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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sábado, 8 de julho de 2023

Algumas Palavras*

A ideia de uma Revista da Casa da Filosofia Clínica não é nova; sua inspiração existe desde o início dos anos 2000. Naquela época, no Instituto Packter, em Porto Alegre, já se pensava numa revista de Filosofia Clínica, sugestão encampada (em parte) pela Editora Escala/SP, por volta de 2006.

A edição de número 4 teve o seguinte título: “Filosofia Ciência e Vida - especial - Filosofia Clínica”. Com editorial de Faoze Chibli, os autores eram filósofos clínicos, como Lucio Packter, Monica Aiub, Luis Paulo Neves, Olga Hack, Ildo Meyer, Sebastião Soares e Hélio Strassburger. Após esse início, a publicação se afastou da ideia original.

Nos dias de hoje, a Editora Pragmatha e um grupo de colegas da Casa revivem a ideia original. A concepção de uma revista que acompanhe as estações do ano tem por objetivo socializar a nova abordagem terapêutica e contribuir com os pressupostos da especialização, contrapondo a proliferação de escolas (a qualquer custo) no Brasil e exterior; muitas delas sem os cuidados básicos quanto à qualidade dos estudos.

Nesse sentido, essa publicação se propõe ao esclarecimento - para quem vem chegando - sobre os rituais da formação: teoria, clínica pessoal, supervisão, formação continuada... Esses estudantes, muitas vezes sem maiores informações, iludidos por um carimbo do MEC, participam de cursos frágeis, sequer roçando a alma do novo paradigma. Nossa busca é a ampliação dos núcleos de pesquisa, tendo por base os atendimentos em consultório, escolas, hospitais, empresas... Oferecer um testemunho de quem atua num cotidiano de acolhimento e construção compartilhada.

A atividade clínica da Filosofia - sempre é bom lembrar - não trabalha com tipologias, classificações, a bíblia DSM, drogadição psiquiátrica. Sendo um novo paradigma, é crítica, reflexiva, aberta e revolucionária sobre seu próprio fazer terapêutico. Afasta-se das práticas da internação involuntária, choques de qualquer natureza e demais intervenções que distanciam o sujeito de sua singularidade em processo. Aproxima-se das pessoas em interseção com seu território

subjetivo.

Os textos enviados para essa publicação são analisados por um conselho editorial, levando em conta critérios como originalidade, fundamentação teórica e prática, contribuição para o desenvolvimento da nova abordagem, sem descuidar a matriz metodológica. Nosso compromisso é manter o sonho dos primeiros dias, qualificar diálogos inter e transdisciplinares, conviver com a reflexão e transformação das práticas.

Boas leituras e releituras!

*Hélio Strassburger in Editorial da Revista da Casa da Filosofia Clínica. Edição Piloto/00. Outono/2022.    

**Instagram: @helio_strassburger 

quarta-feira, 5 de julho de 2023

A palavra ressonância*

 

Escrever sobre os desdobramentos de um encontro clínico reivindica, inicialmente, um estado de redução fenomenológica. Trata-se de visualizar, descrever eventos numa matriz compartilhada, por onde acessos inesperados se apresentam.

As poéticas da terapia esboçam seus inéditos numa interseção bem-sucedida. Enredos inimagináveis, não fosse a alquimia da atuação subjuntiva, a qual, iniciada na hora-sessão, multiplica-se no cotidiano por vir. Dos múltiplos aspectos sobre seu alcance, destaca-se a alteração dos pontos de vista. Reinvenção dos roteiros pessoais ampliados pela introspecção do instante de construção compartilhada.

A cooperação da categoria tempo e lugar, aprecia multiplicar esses momentos irrepetíveis. Ao acolher compreensivamente o que ressoa, é possível modificar representações, redescobrir-se em meio ao ir e vir das novas conexões,

Os movimentos assim mencionados possuem um silencio impregnado de originais. Num presente que se amplia, outros percursos se realizam na estrutura labirinto. Na companhia de uma solidão compartilhada, esses ecos da terapia integram sentimentos, ideias, sensações. Sua expressividade atua para se redefinir. Aqui existe um território ampliado pela transcendência.

Esses conteúdos do encontro expandido continuam atuando no cotidiano da pessoa. Os agendamentos do filósofo, ao encontrar acolhimento na perspectiva partilhante, interagem em desdobramentos a perder de vista. Assim rememora, desconserta, reelabora, significa algo mais até então desconhecido, busca um procedimento singular para viabilizar essa via de acesso, por onde a intencionalidade prossegue sua atividade cuidadora.

Ao estender-se desse jeito, essa relação atualiza rumores de esboço compartilhado. Com ela é possível recompor buscas, desconstruir certezas, emancipar tópicos marginalizados. Esse norte, sul, leste, oeste, utilizando uma matéria-prima muito íntima, acrescenta algo mais ao mundo conhecido.  

A palavra terapia é a brisa leve, acolhedora, cúmplice das transgressões aos outros do mesmo. Ao vislumbrar esses instantes, reivindica-se um acordo de vontades, um território para acolher, compreender a natureza e o alcance dessas repercussões.

*Hélio Strassburger in “A palavra fora de si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.  

*Instagram: @helio_strassburger

terça-feira, 4 de julho de 2023

Filosofia Clínica e Literatura*

Conjugar Filosofia e Literatura é um convite para decifrar aspectos da estrutura de pensamento de autores e leitores. Inicialmente pela escolha de obras, bem como dos conteúdos, conjugados por sua representação de mundo. Mais que um tratado de informação dirigida, é um procedimento ao alcance das pessoas, no caso de se indicar um livro, filme, teatro. Algo que possa oferecer pistas ao leitor sobre si mesmo em interseção com a obra.  

Talvez promova um diálogo para o acolhimento de um imenso saber, compartilhado na forma de uma escritura, por exemplo. Como Jorge Luis Borges, que auxilia a compreensão e o entendimento da categoria lugar, pelos apontamentos de sua literatura, pela qual se anunciam os princípios de verdade para sua formação estrutural. Borges traduz: “As ruas de Buenos Aires são-me já as entranhas da alma.” (Borges, uma biografia, 1999). As palavras revelam, em sua narrativa, a fonte da qual brotaram.    

Na mesma direção, quando o autor busca traduzir aos pais a razão de ter escrito um ensaio sobre o poeta Evaristo Carriego, considerado ‘menor’ em sua categoria (trabalho com o qual Borges ganhou um prêmio municipal), e relata: “Carriego foi o homem que descobriu as possibilidades literárias dos difamados e andrajosos subúrbios da cidade: o Palermo da minha infância.” (Borges, uma biografia, 1999).

Sendo o mundo vontade e representação, como ensina Schopenhauer, o autor esboça sua medida de todas as coisas, na redação de suas memórias.  Outro exemplo do significado e alcance da categoria lugar, princípios de verdade, representação de mundo e paixão dominante, pode ser verificado em sua descrição sobre a biblioteca onde trabalhou: “(...) depois de ter deixado a biblioteca e nela parte da própria alma (...) em qualquer lugar do mundo em que esteja a visito nos meus sonhos. (...) sonho com a biblioteca (...) e inexplicavelmente, como costuma ocorrer nos sonhos, a biblioteca é infinita e me pertence.” (Borges, uma biografia, 1999).

A narrativa da historicidade pelo partilhante, na perspectiva fenomenológica, em versão atualizada, esboça ao olhar do filósofo uma percepção de sua estrutura de pensamento.

Para Borges o lugar significa um fundamento, seja ele empírico ou imaginário; sua essência brota das ruas e do bairro onde viveu, em interseção com os desdobramentos de sua singularidade, na descrição de suas memórias e sonhos.

Em outra obra ele se refere à importância do olhar e dos deslocamentos no seu cotidiano: “A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam” (Ficções, 2007).

Como o mundo parece e aparece surge em quase todos os seus relatos, bem como a interseção com suas paixões dominantes, axiologias, seus devaneios criativos. A singularidade, pedra de toque da Filosofia Clínica, e talvez a maior distinção metodológica das demais abordagens – por descartar tipologias – aparece a todo instante nas páginas do autor de Ficções. Não seria improvável, dentre as competências da Filosofia Clínica, acrescentar sua aptidão para o diálogo entre realidade e ficção.

Jorge Luis Borges também compartilha seus pré-juízos em relação aos alunos quando diz: “Depois de nove ou dez noites compreendi com alguma amargura que nada podia esperar daqueles alunos que aceitavam com passividade minha doutrina, e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável.” (Ficções, 2007). Um ponto significativo na literatura do mestre argentino é sua íntima relação com as repercussões da vida dos sonhos. Desse modo, sua obra agrega fantasia, cotidiano, e algo mais, sempre algo mais.

Nesse sentido encontramos uma referência importante à atividade clínica do filósofo, o qual, na interseção com seu partilhante, elabora um lugar (consultório, jardins, beira da praia, cafés) onde esse possa exercitar as possibilidades de sua estrutura de pensamento; um espaço de ensaio, experimentação, subversão em direção a sua melhor condição singular.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS.

**Instagram: @helio_strassburger

domingo, 2 de julho de 2023

Um texto absurdo*

"Quando eu morrer, meu chalé cairá comigo, para dar lugar a mais um edifício de apartamentos.”

                                                           Chico Buarque 

Imaginava um rascunho nalgum ponto entre as fronteiras do dizível. Ensaio em que realidade e ficção pudessem repaginar suas diferenças. Espécie de contragolpe na lucidez arrebatadora, a persistir naquilo que se busca esquecer. Tratativas com um quase na subjetividade por onde o dicionário ultrapassa suas origens.

Talvez desenhar a ponte ideal onde os termos do raciocínio bem estruturado pudessem conviver com as contraditórias miragens. Como uma dança fugaz para acordar a racionalidade a cegar o próprio olhar.

Nessa percepção de consciência alterada, os fenômenos seriam reconhecidos por seu apelido. Por esses monólogos sobre a ilusão da realidade e a realidade da ilusão, restaria o viés especulativo de um fim sem começo.

Roupagens estranhas a vagar pela inesperada versão, em que tudo iria parecer inacessível ou fora de lugar. Conexão às ruas pouco antes de ter um nome conhecido. Suas margens e contornos de ótica distorcida atribuem provisórias verdades.

Roland Barthes poetiza os desatinos da escrita: “O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível. O texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação.” (O rumor da língua, 2004).

Mesmo quando se atrapalha aponta contradições à estrutura do dizer, parece tentar descrever o momento em que a exceção inaugura novas regras. O presente multiplica os estranhos sons de travessia.

Uma fenomenologia da linguagem se atreve a relatar eventos extraordinários. Ao fora de si onde nada deveria surgir, a coincidência-intuitiva esparrama deixas para elucidação. Como a luva na parede a acenar para a mão que se foi.

Esse vocabulário celebra o encanto primitivo de uma porta entreaberta. Condição para certezas e dúvidas se encontrarem num closet de difícil acesso, onde as palavras se experimentam, um pouco antes do autor, na sala ao lado, realizar suas escolhas. Nesse exercício a transbordar buscas dalgum sentido, a interseção com os esconderijos da vontade multiplica verdades.

Em Jorge Luis Borges, encontra-se um frágil ponto de apoio: “Hladik preconizava o verso porque ele impede que os espectadores se esqueçam da irrealidade, que é a condição da arte.” (Ficções, 2007).

Um parêntese onde a manifestação narrativa contida no texto, convidasse a decifrar a matéria-prima por entre os dedos de quem escreve. A representação expressiva em devaneios de preparação anunciaria a fragilidade das convicções. Uma simbologia ritual prepara oferendas ao ilegível da voz.  

No laboratório difuso da especulação sem lei, os relatos a confundir o velho e o novo pluralizam o discurso. As transcrições apreciam algo mais as hermenêuticas da releitura. Mesmo o ponto que se quer final desdobra-se noutras interrogações.

A natureza improvável dessas epistemologias elabora arquiteturas em que ser e não ser se conjugam imediatamente. Nesse território sagrado às lógicas do exagero, convivem também as dialéticas do equilíbrio. Um lugar onde o impensável seduz o conceito no qual irá sobreviver.

Interessante notar a eficácia da quimera, como precursora das mensagens de maior alcance. Seu recado parece atravessar a história, como parte de um segredo bem guardado, para ser reconhecido nalguma faceta inesperada.

Djandre Rolim aponta sua estética: “Não pude dispersar os meus deslimites que caíam e refaziam os caminhos de volta a mim: e agora... encontro-me enfermo de sonhos!” (Deslimites da razão, 2010).

Por esses apontamentos de prefácio sem direção, antecipa a inocência do desacordo entre os originais e as derivações. Mesmo depois da revisão, trata de deixar indícios do que teria sido se continuasse esboço.

À investigação pretérita o que aparece é um imenso contraste, num território a preservar gestos sem amanhã, A absurdidade, então, se faz neblina ao olhar de quem procura certezas duradouras. Na incompletude da palavra transgressora, as regras de uma só direção se espalham com a estética das ventanias. Dissipação de alguma duração na descontinuidade a querer ficar.

Menção a insinuar originais no convívio de um agora. Sua lógica insensata e de aspecto delirante evoca utopias esquecidas. Quem sabe o imprevisível refaça conjecturas aos futuros entendimentos. Ao aproximar o espanto inicial com a natureza de sua descrença, a redação sem nexo desencontra-se para ser mensagem. Seu equilíbrio frágil tropeça na vertigem surpreendente dos vislumbres.

Clarice Lispector a desvendar Clarices: “O principal a que eu quero chegar é surpreender-me a mim mesma com o que escrevo. Ser tomada de assalto: estremecer diante do que nunca foi dito por mim.” (Um sopro de vida, 1999).  

Ainda assim, a atração irresistível da página em branco acena uma liberdade que deixa de existir após o primeiro traço. Contraponto das escolhas a delimitar as grades ao seu redor. Frase, parágrafo, ponto e vírgula serviriam para conter, nalgum ponto eficaz da sintaxe, o desvario conceitual a querer significar. Ao fazer referências ao passado, a hermenêutica oferece outras possibilidades à mesma pessoa.

A aventura de viver acontece aquém-além das molduras da eficácia narrativa. Nos roteiros é possível perceber o deslize para transpor a língua dos consensos.

Ao desenhar refúgios entrelinhas de saber excessivo, um velho conhecido se faz estrangeiro à natureza que muda para se manter. Na interrogação das incertezas o silêncio oferece novas versões na transgressão da palavra.

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed. Sulina. 2012.

**No Instagram: @helio_strassburger  

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Anotações sobre a estrutura do abismo*












"O homem articula-se até o fundo de si mesmo em linguagens distintas.”

                                                  Roland Barthes

É incomum a busca para alguma tradução da linguagem da loucura. Na sua relação de aparente sem nexo com a realidade, seu saber delirante costuma ser distanciado da rotina dos convívios. No caso do diagnóstico das práticas da tradição, a vida (do louco) é colocada num parêntesis, pela fundamentação a propor tratamento aos seus refúgios de abstração.

Qualificar diálogos com a natureza das desestruturas reivindica plasticidade e uma aptidão aprendiz fora do normal. Sob incerto aspecto, se trata de transitar por onde a vida acontece, mesmo quando em contrastes com o mundo conhecido.

Ao contradizer seu passado recente, constitui uma fonte inesgotável de surpresas, através das evasivas ao ser singular. Longe de uma faceta desligada da realidade, se apresenta, também, na descontinuidade das coisas inteligíveis. Para domesticar as transgressões à norma social, a internação involuntária surge recheada de fundamentação e rigor tecnicista.

O sujeito em vias de mudança expressa desconformidade com os moldes até então conhecidos da convivência social. A partir de agora um mundo estranho lhe aparece diante da janela. A família, o poder judiciário e a igreja, muitas vezes, costumam ter cumplicidade (para exclusão) entre si. O exílio partilhante surge como estratégia de fuga em abrigos de introspecção radical.

Fenômeno complexo e de difícil entendimento, se distanciado da representação da pessoa. A subjetividade da estrutura caótica não se mostra a qualquer um. Suas narrativas surgem estilhaçadas na incompletude das ideias e jeitos de ser.

Gaston Bachelard poetiza seu dizer: “As ilusões possuem uma importância decisiva, porque a vida do espírito é ilusão antes de ser pensamento.” (A terra e os devaneios do repouso, 2003).

Nem sempre é possível realizar alguma forma de conversação com a subjetividade delirante. Ela possui rituais muito íntimos de escolha e expressividade, ao se distanciar da superfície dos convívios, suas palavras podem se mostrar semiose inútil. Nuança indefinida a multiplicar-se em regras do acaso. Estranha desordem nos simulacros de reinvenção.

A pessoa existe na contrariedade das manifestações de sentido único. Ao tornar-se uma perspectiva acreditável, aproxima contextos de aspecto contraditório, sem desmerecer vivências de interioridade. Aqui se trata de acolher a matéria-prima numa fonte que se renova com as crises.

Interferências mútuas descobrem algo mais até então desprezado como insignificante. As lógicas da insensatez permitem transitar por atmosferas de irrealidade. Intercâmbio animado pela inconformidade de ser apenas uma coisa ou outra. Desequilíbrio ao pensar impensável se legitimar na obra de arte da singularidade incompreendida.

Heidegger ensina: “(...) ser o dizer projectante aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo.” (A caminho da linguagem, 2003).

A parcialidade cotidiana esboça esconderijos e preferências ao devaneio pessoal. Para melhor entender os discursos de incompletude, é impreciso descortinar atalhos de imperfeição e desnudar exílios escondidos no próprio olhar. Personagens fantásticos habitam ruelas e guetos clandestinos as unanimidades.

Os manuscritos do desatino se protegem entrelinhas de incompreensão. Persistem anônimos à normalidade, embora tenham desenvoltura nos roteiros de loucura e normalidade. Apelos extraordinários insinuam algo mais, ao reinventar normas para o absurdo das palavras.

As inquietudes do delírio apreciam esconderijos de raridade. Ensimesmadas e sem vocabulário conhecido para se expressar, escolhem um bairro existencial distante para morar. In-tradução de linguagem própria na distância dos demais, onde o tempo sem amanhã rascunha indescritíveis presentes. Abismos significativos desarticulam as fronteiras bem limitadas pelas epistemologias da tradição. A tradução dos asilos reinventa-se na impermanência de um agora.

Schopenhauer indica: “(...) ter encontrado em manicômios sujeitos com inegáveis indícios de disposições geniais que, devido à raridade proporcional da loucura, mais até que o gênio, não podem ser atribuídas ao acaso, mas justamente confirmam o que sempre se observou e explicou – que o gênio de algum lado faz fronteira com a loucura, sim, com facilidade a ultrapassa.” (O mundo como vontade e representação, 2001).

A proliferação de novas ideias antecipa-se no dizer inter-dito dos signos estapafúrdios. Ponto de vista impensável não fora sua identificação na informalidade criativa das interseções. Minúcias de imperfeição sugerem roteiros de novidade. A realidade assim disposta se esparrama na embriaguez mal disfarçada da ilusão. Complexidade inspirada na vertigem sensorial a desestabilizar o chão sob seus pés.

O sujeito, antes desses instantes de travessia e refúgio para si mesmo, muitas vezes tenta expressar seus desatinos. No entanto, tropeça na escolha das palavras e atitudes, as quais podem soar como ameaça ininteligível. Na perplexidade desses espaços imensos, a pessoa se desconstrói em labirintos de abstração. Na inquietude das crises os indícios podem se confundir.

Para Tzvetan Todorov: “(...) o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir: logo, a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao passado.” (Introdução à literatura fantástica, 2008).  

Lugar privilegiado no esboço entre o tudo e o nada de cada um. Alegorias por onde a vida também se experimenta. O desconcerto originário anuncia a natureza transformadora, mesmo quando inacabada em seus ímpetos. Sua expressividade pode deixar entrever os primórdios de uma ausência.

Nesse sentido, o saber médico tecnicista não sabe a extensão do que ignora. Novos paradigmas apreciam o esconde-esconde das lógicas do desmerecimento. Um ser mestiço chama atenção ao fato do delírio não recusar nada, sequer a medicação que busca destruí-lo, enquanto a normalidade cristaliza práticas de segregação.

Na voz intercalada dos presságios a contradição é prefácio para um dicionário da loucura. Erudição maldita contida nas lógicas do desatino. Relatos das ideias, palavras e sensações até então indescritíveis à luz do dia. Denúncia dos abismos de incompreensão por essas peças de ficção inacabada.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos. Ed. E-Papers/RJ. 2009).

**Instagram: @helio_strassburger 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Sujeito e horizonte existencial*

Uma pessoa, tendo como referência seu ângulo de visão, vislumbra e significa o mundo todo. Esses atributos surgem como novidade em meio a diagnósticos, interpretações, tipologias, distorções, recuperando a constituição e o devir existencial de cada sujeito, como um fundamento às tratativas de cuidado e atenção à vida.

A noção de estrutura de pensamento amplia o horizonte do fenômeno humano, transgredindo as lógicas da razão e da emoção. Pensando como uma malha intelectiva em movimento ou um mapa descritivo, com suas cidades, bairros, ruas e avenidas, casas, sótãos, porões, assim se manifesta esse endereço subjetivo, recheado de surpresas, além dos limites de razão x emoção.

Um lugar em que as intencionalidades atuam e são efetuados os registros de sua vida são: sua representação de mundo, seus pensamentos, suas sensações, verdades, buscas e seus valores, constituindo um diário em que são registrados os eventos – como ingredientes de um discurso existencial passado, presente e futuro. Podem se apresentar como completude ou incompletude, raciocínio estruturado ou desestruturado, acontecimentos precursores, em uma fonte de inspiração nem sempre linear.

Uma das atividades prioritárias do filósofo clínico é estudar as condições e os meios para qualificar a interseção com o devir partilhante. Nesse território em movimento ele acolhe, descarta, adiciona, subtrai, multiplica, pois toca ao filósofo ajustar seu papel existencial, de acordo com os desdobramentos e as necessidades da atividade clínica.

Talvez a percepção mais interessante, na atividade clínica do filósofo, sejam os relatos da história de vida do seu partilhante, o qual, ao compartilhar-se na terapia, lembra um autor descrevendo, com suas palavras, a porção de infinito que lhe cabe. Assim, não é rara a constatação de que a pessoa possa estar vivenciando algo ainda sem nome, pelas especificidades de sua condição única, num projeto existencial irrepetível. É compreensível que algo, até então fora da lei, ao ser compartilhado, seja página virada ou matéria-prima para reinvenção do seu autor.

Em uma cultura em vias de tornar-se, um forasteiro pode significar-se de acordo com sua melhor expressividade, tratando de proteger-se ao olhar, nem sempre cúmplice, dos princípios de verdade.

Nesse sentido, a pessoa poderá desenvolver linguagens, estratégias, refúgios próprios, e escolher onde, quando e com quem irá manifestar sua condição subjetiva.   

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.

**Instagram: @helio_strassburger

terça-feira, 27 de junho de 2023

A palavra dialética*

A rigidez do raciocínio bem estruturado, nos relatos da palavra definida, abriga um dizer de natureza inconformada. Antítese da comunicação inicial, esse teor descompassado, ao ser contradição, prescreve novos rituais para comunicar. As propostas por desmerecê-lo reafirmam sua natureza de transgressão. Seu rumor de não palavra, ao ser dizível, aponta uma estética da desrazão.

Esses relatos interditos na expressividade buscam emancipar as fronteiras discursivas. Sua desconformidade inaugura espaços, oferece ambientes para novos experimentos narrativos. Ao quebrar protocolos, emancipa aquilo por vir. A palavra dialética contém em si mesma: afirmação e negação. Um território com cheiro de terra nova se apresenta em cada página.

Na ruptura com aquilo que já foi novidade, empenha-se em querer mais. Acolhe as dinâmicas da crise como um anúncio. Sua referência de inspiração são as autogenias precursoras. Ao dizer não à rigidez do discurso completo, bem-acabado, sua alternativa é uma poética das incompletudes. Sua ótica de reverência à vida persiste em ser ensaio criativo.  

Nessa arte de evidenciar frestas, rasura-se a norma definitiva. Suas vírgulas, espaços em branco, acenam um devir de raridades. Sua lógica subversiva, ao denunciar refúgios na palavra consentida, equivale a uma premonição. Assim é possível vislumbrar algo mais além de fracassos, acertos, dúvidas. São muitas as invenções contidas na desorganização preliminar do sujeito. Sua força emancipadora reside nos anúncios de originalidade.

Sua intencionalidade de negação faz girar a vida aprisionada nas teses de sentido único. A ideia, ao sair de si mesma, desconstrói certezas para inaugurar verdades. Desse ponto de vista, uma transcendência parece flertar com os descaminhos do cotidiano. Quiçá um devir a flanar entremeios da rigidez discursiva, significando-se como arte a emancipar fronteiras.

*Hélio Strassburger in “A Palavra Fora de Si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.  

**Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Lógicas da diferença*

"Também a ciência, chegando ao fim de seus paradoxos, deixa de propor e se detém para contemplar e desenhar a paisagem sempre virgem dos fenômenos. O coração aprende assim que a emoção que nos transporta até as diferentes facetas do mundo não nos vem de sua profundidade, mas de sua diversidade.”

                                                                      Albert Camus 

Uma arqueologia atualiza-se em descobertas de múltiplas faces. Indeterminados fenômenos no lugar qualquer de todo lugar. Exceção de natureza imprevisível, se faz dissonância na concepção de outras regras. Decifrar das expressividades na superação ilimitada aos novos territórios. Vastas regiões no exílio sagrado das lógicas da singularidade.

Heterogêneas formas na superação do espírito de multidão. O devir dos contextos impulsiona, para além da mimese cristalizada dos hábitos, múltiplas estranhezas em contrassenso com o ser normal. Códigos de imprecisão excedem os momentos de crise. Reapresentação das originalidades ao olhar de espanto das incertezas.

Especulação na margem imprevisível dos mundos por descobrir. Antítese das travessias entremeios de aparente sem direção. Essência irrefletida numa fonte inesgotável de cores, sons, aromas e sabores. Um vir-a-ser ensaia discursos nas autonomias da exceção. Descontinuidade em atalhos para além do princípio de realidade.

Eric Landowski diz: “(...) ser um percurso estranho e ao mesmo tempo perfeitamente lógico: vindos de longe, eles escolheram permanecer integralmente eles mesmos, entre nós: programa de camaleão; e se por isso eles se instalam exatamente no centro, é porque esse lugar, por oposição a todos os outros, não é verdadeiramente daqui: tática do urso, que sabe que seu refúgio mais seguro para ser livremente o que ele é se encontra algumas vezes no coração da multidão, no centro cego do sistema.” (Presenças do outro, 2002).

A forma de pensar das lógicas da uniformidade, um pouco antes de preservar as raridades, a destroem. Ameaça permanente com abismos de caráter intransponível. Estreitar dos horizontes da criação na alienação de viver sem ânimos de contradição. A partir daí, tratamentos (família, escola, igrejas...) para normalizar-classificando, demarcam até onde o fora de série poderá ir, sem rasurar os moldes.

A diversidade capaz de emancipar a vida diverte-se na desarmonia com as lógicas da tradição. Distanciar eficaz das estéticas da imprecisão. Conjecturas de difícil tradução escolhem um tempo qualquer, para significar-se em caminhos outros. Internação das possibilidades por não se fazer entender. Buscas na sintaxe do acolhimento para modificar tramas, cada vez mais, em rota de colisão com os desvios da singularidade.

Remo Bodei desconstitui as rotas de tranquilidade: “Por isso, somente os artistas mais sublimes foram capazes de explorar tais áreas de extremo perigo e retornar para descrevê-las e exprimi-las para proveito de todos: Dante, Michelangelo, Shakespeare, Mozart, Goethe... A arte mais sublime encontra o seu terreno mais fértil na proximidade dos abismos.” (As formas da beleza, 2005).       

Uma autopoiésis insinua-se em signos de inconformidade. Derivação no caleidoscópio multicor dos dialetos. Descontinuidade dos trajetos na (re)invenção para si. Uma genealogia em ficções de pluralidade escolhe-se na articulação simbólica dos hermetismos. Refúgio distante na desconformidade com a rigidez das correções. A introspecção é capaz de qualificar desacordos com as regras de ser habitual.

As lógicas do ‘para sempre’, tentam delimitar as fronteiras do possível. Contradição com as percepções da diferença. Aptidão divergente no pensar transformador a estabelecer combinações de caráter incrível, na manifestação a ultrapassar impróprios limites.

Na insuficiência semiótica, uma convenção de pretensão definitiva, não consegue incluir o admirável extrapolar das fachadas. Uma assimetria revela-se na distância aproximada de um talvez. Espécie de viver mambembe no devir exótico dos contrastes. Extraordinários trajetos na incerteza das margens. Instabilidade dos ensaios a constituir outras vias ao ser normal.

Para Nietzsche: “(...) entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário para o homem e de que do ilógico nasce muito de bom. Ele está tão firmemente implantado nas paixões, na linguagem, na religião e, e, geral, em tudo aquilo que empresta valor à vida, que não se pode extraí-lo sem com isso danificar irremediavelmente essas belas coisas.” (Humano demasiado humano, 1987).

Procura no processo de entendimento com as expressividades do cuidado e da atenção. Estranho logos num projeto de autenticidade transformadora, desafiando olhares com a ilusão de ser real. Espécie incompreendida a constituir-se nos rituais de metamorfose. Ânimos de caráter marginal na polivalência a desestabilizar vontades, a partir de então, insubmissa epistemologia para com as coisas da tradição.

O ir e vir das interseções aprecia roteiros para a desconstrução das antinomias da inflexibilidade. Imprecisão contraditória em trânsitos pela subjetividade outra, que não àquela velha conhecida. Ponto de partida aos simulacros de universalidade, a partir de então, sem forças para resistir às divergências de crescente autonomia. Um pensar reflexivo-transformador propõe múltiplas versões. Irreconhecíveis anterioridades possuem força narrativa através das incredulidades. Os disfarces e a maquiagem excessiva vão sendo abandonados, em caóticas preliminares ao (re)significar-se.

Transgressões na fantástica desordem das estruturas de ser bem-comportado. Ponto de vista onde a camisa-de-força da normalidade não se atreve pisar. Ocasião para o não-dito eficaz dos silêncios. Superação na contravenção sem hora marcada com o viver igual. As estéticas do (ir)racional ultrapassam as crises. (Re) significar intuitivo dos instantes, na associação desarticulada com as tendências da classificação.

Maurice Blanchot convida a pensar: “Qual é esse projeto secreto, inacessível e inexistente cuja pressão constante se exerce, de fato, sobre os homens, e particularmente sobre os homens problemáticos, os criadores, os intelectuais, que estão a cada instante, como que disponíveis e perigosamente novos? A ideia de uma vocação (de uma fidelidade) é a mais perversa das que podem perturbar um artista livre.”  (O livro por vir, 2005).

Para além das lógicas da correção e da permanência, múltiplos enredos inquietam-se na relação inconformada com a alienação de ser objeto. Devir constitutivo através das insignificâncias do acaso. Manifestação descontínua a desvendar um não-sei-o-que imprevisível. A partir de então, uma impressão estranha a denunciar verdades no lugar sagrado do ser incompreendido. Exploração interdita na leitura conformadora das patologias da classificação.

Para não fazer diferença, inúmeras interdições tratam de classificar e prescrever suas drogas. Ponto de partida às metamorfoses da intencionalidade. Vias de acesso a ultrapassar interdições. Quiçá a desrazão possa realizar um contraponto eficaz com as rotas conhecidas.

Palavras de aparente sem nexo aguardam escutas de compreensão. Ânimos de interseção com as disritmias e contrassensos de exagero. Ocasião para a doxa inventar-se em rituais de experimentação. Diferença recém-descoberta nos itinerários pelo avesso se ser único. Originária articulação das vontades escolhe revelar-se na simultaneidade dos desajustes. Flagrante contradição no fora de foco dos instantes, onde as provisórias convicções esboçam suas buscas.

Em Lévi-Strauss: “(...) essa lógica trabalha um pouco à maneira do caleidoscópio, instrumento que também contém sobras e pedaços por meio dos quais se realizam arranjos estruturais. Os fragmentos são obtidos num processo de quebra e destruição, em si mesmo contingente, mas sob a condição de que seus produtos ofereçam entre si certas homologias: de tamanho, de vivacidade de cor, de transparência.” (O pensamento selvagem, 2007).    

A diferença pode implicar numa desconexão com anteriores disposições. Desconstrução nem sempre explicável nos paradoxos com as fórmulas prontas. Originalidades desmerecidas em argumentos de ser impossível. As lógicas da diferença, propõe outros contextos, até então impensáveis, não fora o simulacro das insanidades.

Desestabilizar das precárias certezas, antevendo elaborações de autonomia. Improváveis devaneios no pensar instável em transição pelos recomeços. Miragens de um saber, a insinuar-se na contradição dos estruturados raciocínios. Versões incomparáveis, na ruptura dos consensos.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da singularidade”. Ed. E-Papers/RJ. 2007.

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