Um não-ser como travessia
A categoria lugar - em Filosofia
Clínica - refere-se à condição objetiva ou subjetiva de uma pessoa. Quando determinante,
contribui para decifrar aquilo que a constitui como devir.
Os endereços existenciais por
onde transcreve sua realidade, apreciam os deslocamentos para rascunhar
horizontes, um pouco antes de ser algo palpável.
Em Dostoiévski: “Fico imensamente
feliz por ter descoberto que trago paciência em minha alma por tanto tempo, que
não desejo as coisas materiais e não preciso de nada mais que livros e a
possibilidade de escrever e de estar sozinho por algumas horas todos os dias. (...)”.
(Correspondências, 2011. Pág. 78).
A referência de lugar, para uma
pessoa, pode significar o mundo inteiro em processo de existir, uma vez que se
entrelaça com sua condição singular, nem sempre compartilhável ao olho nu dos princípios
de verdade. A malha intelectiva e os demais aspectos integrantes de uma estrutura
de pensamento, podem ser incabíveis na formatação social onde sua vida acontece.
Para outras as referências partem
de fora para dentro, ou seja, são agendadas pelo meio onde convivem com o mundo
do trabalho, igrejas, avenidas, teatros...
João do Rio contribui: “(...) Se
as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião. Há
ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até
ruas sem religião.” (A alma encantadora das ruas, 2009. Pág. 38).
Ao transitar pelas calçadas é
possível ouvir os sons, sentir os cheiros, abraçar a brisa, vislumbrar as cores
ao redor e, ao regressar ao universo subjetivo, ressignificar ou integrar isso
tudo para emancipar suas fronteiras.
Algumas pessoas serão sensíveis
ao impacto das ruas, outras irão transitar invisíveis, sem ficar refém de uma
ou outra circunstância objetiva. Essas, quando identificadas, parecem flanar
pelas calçadas da cidade, por onde deslocam seus dias numa sensação de quase intocáveis.
Nina George traduz: “(...)
Monsieur Perdu observou como o que lia alterava seus contornos de dentro para
fora. Viu que Anna havia encontrado em si uma caixa de ressonância que reagia às
palavras. Era um violino que aprendia a tocar a si mesmo.” (A livraria mágica
de Paris, 2019. Pág. 38).
Existem livros e personagens que
integram a relação familiar de quem lê. Como se fora seres de carne, osso,
coração, sonhos, revestidos de papel e palavras. Para esses, os livros têm
alma, são insubstituíveis, sugerem a extensão do próprio corpo, ao retornar a
vida pelas mãos de um leitor.
Nesse sentido, não se refere a
categoria lugar, como algo estático, impregnada de raízes e freios existenciais
- os quais podem fazer sentido para algumas pessoas - mas um endereço
existencial que se desloca para se encontrar.
Aquele abraço,
*hs