da insensatez permitem transitar por atmosferas de irrealidade. Intercâmbio animado pela inconformidade de ser apenas uma coisa ou outra. Desequilíbrio ao pensar impensável se legitimar na obra de arte da singularidade incompreendida.

Heidegger ensina: “(...) ser o dizer projectante aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo.” (A caminho da linguagem, 2003).

A parcialidade cotidiana esboça esconderijos e preferências ao devaneio pessoal. Para melhor entender os discursos de incompletude, é impreciso descortinar atalhos de imperfeição e desnudar exílios escondidos no próprio olhar. Personagens fantásticos habitam ruelas e guetos clandestinos as unanimidades.

Os manuscritos do desatino se protegem entrelinhas de incompreensão. Persistem anônimos à normalidade, embora tenham desenvoltura nos roteiros de loucura e normalidade. Apelos extraordinários insinuam algo mais, ao reinventar normas para o absurdo das palavras.

As inquietudes do delírio apreciam esconderijos de raridade. Ensimesmadas e sem vocabulário conhecido para se expressar, escolhem um bairro existencial distante para morar. In-tradução de linguagem própria na distância dos demais, onde o tempo sem amanhã rascunha indescritíveis presentes. Abismos significativos desarticulam as fronteiras bem limitadas pelas epistemologias da tradição. A tradução dos asilos reinventa-se na impermanência de um agora.

Schopenhauer indica: “(...) ter encontrado em manicômios sujeitos com inegáveis indícios de disposições geniais que, devido à raridade proporcional da loucura, mais até que o gênio, não podem ser atribuídas ao acaso, mas justamente confirmam o que sempre se observou e explicou – que o gênio de algum lado faz fronteira com a loucura, sim, com facilidade a ultrapassa.” (O mundo como vontade e representação, 2001).

A proliferação de novas ideias antecipa-se no dizer inter-dito dos signos estapafúrdios. Ponto de vista impensável não fora sua identificação na informalidade criativa das interseções. Minúcias de imperfeição sugerem roteiros de novidade. A realidade assim disposta se esparrama na embriaguez mal disfarçada da ilusão. Complexidade inspirada na vertigem sensorial a desestabilizar o chão sob seus pés.

O sujeito, antes desses instantes de travessia e refúgio para si mesmo, muitas vezes tenta expressar seus desatinos. No entanto, tropeça na escolha das palavras e atitudes, as quais podem soar como ameaça ininteligível. Na perplexidade desses espaços imensos, a pessoa se desconstrói em labirintos de abstração. Na inquietude das crises os indícios podem se confundir.

Para Tzvetan Todorov: “(...) o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir: logo, a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao passado.” (Introdução à literatura fantástica, 2008).  

Lugar privilegiado no esboço entre o tudo e o nada de cada um. Alegorias por onde a vida também se experimenta. O desconcerto originário anuncia a natureza transformadora, mesmo quando inacabada em seus ímpetos. Sua expressividade pode deixar entrever os primórdios de uma ausência.

Nesse sentido, o saber médico tecnicista não sabe a extensão do que ignora. Novos paradigmas apreciam o esconde-esconde das lógicas do desmerecimento. Um ser mestiço chama atenção ao fato do delírio não recusar nada, sequer a medicação que busca destruí-lo, enquanto a normalidade cristaliza práticas de segregação.

Na voz intercalada dos presságios a contradição é prefácio para um dicionário da loucura. Erudição maldita contida nas lógicas do desatino. Relatos das ideias, palavras e sensações até então indescritíveis à luz do dia. Denúncia dos abismos de incompreensão por essas peças de ficção inacabada.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos. Ed. E-Papers/RJ. 2009).

**Instagram: @helio_strassburger 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Sujeito e horizonte existencial*

Uma pessoa, tendo como referência seu ângulo de visão, vislumbra e significa o mundo todo. Esses atributos surgem como novidade em meio a diagnósticos, interpretações, tipologias, distorções, recuperando a constituição e o devir existencial de cada sujeito, como um fundamento às tratativas de cuidado e atenção à vida.

A noção de estrutura de pensamento amplia o horizonte do fenômeno humano, transgredindo as lógicas da razão e da emoção. Pensando como uma malha intelectiva em movimento ou um mapa descritivo, com suas cidades, bairros, ruas e avenidas, casas, sótãos, porões, assim se manifesta esse endereço subjetivo, recheado de surpresas, além dos limites de razão x emoção.

Um lugar em que as intencionalidades atuam e são efetuados os registros de sua vida são: sua representação de mundo, seus pensamentos, suas sensações, verdades, buscas e seus valores, constituindo um diário em que são registrados os eventos – como ingredientes de um discurso existencial passado, presente e futuro. Podem se apresentar como completude ou incompletude, raciocínio estruturado ou desestruturado, acontecimentos precursores, em uma fonte de inspiração nem sempre linear.

Uma das atividades prioritárias do filósofo clínico é estudar as condições e os meios para qualificar a interseção com o devir partilhante. Nesse território em movimento ele acolhe, descarta, adiciona, subtrai, multiplica, pois toca ao filósofo ajustar seu papel existencial, de acordo com os desdobramentos e as necessidades da atividade clínica.

Talvez a percepção mais interessante, na atividade clínica do filósofo, sejam os relatos da história de vida do seu partilhante, o qual, ao compartilhar-se na terapia, lembra um autor descrevendo, com suas palavras, a porção de infinito que lhe cabe. Assim, não é rara a constatação de que a pessoa possa estar vivenciando algo ainda sem nome, pelas especificidades de sua condição única, num projeto existencial irrepetível. É compreensível que algo, até então fora da lei, ao ser compartilhado, seja página virada ou matéria-prima para reinvenção do seu autor.

Em uma cultura em vias de tornar-se, um forasteiro pode significar-se de acordo com sua melhor expressividade, tratando de proteger-se ao olhar, nem sempre cúmplice, dos princípios de verdade.

Nesse sentido, a pessoa poderá desenvolver linguagens, estratégias, refúgios próprios, e escolher onde, quando e com quem irá manifestar sua condição subjetiva.   

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.

**Instagram: @helio_strassburger

terça-feira, 27 de junho de 2023

A palavra dialética*

A rigidez do raciocínio bem estruturado, nos relatos da palavra definida, abriga um dizer de natureza inconformada. Antítese da comunicação inicial, esse teor descompassado, ao ser contradição, prescreve novos rituais para comunicar. As propostas por desmerecê-lo reafirmam sua natureza de transgressão. Seu rumor de não palavra, ao ser dizível, aponta uma estética da desrazão.

Esses relatos interditos na expressividade buscam emancipar as fronteiras discursivas. Sua desconformidade inaugura espaços, oferece ambientes para novos experimentos narrativos. Ao quebrar protocolos, emancipa aquilo por vir. A palavra dialética contém em si mesma: afirmação e negação. Um território com cheiro de terra nova se apresenta em cada página.

Na ruptura com aquilo que já foi novidade, empenha-se em querer mais. Acolhe as dinâmicas da crise como um anúncio. Sua referência de inspiração são as autogenias precursoras. Ao dizer não à rigidez do discurso completo, bem-acabado, sua alternativa é uma poética das incompletudes. Sua ótica de reverência à vida persiste em ser ensaio criativo.  

Nessa arte de evidenciar frestas, rasura-se a norma definitiva. Suas vírgulas, espaços em branco, acenam um devir de raridades. Sua lógica subversiva, ao denunciar refúgios na palavra consentida, equivale a uma premonição. Assim é possível vislumbrar algo mais além de fracassos, acertos, dúvidas. São muitas as invenções contidas na desorganização preliminar do sujeito. Sua força emancipadora reside nos anúncios de originalidade.

Sua intencionalidade de negação faz girar a vida aprisionada nas teses de sentido único. A ideia, ao sair de si mesma, desconstrói certezas para inaugurar verdades. Desse ponto de vista, uma transcendência parece flertar com os descaminhos do cotidiano. Quiçá um devir a flanar entremeios da rigidez discursiva, significando-se como arte a emancipar fronteiras.

*Hélio Strassburger in “A Palavra Fora de Si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.  

**Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Lógicas da diferença*

"Também a ciência, chegando ao fim de seus paradoxos, deixa de propor e se detém para contemplar e desenhar a paisagem sempre virgem dos fenômenos. O coração aprende assim que a emoção que nos transporta até as diferentes facetas do mundo não nos vem de sua profundidade, mas de sua diversidade.”

                                                                      Albert Camus 

Uma arqueologia atualiza-se em descobertas de múltiplas faces. Indeterminados fenômenos no lugar qualquer de todo lugar. Exceção de natureza imprevisível, se faz dissonância na concepção de outras regras. Decifrar das expressividades na superação ilimitada aos novos territórios. Vastas regiões no exílio sagrado das lógicas da singularidade.

Heterogêneas formas na superação do espírito de multidão. O devir dos contextos impulsiona, para além da mimese cristalizada dos hábitos, múltiplas estranhezas em contrassenso com o ser normal. Códigos de imprecisão excedem os momentos de crise. Reapresentação das originalidades ao olhar de espanto das incertezas.

Especulação na margem imprevisível dos mundos por descobrir. Antítese das travessias entremeios de aparente sem direção. Essência irrefletida numa fonte inesgotável de cores, sons, aromas e sabores. Um vir-a-ser ensaia discursos nas autonomias da exceção. Descontinuidade em atalhos para além do princípio de realidade.

Eric Landowski diz: “(...) ser um percurso estranho e ao mesmo tempo perfeitamente lógico: vindos de longe, eles escolheram permanecer integralmente eles mesmos, entre nós: programa de camaleão; e se por isso eles se instalam exatamente no centro, é porque esse lugar, por oposição a todos os outros, não é verdadeiramente daqui: tática do urso, que sabe que seu refúgio mais seguro para ser livremente o que ele é se encontra algumas vezes no coração da multidão, no centro cego do sistema.” (Presenças do outro, 2002).

A forma de pensar das lógicas da uniformidade, um pouco antes de preservar as raridades, a destroem. Ameaça permanente com abismos de caráter intransponível. Estreitar dos horizontes da criação na alienação de viver sem ânimos de contradição. A partir daí, tratamentos (família, escola, igrejas...) para normalizar-classificando, demarcam até onde o fora de série poderá ir, sem rasurar os moldes.

A diversidade capaz de emancipar a vida diverte-se na desarmonia com as lógicas da tradição. Distanciar eficaz das estéticas da imprecisão. Conjecturas de difícil tradução escolhem um tempo qualquer, para significar-se em caminhos outros. Internação das possibilidades por não se fazer entender. Buscas na sintaxe do acolhimento para modificar tramas, cada vez mais, em rota de colisão com os desvios da singularidade.

Remo Bodei desconstitui as rotas de tranquilidade: “Por isso, somente os artistas mais sublimes foram capazes de explorar tais áreas de extremo perigo e retornar para descrevê-las e exprimi-las para proveito de todos: Dante, Michelangelo, Shakespeare, Mozart, Goethe... A arte mais sublime encontra o seu terreno mais fértil na proximidade dos abismos.” (As formas da beleza, 2005).       

Uma autopoiésis insinua-se em signos de inconformidade. Derivação no caleidoscópio multicor dos dialetos. Descontinuidade dos trajetos na (re)invenção para si. Uma genealogia em ficções de pluralidade escolhe-se na articulação simbólica dos hermetismos. Refúgio distante na desconformidade com a rigidez das correções. A introspecção é capaz de qualificar desacordos com as regras de ser habitual.

As lógicas do ‘para sempre’, tentam delimitar as fronteiras do possível. Contradição com as percepções da diferença. Aptidão divergente no pensar transformador a estabelecer combinações de caráter incrível, na manifestação a ultrapassar impróprios limites.

Na insuficiência semiótica, uma convenção de pretensão definitiva, não consegue incluir o admirável extrapolar das fachadas. Uma assimetria revela-se na distância aproximada de um talvez. Espécie de viver mambembe no devir exótico dos contrastes. Extraordinários trajetos na incerteza das margens. Instabilidade dos ensaios a constituir outras vias ao ser normal.

Para Nietzsche: “(...) entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário para o homem e de que do ilógico nasce muito de bom. Ele está tão firmemente implantado nas paixões, na linguagem, na religião e, e, geral, em tudo aquilo que empresta valor à vida, que não se pode extraí-lo sem com isso danificar irremediavelmente essas belas coisas.” (Humano demasiado humano, 1987).

Procura no processo de entendimento com as expressividades do cuidado e da atenção. Estranho logos num projeto de autenticidade transformadora, desafiando olhares com a ilusão de ser real. Espécie incompreendida a constituir-se nos rituais de metamorfose. Ânimos de caráter marginal na polivalência a desestabilizar vontades, a partir de então, insubmissa epistemologia para com as coisas da tradição.

O ir e vir das interseções aprecia roteiros para a desconstrução das antinomias da inflexibilidade. Imprecisão contraditória em trânsitos pela subjetividade outra, que não àquela velha conhecida. Ponto de partida aos simulacros de universalidade, a partir de então, sem forças para resistir às divergências de crescente autonomia. Um pensar reflexivo-transformador propõe múltiplas versões. Irreconhecíveis anterioridades possuem força narrativa através das incredulidades. Os disfarces e a maquiagem excessiva vão sendo abandonados, em caóticas preliminares ao (re)significar-se.

Transgressões na fantástica desordem das estruturas de ser bem-comportado. Ponto de vista onde a camisa-de-força da normalidade não se atreve pisar. Ocasião para o não-dito eficaz dos silêncios. Superação na contravenção sem hora marcada com o viver igual. As estéticas do (ir)racional ultrapassam as crises. (Re) significar intuitivo dos instantes, na associação desarticulada com as tendências da classificação.

Maurice Blanchot convida a pensar: “Qual é esse projeto secreto, inacessível e inexistente cuja pressão constante se exerce, de fato, sobre os homens, e particularmente sobre os homens problemáticos, os criadores, os intelectuais, que estão a cada instante, como que disponíveis e perigosamente novos? A ideia de uma vocação (de uma fidelidade) é a mais perversa das que podem perturbar um artista livre.”  (O livro por vir, 2005).

Para além das lógicas da correção e da permanência, múltiplos enredos inquietam-se na relação inconformada com a alienação de ser objeto. Devir constitutivo através das insignificâncias do acaso. Manifestação descontínua a desvendar um não-sei-o-que imprevisível. A partir de então, uma impressão estranha a denunciar verdades no lugar sagrado do ser incompreendido. Exploração interdita na leitura conformadora das patologias da classificação.

Para não fazer diferença, inúmeras interdições tratam de classificar e prescrever suas drogas. Ponto de partida às metamorfoses da intencionalidade. Vias de acesso a ultrapassar interdições. Quiçá a desrazão possa realizar um contraponto eficaz com as rotas conhecidas.

Palavras de aparente sem nexo aguardam escutas de compreensão. Ânimos de interseção com as disritmias e contrassensos de exagero. Ocasião para a doxa inventar-se em rituais de experimentação. Diferença recém-descoberta nos itinerários pelo avesso se ser único. Originária articulação das vontades escolhe revelar-se na simultaneidade dos desajustes. Flagrante contradição no fora de foco dos instantes, onde as provisórias convicções esboçam suas buscas.

Em Lévi-Strauss: “(...) essa lógica trabalha um pouco à maneira do caleidoscópio, instrumento que também contém sobras e pedaços por meio dos quais se realizam arranjos estruturais. Os fragmentos são obtidos num processo de quebra e destruição, em si mesmo contingente, mas sob a condição de que seus produtos ofereçam entre si certas homologias: de tamanho, de vivacidade de cor, de transparência.” (O pensamento selvagem, 2007).    

A diferença pode implicar numa desconexão com anteriores disposições. Desconstrução nem sempre explicável nos paradoxos com as fórmulas prontas. Originalidades desmerecidas em argumentos de ser impossível. As lógicas da diferença, propõe outros contextos, até então impensáveis, não fora o simulacro das insanidades.

Desestabilizar das precárias certezas, antevendo elaborações de autonomia. Improváveis devaneios no pensar instável em transição pelos recomeços. Miragens de um saber, a insinuar-se na contradição dos estruturados raciocínios. Versões incomparáveis, na ruptura dos consensos.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da singularidade”. Ed. E-Papers/RJ. 2007.

**Instagram: @helio_strassburger

domingo, 25 de junho de 2023

Apontamentos sobre a ótica das lacunas*

“(...) o que se encontra lá onde ninguém o tinha ainda encontrado(...)”

                                    Jacques Derrida 

Uma incerta busca para oferecer depoimentos sobre os incríveis momentos na década de 1990 me fez acreditar na possibilidade de divulgar, tal qual se apresentavam, os desdobramentos das primeiras sessões. Hoje vejo os eventos de consultório como instantes únicos, irrepetíveis e nem sempre possível de compartilhar.

Naqueles dias pensava em ter um registro das primeiras repercussões: críticas e ressentimentos, insegurança e temores, esperanças e sonhos. Agora consigo ver melhor as desavenças iniciais como aliadas na legitimação do novo paradigma. Longe de desmerecer o método da Filosofia Clínica, fortaleceram a ideia de paradoxo com aquilo que se buscava superar.

A conversação com amigos e colegas ia mostrando a melhor resposta para o infortúnio das verdades satisfeitas: trabalho, trabalho, trabalho. Não tínhamos tempo para o famigerado debate acadêmico e seus rituais delirantes de fogueira das vaidades. A internação em nossos espaços de atendimento buscava legitimá-los por eles mesmos. A relação de ajuda sustentando a própria relação de ajuda.

Dessa época as atividades no PSF (programa de saúde da família) na vila Alto Erechim em Porto Alegre, uma comunidade desassistida de 2.500 pessoas. No início tínhamos um barraco velho para atender, quando um entrava outro tinha de sair. O apoio gigantesco das agentes comunitárias, indo de casa em casa e oferecendo Filosofia Clínica lotou o consultório. Uma atuação clandestina e distante das disputas políticas da prefeitura. Um tempo de desafios e incrível beleza.

Sua continuidade era sustentada pelo sonho de dias melhores e na interseção com a comunidade. Os atendimentos priorizavam a população periférica e abandonada da capital gaúcha. Na clínica particular os desafios não eram menores.

Essa constatação sobre a timidez das palavras para se tentar descrever os eventos da terapia veio depois. Comecei a observar a pobreza dos exemplos quando relatados, os quais desmereciam a atmosfera fantástica dos encontros. Aquele texto de teor preliminar teve sua importância como anúncio, inclusive deixando entrevistas de haver muito mais.

A disposição dos primeiros anos de consultório, a mescla de sentimentos, percepções e desconstruções ajudam a melhorar o ser filósofo clínico. Ainda assim, a interseção aprendiz prossegue como uma incerta arte da reciprocidade. As leituras e releituras dos textos e contextos mostram um velho iniciante na concepção clínica da Filosofia.

A elaboração do novo paradigma não vem acontecendo somente com a pesquisa bibliográfica. A ela se associam a matéria-prima das práticas discursivas, consultorias, aulas, clínicas. Inacreditável saber por onde a realidade se emancipa em muitas outras. Um ponto absurdo em que a fenomenologia das sessões acontece.

Na releitura desse fragmento sinto a história como algo diferente, assim como sua autoria. Até mesmo as estéticas da errância possuem historicidade e sentido próprio. Nenhum gesto existe por si só, sua fundamentação reivindica escutas, diálogos e interseções com a fonte de onde partiu. A epistemologia forasteira se insinua por entremeios de uma vidência atemporal.

O lugar de ruptura com as certezas também se oferece na ocasião distraída de si mesma. A novidade contida na palavra falada possui intencionalidades sem pressas de tradução.

A incrível farmácia da natureza aprecia invisibilidades para se esconder e se mostrar. Seu padrão de esquiva cuida de torná-la inacreditável aos olhos da ciência normal. Em um jeito mundano de ser, esboça seu saber andarilho, compartilhando indícios de uma prática para vislumbrar raridades.

À primeira vista, parecem ser os enganos que melhor se apresentam. As hermenêuticas da convicção são as preferidas das armadilhas do olhar. Talvez os sussurros da inconclusão desvendem a vida extraordinária, cujos sinais se refletem ao seu redor. Quem sabe a fenomenologia das coisas possa encontrar abrigo no vocabulário por inventar.

Essa perspectiva de copresença dos eventos desconsiderados possui linguagem aforística e de saber imprevisível, aprecia se oferecer no espanto dos relatos incompreendidos. Sua ótica de lacuna revela apontamentos até então irreconhecíveis.

A expressividade assim disposta possui seus próprios rituais na estrutura do dizer. Sem algum viés compartilhável podem ficar uma vida inteira desmerecidos.

O mundo longe das aparências também faz escolhas, um agora de quase tudo segue indecifrável pela lógica das premissas. Num contexto em que nada é muito verdadeiro, outros amanhãs se preparam.

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2012.

**Instagram: @helio_strassburger

sábado, 24 de junho de 2023

Considerações ilegíveis ou a lógica da singularidade*

Em um lugar itinerante, a realidade_ficção, de vocabulário desconhecido, transita numa interpretação a transgredir limites. Suas andanças apreciam a retórica das incompletudes. Nessa fonte de saber incomum, um percurso eremita revela cenários de novidade.

Uma instável harmonia acontece na aproximação com a estética dos anúncios, com suas considerações ilegíveis, não fora a percepção fugidia de um talvez. Quanto ao discurso dessas irregularidades criativas, as múltiplas versões apreciam o exílio na palavra sem nome. Sugerem colagens ao roteirista de ficção, oferecendo internações na liberdade das ruas.

Essa verdade de caráter difuso também pode se encontrar na razão desmerecida; seu viés de caricatura a perseguir horizontes por vir. Na perspectiva caótica das crises há a busca pelas origens; a tradução e relação com esse devir meteórico reivindica uma abordagem de terapia aprendiz, pois a verdade desconsiderada por ficar visível por brevíssimos instantes.

Não seria pouca coisa se alimentassem o cotidiano com seu devaneio, com as peripécias de andar sobre as águas, de ultrapassar muros e levitar sobre as cidades. Achados na alquimia da raridade precursora, em que um agora inesperado esparrama vestígios de algo mais.

Seu caráter de barquinho solitário em águas desconhecidas é visionário, inventa territórios, linguagens, divulga absurdidades ao redor. Ao mencionar coisas sem sentido, se debate em tratativas com línguas estranhas para si mesmo.

Uma aproximação com a lógica desses contextos aprecia uma terra de ninguém, onde alguém se aventura navegar. A vastidão dessa região inexplorada, virgem e sem fronteiras, reverencia a magia dos desassossegos a desalojar certezas e a profetizar signos. Sua aptidão criativa desconstrói cercas, reinventa aquilo que se tinha como definitivo. Em meio à tempestade, seu viés de retórica mal formulada divulga sensações de terra à vista.

Na pessoa fora de si, o deslumbramento precursor antevê reflexos estranhos diante do espelho. A esse apreciador de atitudes ensimesmadas, em que a natureza exercita seus códigos sagrados, a mensagem desconhecida aparecer suspeita. Seu dialeto reinventa discursos e se faz ameaça ao mundo conhecido.

Um fenômeno deste tipo aprecia brincar na desconstrução das convicções. Sua feição de aspecto improvável indica uma arquitetura_esconderijo a proteger raridades. Seus rituais preferem o êxtase fugaz para denunciar suas origens.

Na pessoa assim estruturada é comum a sensação protagonista em uma história que não lhe pertence. Esboço de um íntimo labirinto aos enfrentamentos entre o antigo e o novo eu. Sendo algo nunca visto, esses eventos permitiriam múltiplos pretextos, não fora a originalidade da autoria.

Nuance de epistemologia marginal a se desdobrar em um refúgio subjetivo. Lugar onde o sujeito rascunha seus inéditos sobre zonas inesperadas, afastadas da percepção usual. O convívio com essas fontes da singularidade reinventa o papel existencial do filósofo clínico.

Os manuscritos exilados na estrutura do olhar podem servir para decifrar a transição pessoa_não_pessoa_pessoa.Os jogos de linguagem assim dispostos costumam ser a medicação refugiada na própria crise, uma vivência contraditória e ainda sem noção de suas buscas.

As tempestades apreciam encontrar esse estrangeiro na própria casa. Um endereço provisório a insinuar reconstruções. A reescrita desses eventos desconhecidos oferece ensaios de múltiplos propósitos; associa realidades extraordinárias numa estética de transbordamento; parece querer encontrar um filósofo clínico para uma tradução compartilhada do seu dicionário de absurdidades.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.   

**Instagram: @helio_strassburger   

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Ao pé da letra*

Uma clínica fundada exclusivamente no discurso literal pode ser areia movediça. O discurso da singularidade, se tomado ao pé da letra, desmerecendo os sentidos da autoria, pode significar uma sucessão de equívocos. Assim, as armadilhas se multiplicam com o suposto saber especialista e sua classificação a priori.

Ao rascunhar alguns apontamentos sobre Filosofia Clínica, é importante recordar um de seus fundamentos: a ausência de tipologias, rótulos, classificações. Nessa abordagem, vale mais o discurso partilhante. Fonte de saber e matéria-prima aos procedimentos do filósofo.

O vocabulário de cada sujeito, mesmo quando este usa as palavras de sua tribo, aprecia significados próprios, distorções, sentidos inesperados. Aqui se tem um refúgio de maior intimidade, por onde a pessoa exercita seus devaneios, desloca-se pela geografia de sua subjetividade.  Nesse lugar, descobre-se uma fonte de originais; longe dele, as expressões perdem a referência do autor.

Trata-se de um protagonista numa história que lhe pertence. Assim, a literalidade possui nuances, deslizes, desdobramentos nem sempre acessíveis ao primeiro olhar. Entre mostrar e esconder existe um teor discursivo inédito. Sua chave de acesso é a intencionalidade narrativa, por onde seu vocabulário anuncia as origens estruturais. Aqui, o olhar e a escuta reivindicam uma fenomenologia para acolher a realidade diante de si.

Para visualizar a geografia da estrutura de pensamento, é impreciso transitar entre o dado literal e suas derivações, encontrar o eixo representativo da pessoa nas entrelinhas do dizer. Buscar uma aproximação com os conteúdos refugiados na palavra. Cabe ao filósofo revisar os dados iniciais constantemente, atualizar a interseção, deslocar-se de seu lugar de conforto existencial, visitar o esboço de seu partilhante em vias de tornar-se. Talvez assim consiga emancipar o sentido de cada trama discursiva.

Inúmeros recados podem ser enviados pelos termos equívocos, incompletudes narrativas, desestruturação de raciocínio, algo de difícil compreensão, se distante do momento precursor. A disposição da intencionalidade pode ser uma alternativa para a tentação de ficar ao pé da letra. Aqui, significa encontrar o autor do próprio discurso, sua fonte de transgressão e originalidades, deixando para trás a tentação das prévias certezas.

Ao pé da letra se tem algumas noções e muitas armadilhas interpretativas. Os sobressaltos da singularidade constituem uma zona de referência. Por essa rasura compartilhada nos discursos, a pessoa pode ampliar seus horizontes. Seu teor de incompletude discursiva acolhe invisibilidades, concedendo um nome ou apelido àquilo que se desconsiderava.  

*Hélio Strassburger in “A palavra fora de si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.

**No Instagram: @helio_strassburger

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Um acolhimento aprendiz*

Um dos fundamentos da atividade clínica do filósofo é a palavra. Palavra idealizada, pronunciada, escrita, refletida, silenciada. O esboço preliminar do partilhante, quando chega ao consultório do filósofo, se apresenta em múltiplas possibilidades de expressão. Não é raro compartilhar um raciocínio desestruturado, um discurso incompleto, recheado de figuras de linguagem, as quais fazem sentido tão somente ao seu próprio dicionário.

Ao filósofo clínico compete aprender com a singularidade diante de si, com sua expressividade, significados, representação de mundo, as narrativas e demais movimentos de sua malha intelectiva.

Carlos Nejar contribui: “(...) e a imaginação produz frutos novos e imprevisíveis, sem lutar consigo mesma. Podemos ver o mundo de um navio ou de um barril, através de seus buracos. Assim pensavam Platão, Rabelais (...) e eu vejo o mundo através de minhas palavras” (Carta aos loucos, 2008).  

Nesse sentido, cabe ao filósofo clínico decodificar os conteúdos, a semiose por onde se oferecem, as axiologias, a estruturação subjetiva. Observar, acolher, compreender, dialogar com a subjetividade partilhante em ação, suas inéditas descrições, as desconstruções e reconstruções. Nesse espaço privilegiado de construções compartilhadas, a atividade clínica do filósofo se desenvolve.

Os atendimentos em consultório, hospitais psiquiátricos, consultorias e a releitura teórica qualificam a compreensão do conceito de singularidade, assim como os interesses sociais (família, mundo do trabalho, indústria farmacêutica) envolvidos na manutenção da fábrica de desatinados, tendo como base a instituição jurídica do manicômio. Fonte de aprendizado permanente, especialmente do que não fazer comas pessoas.

Em Carlos Nejar: “Oriondo, pescador, tinha a palavra como rede e sua loucura era conversar com os peixes. Não seria a loucura a única forma de relacionamento com o universo?” (Carta aos loucos, 2008).  

Para entender o fenômeno humano conhecido pelo genérico: loucura, não basta consultar os manuais diagnósticos, visitar presídios, hospitais psiquiátricos, é necessário desconstruir a trama ideológica de onde brota e se sustenta essa definição. Descrever os papéis das instituições na sociedade, denunciar a serviço de que verdade se constituem e proliferam, reciclando práticas de exclusão, controle, submissão.

A compreensão do discurso existencial partilhante reivindica mais que fórmulas prontas, receitas, classificação diagnóstica. Pressupõe a convivência do filósofo clínico com sua realidade, em busca de compreender seus instantes de crise e ressignificação, acessando, pela via compartilhada, o idioma pelo qual traduz sua desestruturação em travessia.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.  

**No Instagram: @helio_strassburger

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Noção de construção compartilhada*

Estive pensando sobre a importância das construções compartilhadas em Filosofia Clínica. Caso tivesse de eleger um dos aspectos de maior destaque em nosso trabalho, seria a competência do filósofo em realizar conjugações e ensaios com seu partilhante no espaço de laboratório.

Quando se pensa nessa forma de integração, é possível, para algumas pessoas, recordar momentos compartilhados num café depois de um filme, discutindo o roteiro e seus personagens; ou saboreando uma comidinha preparada com amor, ou num grupo de amigos; talvez um pôr do sol ou uma caminhada sem pressa. Assim, pode-se ter uma ideia de construção compartilhada entre duas ou mais pessoas.

Antes de entrar no tema propriamente dito, precisamos estabelecer uma base de apoio e sustentação para que algo assim seja possível. Para que um evento dessa natureza aconteça, são necessários alguns pré-requisitos: interseção positiva (predominantemente), exames categoriais bem apontados, semiose, o alcance da estrutura de pensamento do filósofo na relação com a estrutura de pensamento do partilhante, os movimentos da subjetividade nos relatos da historicidade, a escuta fenomenológica.

A matéria-prima, assim pensada, vai surgindo como fonte de inspiração aos procedimentos clínicos, numa dialética do ir e vir de um ponto a outro da relação. Descobrir por onde a pessoa efetiva sua comunicação e expressividade. Como se relaciona com os outros, consigo mesma, conhecer suas preferências existenciais, podem ser um bom começo para saber mais sobre seu território singular aos cuidados do filósofo.

Com a categoria tempo também é possível ajustar os integrantes desse processo ao endereço da clínica, superar os contrastes iniciais, as variações discursivas, o tom de voz, o olhar, o contexto da situação terapêutica, os ensaios de reinvenção, desconstrução, reconstrução.

Sim, no primeiro encontro já podem acontecer construções compartilhadas, talvez não com o alcance posterior, quando o filósofo tiver mais dados da pessoa. O acolhimento inicial, a escuta, a partilha, o desabafo e tudo mais que for acontecendo, inauguram um espaço privilegiado de convivência clínica.

Existem pessoas com enorme dificuldade para efetuar construções compartilhadas pelo dado presencial (olho no olho). Assim, é possível utilizar recursos como o mundo virtual (internet), telefone, cartas (alguém ainda escreve?), fotografias. No entanto, nesses casos (presencial-virtual), pode ser necessário emancipar a categoria tempo e semiose como ingredientes preliminares para qualificar a interseção e as demais etapas da terapia.

Quando alguns alunos chegam na especialização com essa dificuldade – realizar recíproca de inversão (visitar o mundo do outro) -, pode ser difícil passar os conteúdos básicos da Filosofia Clínica. Um de seus pressupostos é o talento, a sensibilidade de se colocar no lugar do outro, ainda que em perspectiva, e aprender, também a regressar ao seu eixo existencial (com a matéria-prima das visitas).

É possível exercitar essa capacidade, desenvolver certas habilidades. No entanto, penso naquelas pessoas que trazem consigo essa aptidão como um componente de sua natureza, tornando mais acolhedor os encontros de estudo, o processo da formação clínica, incluindo a teoria (especialização), a terapia pessoal, a supervisão, os primeiros anos de atendimento, a formação continuada.

Existem inúmeras possibilidades para se realizar reciprocidade, seja com o mundo do outro ou consigo mesmo, nos deslocamentos da clínica pessoal; e ainda com seu meio ambiente, ou seja, com a cidade, o bairro, a vizinhança, as pessoas na rua.

No entanto, é na terapia que essa virtude demonstra a que veio, ou seja, na percepção (clínica) investigativa do filósofo com a pessoa diante de si. É no estudar e aprender com o outro, em colocar-se (em perspectiva) na ótica do partilhante, inclusive realizando reduções fenomenológicas (suspensão provisória dos juízos) de qualidade, retornando ao seu eixo próprio, qualificando o papel existencial cuidador.

Um ponto de partida em Filosofia Clínica é a aptidão aprendiz do filósofo, pois, como não trabalha com manuais ou classificações a priori, está sempre recomeçando, em um método de acolhimento ao discurso existencial singular.  Nesse sentido, sua abordagem possui um forte componente antropológico, sendo o filósofo um guia em uma exploração compartilhada.

Assim, a competência em realizar conjugações pode mostrar muito da qualidade da terapia, evidenciando um alcance significativo da malha intelectiva do filósofo e do partilhante, numa interseção com palavras, silêncios, atitudes, gestos, elaborações, na busca de fortalecer o partilhante nos seus desdobramentos existenciais.

Penso que a aptidão de realizar construções compartilhadas seja um fundamento que pode ser aprendido, exercitado. No entanto, cabe ao filósofo clínico, com atividade efetiva em consultório, desenvolver este e outros ingredientes de sua maestria, para tratar as necessidades e contingências do partilhante.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021. 

**No Instagram: @helio_strassburger

terça-feira, 20 de junho de 2023

Dialéticas do inesperado*

“Já não é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio”

                                                              Gilles Deleuze

O pátio do hospício é um desses lugares onde o extraordinário esboça preferências. Muros, paredes e vigias atualizam a contenção do corpo, para que a alma consiga refúgio em devaneios de transgressão. Institui arranjos de novidade na arte de existir sem razão.

Na invisibilidade dos deslocamentos o compartilhar nem sempre é possível. Talvez por isso, no sujeito delirante, a realidade apareça disfarçada de irrealidade. Na estrutura inquieta, onde as visões dialogam entre si, uma vida inteira pode ser insuficiente para alguma tradução.

A desarticulação das palavras se faz cúmplice ao pensar contraditório das in-completudes. Algo mais nos anúncios desses percursos da introspecção. Talvez alguma indicação à transgressão em torno das paredes do asilo. Mirante às perspectivas fantásticas da natureza humana encarcerada pelas grades da epistemologia da tradição.  

É de saber incerto o que leva as pessoas a buscar abrigo nas lonjuras incomunicáveis dentro de si mesmas. Acaso no território livre das abstrações, onde o aprisionamento nos rituais da normalidade pode se desfazer. Prosperar das diferenças entre a experiência sensível e seus paradoxos. Os segredos indescritíveis seguem à espera de exploradores.

Quiçá a vertigem possa anteceder essas aproximações com o inexplicável da pessoa internada. Enquanto isso, as incógnitas da loucura permanecem à margem, em refúgios de aparente sem sentido. A força narrativa dessas ilegibilidades desloca-se por universos de ambiguidade.

Deleuze refere: “(...) a interioridade não para de nos escavar a nós mesmos, de nos cindir a nós mesmos, de nos duplicar, ainda que nossa unidade permaneça”. (Crítica e clínica, 2004). Perspectiva delirante a denunciar pré-tensas realidades compartilhadas. Ponto de vista onde os consensos se veem ameaçados.  

Ao transgredir o embaçamento do visar normal, surgem outras derivações: uma poética dos milagres aprecia surgir como espetáculo, onde a pluralidade dos personagens exila, momentaneamente, o sujeito originário para descortinar seus outros.

Suspeitas de múltiplas origens procuram algum sentido ao não ser elaborado nas lógicas da esquiva. Diálogos com as formas do estranho descobrem inéditos percursos por trás dos velhos mapas. Os fenômenos integrantes da singularidade se anunciam nas tramas significantes dos relatos. Ao tentar entender a origem dessas viagens, um vislumbre cosmopolita aponta indícios de terra estrangeira.

A rede de saberes incompleta-se por todo lado. Em muitos casos, a estrutura caótica, por seu desvalorizada socialmente, institui novidades, mesmo quando socializa impressões de espectador numa cena que não lhe pertence. Nos convívios de marginalidade, a expressividade decadente denuncia esconderijos onde as palavras não conseguem chegar.

O sujeito subverte as tramas e desloca forças entremeios de certeza, vigilância e domesticação. Atribui-se raridade e funda algo mais, até então calado na estrutura inconformada ao olhar de multidão. Rituais incontáveis transgridem as antinomias de lucidez e submissão.

Um rastro de saber desarrazoado sugere outras lógicas aos traços de surrealidade. Matéria-prima em delírios de re-invenção, a descontinuar-se no vocabulário errante que se faz meio de apresentação, exploração e descoberta.

Em Félix Guattari: “Os lapsos, os atos falhos, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Nas se trata de interpretá-los. Trata-se antes de detectar sua trajetória para ver se podem servir de indicadores de novos universos de referência suscetíveis de adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação.” (Caosmose - Um novo paradigma estético, 2000).   

As falas da descontinuidade parecem preferir a instabilidade dos paradoxos, para vislumbrar as quimeras da insensatez. A improvável fala de aparente sem nexo qualifica interseção com o transbordar desses instantes de perdição e encontro. Insanidade ao olhar classificador do alienista. Estética provisória a se instaurar no início sem-fim das conversações com o exagero de si mesma. Ao ensimesmar-se a singularidade se desconcerta para ser exceção.

A farmácia interior também se qualifica nos ensaios do viajante. Distorção a perder de vista na relação com suas anterioridades. Fenômenos de extravagância ao compartilhar da terapia. Pessoas atormentadas por fantasmas indescritíveis podem enfraquecer seus temores e inseguranças, na compreensão desses vislumbres de razão alterada. Propõe compartilhar o depois de amanhã ainda inexplicável ao presente. A história reescrita faz surgir atributos de profecia, até então desconhecidos para si mesma.

Labirintos excepcionais denunciam outras verdades, entrevistas na realidade delirante. Inauditos discursos assopram sentidos divergentes aos ditos de euforia.

Jacques Derrida insinua: “Como o deserto e a cidade, a floresta, onde formigam os signos amedrontados, diz sem dúvida o não-lugar e a errância, a ausência de caminhos prescritos, a ereção solitária da raiz ofuscada, fora do alcance do sol, em direção a um céu que se esconde. Mas a floresta é também, além da rigidez das linhas, das árvores em que se agarram às letras enlouquecidas, a madeira que a incisão poética fere.”  (A escritura e a diferença, 2005).

O Filósofo Clínico se faz cúmplice, em seu papel existencial, na busca de um alívio compartilhado, para o alvoroço dessas reestreias do sujeito. Embora isso tudo reivindique nomes ou apelidos, quase sempre permanece como saber obtuso. Poéticas de interrogação alternam-se na obscuridade das lacunas.

Focos de miragem na investigação das impermanências. Mutante a surgir como fragilidade bem disfarçada aos diagnósticos de objeção. A trama significante escolhe o delírio exilado nas circunstâncias para se fazer ver. Inúmeras incógnitas aguardam tradução em seus esconderijos. Fonte se originalidades a permanecer dissonância. Talvez a vida normal seja sua ilusão mais bem acabada.

Nesses percursos pela desmedida dos segredos, as intencionalidades transitam entremeios de um pretérito-futuro. Embora o deslize do traço, muitos são os inéditos à deriva. Inacreditáveis sugestões no esboço das imperfeições.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A magia da interseção*

"Minha alegria permanece impessoal e sem brilho, enquanto dela não participares como confidente – ao menos por intermédio de alguma anotação íntima e sincera sobre esta alegria em um livro que te pertence.”                                                                                                        

                                                                             Rainer Maria Rilke 


Existe um ponto de frágil equilíbrio nas relações entre as pessoas. Alianças para aproximação com o extraordinário da condição humana. Pelas rotas de acesso, a representação de cada um, vastos e inexplorados continentes podem mostrar-se.

A partir dessas circunstâncias é possível localizar as crises, lá onde elas nascem e se estruturam, evidenciando singularidades. Uma relação dialética com seus outros. Encontros com a obra aberta pela interseção, revelando desconstruções possíveis à terapia.

Nos exames categoriais, lugar onde os sujeitos vão descrevendo-se à investigação do filósofo clínico, é também um endereço para identificar as matérias-primas ao contraveneno às questões últimas.

Vestígios dessa raridade existencial se antecipam nos primeiros encontros, através do sofrer em pedidos de ajuda. Percepções em desconformidade com qualquer procura. Escutas, olhares e sentires em aprendizagem com os ritmos e sons oferecidos por essa linguagem única em formas de vir-a-ser.

O ser terapeuta interage esboçando trajetos pela intimidade da pessoa partilhante. Mergulha em águas desconhecidas, onde a abordagem metodológica é companhia para decifrar o desconhecido em propensões de se mostrar.

Pela via da interseção, peculiares experimentações se oferecem ao papel existencial do ser terapeuta. Fenômenos a constituírem mensagens em busca de tradução.  

Existem desafios, riscos e limites para se manter reciprocidades com o mundo do outro. Um dos mais significativos é por desconhecimento da própria estruturação do clínico quando no dia a dia do consultório. Desacostumado a percorrer espaços próprios, pode encontrar dificuldades nos trajetos de ir e vir da relação terapêutica. Uma despreocupação atenta se mostra como ingrediente sofisticado ao tratamento. Através dela pode-se viabilizar uma melhor suspensão dos juízos na pessoa do filósofo. Pré-requisito ao entendimento da condição do ser outro.

Um ato de amor se realiza pela magia da interseção. Aqui a confiabilidade e abertura pessoal constituem aliados poderosos para sustentá-la. É nos sobrevoos pelas contradições do partilhante onde o assunto último e as possibilidades para suas desconstruções se mostram. Privilegiado acesso às sombras do existir. Efêmeros encantamentos se dão por essas aproximações em perspectiva com o desconhecido. A partir deles pode-se encontrar melhores ângulos à reciprocidade, onde até os sonhos podem ganhar vida pelos experimentos da terapia.

As traduções de um indizível a romper com seus limites pode se apresentar na forma da objetividade clínica. Propondo rupturas com as estruturações de onde tirava forças para limitar as possibilidades de melhor viver. O respeito à literalidade da narrativa pode tornar possível uma compreensão para com as intencionalidades do sujeito em buscas de encontrar-se.

Tais eventos são difíceis de descrever. Nem sempre possuem intimidade com o melhor relato, costumam se oferecer mais à vontade pelas formas estéticas, compondo os aspectos não-verbais desses encontros. Uma espécie de expansão ao eixo tênue da normalidade, lá onde ela busca significar seu existir. Uma espécie de armadilha conceitual em formas de paixão dominante pode atualizar o papel existencial do ser terapeuta. Relações embriagadas de aparentes incongruências repercutem, na pessoa do filósofo clínico, contextos somente encontrados no outro lado da interseção.

Essas abordagens podem antecipar os acessos para com as expressividades do partilhante. Formas de aparente loucura, onde não mais importa ao sujeito justificar-se socialmente. Lá onde anteriormente buscava efetivar-se em ser normal.

A partir da historicidade, os saltos temporais, devaneios e maquiagens da hora, podem esboçar contradições a serem trabalhadas nos locais onde adquirem significados. Originais estruturações revelam-se distantes das tipologias em seu espírito de rebanho conceitual.

Indizíveis aspectos mantêm as relações assim constituídas. Facetas escondidas pelas máscaras do convívio social podem ressignificar trajetórias e impulsionar mudanças a partir do espaço de vida da terapia.

No instante dessas aproximações com o sujeito partilhante, pelo caminho a ser elaborado pela interseção, o filósofo clínico deixa-se enredar, momentaneamente, na teia sutil das estruturas do outro, em movimentação compartilhada por seus territórios.

Há poesia em todo trajeto. Lendas e sonhos são os frutos de uma ingenuidade em ritmos de desvendar-se na pessoa, ora evidenciados pela localização compartilhada das origens do sofrer. Narrativas e ressignificações se oferecem ao sujeito nessa dialética do existir. De sessão em sessão as reelaborações são oferecidas pela interseção clínica. Via de acesso ao fenômeno, muitas vezes marginal, espécie clandestina em território próprio, insinua-se por meio das contradições e crises. Essas temíveis aliadas, em antecipar novos horizontes.

Na identificação das antíteses estruturais as ressignificações podem se constituir em frestas abertas à qualificação clínica, permitindo um livre trânsito desses conteúdos pela geografia interna do sujeito, acostumando-o com a ideia desse diferente a brotar de si mesmo.

As sínteses em terapia podem ocorrer por uma transformação inequívoca, atualizada pelos impactos causados na pessoa do filósofo clínico, uma espécie de ‘fio condutor’ dessas relações com o partilhante em vias de experimentação. As repercussões no ser do terapeuta, desses trânsitos pelas absurdidades do outro, constitui um aperfeiçoamento ao indeterminado da interseção e qualificação aos tratamentos. A estruturação do clínico pode integrar a dialética da pessoa.

O filósofo clínico empresta, muitas vezes, seu ser ao não-ser da interseção. Esse aspecto costuma ser uma referência ao tratamento. Lugar onde a perspectiva do outro pode efetivar-se em ensaios, sem perder de vista as próprias buscas. Essas autogenias buscam viver melhor. Provisórias formas de irracionalidade possuem um caráter mutante, em busca de estabelecer padrões e identificar alternativas para superação dessas etapas.

Linguagem de aparência incompreensível são apropriadas pela reciprocidade do filósofo clínico, o qual não busca normalizar seu cúmplice de caminhada. Aon contrário, estabelece com ele os melhores ritmos em direção à sua originalidade, investigando e compartilhando formas de desconstrução, às vezes, tão próximas de si.

Existe um fascínio nessas descobertas. Possibilidades para um melhor viver vão se mostrando, revelando singularidades por trás de uma anterior dedicação em normalizar-se. Significados somente encontrados na subjetividade do outro em devir.

Os riscos assumidos nessa relação, pelo filósofo clínico, constituem parte insubstituível do ser terapeuta. Quando, encaminha-se em direção a esses universos, a priori, não sabe o que irá encontrar do outro lado da interseção. Sem perder a perspectiva clínica, sequer cogita como fará para retornar ao seu eixo, deixando-se impregnar pelo tempero das incongruências dessa visita ao outro da relação.

A maiêutica atualiza-se quando ocorre um desenvolvimento em direção a melhor singularidade. A matéria-prima para existir melhor costuma ser encontrada nas próprias ruínas, sob os escombros das desconstruções. Etapas de um reconstruir efetivado a partir desse lugar com aparência de terra arrasada.

Depois disso, as pessoas podem distanciar-se existencialmente das suas anteriores relações. Trata-se de desalojar a poeira dos armários, arrumar gavetas, modificar a disposição dos móveis e selecionar conteúdos guardados, verificando se existe possibilidade em manter algo das antigas conformações.

A vida exercita-se através das pessoas. Universal magia em desdobramentos de existir singular.  Atualiza-se e renova forças com a natureza desses encontros. Uma dialética em busca por viver melhor.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da singularidade”. Ed. E-papers/RJ. 2007.  

**Instagram: @helio_strassburger

domingo, 18 de junho de 2023

Fenomenologia da loucura*

"O delírio é tão perturbador e temido precisamente porque ameaça e coloca, escandalosamente, em discussão o mundo de cada um, com sua presumida obviedade.”

                                                                               Remo Bodei 

A inacreditável expressividade da loucura também se institui em lógicas do inusitado e da diferença. Intervalos de tempo por onde o fenômeno delirante exibe seus contornos. Nuança fugidia à pessoa descontinuar-se em códigos de miragem.

Dialetos de intimidade desdobram-se num sentido distorcido aos raciocínios conhecidos. Ponto de encontro à subjetividade manifestar sua ficção da realidade. As caricaturas de raridade nem sempre encontram tradução ao dizer das unanimidades. No entanto, muitas vezes, o sujeito desestruturado, quando é do seu interesse, é capaz de encontrar meios para deixar de ser inexplicável.

Rituais de invenção diária percorrem labirintos de ideias, sensações e intencionalidades. Tramas significativas de um jeito de ser incompreendido, a revelar-se na alquimia sem disfarce das imperfeições. Esparrama vestígios de múltiplos fenômenos no aparente sem nexo das buscas.

Roland Barthes refere: “ser o sentido obtuso um significante sem significado; daí a dificuldade para nomeá-lo: minha leitura fica suspensa entre a imagem e sua descrição, entre a definição e a aproximação. Se não se pode descrever o sentido obtuso, é que, ao contrário do sentido óbvio, não copia nada: como descrever o que não representa nada? O traduzir pictórico das palavras é, aqui, impossível.” (O óbvio e o obtuso, 1990).  

Para qualificar a relação, pretextos de incompletude atualizam gestos aos desvios essenciais para ser sujeito. Desdobramentos a desvendar vislumbres de possibilidade aos territórios de difícil acesso. A lógica da loucura não desmerece o extraordinário convívio divergente.

Em torno de uma história contada nas pretéritas recordações, geografias estranhas insinuam-se nos fragmentos da palavra distorcida. A narrativa pode se fazer ponte às buscas por entendimento e ressignificação. Algo mais no contraveneno ao ‘nada mais importa’ da pessoa ensimesmada.

O olhar aprendiz constitui ingrediente significativo para o estudo das réplicas distorcidas do real. Desdobramentos em ânimos de ser impensável. Sua atitude desvairada também expressa percursos inéditos em lógicas de incerteza.

A estranheza inicial concede destaque ao principiante que refere nada saber. Um sujeito exilado também denuncia lugares onde a supremacia do dizer sobre o sentir tenta encarcerar as diferenças.

Reminiscência inconclusa nos hieróglifos ainda sem sentido. O acaso é aliado eficaz ao exame desses dialetos. Ao ponto de vista fora de foco, é possível capturar nuanças de raridade. Mistura onde a lucidez mal disfarçada do desvario esconde outras verdades.

Nomenclaturas do indizível podem deixar a realidade normal desinteressante, ao descobrir-se nos paradoxos de ser inconcluso. Pluralidade dos papéis existenciais internados em um só. Atividade estética por excelência, as manifestações do sujeito da loucura, desdobra-se em rituais de autoproteção. Poucas vezes arrisca-se nalguma aproximação com os demais refugiados.  

Em Félix Guattari: “o que se pode denominar a redução esquizo ultrapassa todas as reduções eidéticas da fenomenologia, porque leva ao encontro de ritornelos a-significantes que produzem, novamente, narrativa, que refundem no artifício uma narratividade e uma alteridade existenciais, ainda que delirantes.” (Caosmose – um novo paradigma estético, 2000).

O ser incompreensível da loucura não está na pessoa do louco, mas no outro em tentativas de classificá-lo. Distorções bem posicionadas ao olhar incapaz de enxergar. O universo fantástico da loucura não é sempre excludente, também aprecia conviver e compartilhar. Ao objetivar seu aparente desatino, legitima os projetos da irracionalidade. Exímia transgressão às construções bem formatadas da tradição contrária. Outras matérias-primas na perplexidade das novas imagens.

Os manuscritos do delírio desafiam a ordem estabelecida num caos organizado. A pessoa se imprecisa em conjecturas inusitadas. Entrevistas de irrealidade os idiomas de consciência alterada referem um íntimo desconhecido, recém-chegado de outras lonjuras dentro de si.

Uma memória clandestina articula falas de impaciência. A razão entrevista nos desatinos contém artifícios de encontro e perdição. Tentativas de descrever resquícios das obras de arte contidas no absurdo.

Albert Camus contribui: “Qual é então o sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para a vida? Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro.” (O estrangeiro, 1970).

Cenários indescritíveis possuem o ser eremita, muitas vezes desconsiderado por não conseguir elucidar sua desrazão. As minorias assim dispostas apreciam o alojamento, muitas vezes acolhedor das abstrações.

Atitudes de irreflexão num tempo sem amanhã. Mesmo quando a pessoa permanece incomunicável, não deixa de elaborar produções estapafúrdias em seu retiro interior. Derivações em atalhos de descoberta por entre rotas de interdição. Rupturas e desvios insinuam percursos nem sempre possíveis de partilhar. Para uma testemunha solitária diante do inusitado, é comum o exílio nalguma forma de silêncio.

As estéticas da imaginação realizam intercâmbios com os rumores de língua nova. Não se trata de classificar ou gerar hermenêuticas, o fenômeno fala por si mesmo e requer outras habilidades para tradução.

Merleau-Ponty ensina: “o preço que se deve pagar para ter uma linguagem conquistadora, que não se limite a enunciar o que já sabíamos, mas nos introduza a experiências estranhas, a perspectivas que nunca serão as nossas, e nos desfaça enfim de nossos preconceitos. Jamais veríamos uma paisagem nova se não tivéssemos, com nossos olhos, o meio de surpreender, de interrogar e de dar forma a configurações de espaço e de cor jamais vistas até então.”  (Signos, 1991).

No convívio aprendiz com a desmedida dessas idas e vindas é possível dialogar com as formas da intimidade. Interseção positiva com a geografia interior desconsiderada como sujeito.

Por essas veredas de absurdidade, manifesta-se uma linguagem simbólica a permanecer inconclusa para a perspectiva comum. Na eternidade do instante inexplicável podem se mostrar ressonâncias de aparente sem sentido. Mesclas no discurso alterado e fugaz desses percursos forasteiros.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos.” Ed. E-papers/2009.

****Instagram: @helio_strassburger