Um aspecto significativo do papel
existencial cuidador, ao acolher o partilhante, diz respeito ao padrão
autogênico em que esse se encontra, ou seja, qual a língua por onde se
expressa, sua semiose preferencial, seus deslocamentos internos, sua
circunstância pessoal.
A observação cuidadosa dessa
referência inicial costuma conceder, ao filósofo clínico, uma via de acesso aos
ingredientes subjetivos, para que ele possa elaborar os exames categoriais e
constituir a base da terapia. Nessa prática aprendiz destacam-se os termos
agendados no intelecto, a estruturação de raciocínio, o discurso completo ou
incompleto, a semiose, a interseção; assim é possível acessar indícios preliminares
da malha intelectiva do partilhante, em busca de qualificar a compreensão das
suas narrativas.
Fernando Pessoa diz assim: “(...)
ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam a língua em
que fala. (...) os gênios inovadores foram sempre, quando não tratados como
doidos (Verlaine, Mallarmé), tratados como parvos (Wordsworth, Keats, Rossetti)
ou como, além de parvos, inimigos da pátria, da religião e da moralidade como
aconteceu com Antero de Quental.” (Alguma Prosa, 1990).
Estabelecer contato com outra
pessoa em clínica reivindica um pressuposto fundamental: a competência do
filósofo em realizar uma recíproca de inversão de qualidade, ou seja, visitar o
mundo do partilhante com um misto de redução fenomenológica, de analítica da
linguagem, de hermenêutica compreensiva, de epistemologia, do papel existencial,
comprometido com a aprendizagem dessa singularidade se apresentando numa versão
singular.
Veja-se o caso dos hospitais
psiquiátricos, onde a regra é a internação e medicação de pessoas, por não
conseguirem se fazer entender ao olhar desprovido de método para acolher suas
crises de ressignificação. Assim se apresenta uma lacuna na formação
psiquiátrica, em que os alunos são ensinados a reverenciar o deus farmácia,
apresentado com pompa e circunstância como o recurso dos recursos.
Nesses casos existe uma
incapacidade familiar, de amigos e médicos de compreender os deslocamentos que
a pessoa vivencia, muitas vezes modificando a forma e o conteúdo de sua
expressividade, com desdobramentos incompreendidos em seu cotidiano. Questão de
método!
Fernando Pessoa contribui: “Como
pode uma época compreender ou apreciar aquilo que, por definição, a supera?”
(Alguma Prosa, 1990).
Sob muitos aspectos essas lógicas
propõem tratar e normalizar o desconhecido, reafirmando a manutenção de suas
referências. Nesse sentido, tudo aquilo que se apresenta numa língua diferente
costuma ser desmerecido ou catalogado em alguma patologia. Aqui se
oferece, como contraveneno, uma hermenêutica filosófica, por onde o filósofo
clínico apresenta critérios para compreender o outro, a partir de seu jardim
existencial.
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto
Alegre/RS. 2021.
**Instagram: @helio_strassburger