"O homem articula-se até o fundo de si mesmo em linguagens distintas.”
Roland Barthes
É incomum a busca para alguma tradução
da linguagem da loucura. Na sua relação de aparente sem nexo com a realidade,
seu saber delirante costuma ser distanciado da rotina dos convívios. No caso do
diagnóstico das práticas da tradição, a vida (do louco) é colocada num
parêntesis, pela fundamentação a propor tratamento aos seus refúgios de
abstração.
Qualificar diálogos com a
natureza das desestruturas reivindica plasticidade e uma aptidão aprendiz fora
do normal. Sob incerto aspecto, se trata de transitar por onde a vida acontece,
mesmo quando em contrastes com o mundo conhecido.
Ao contradizer seu passado
recente, constitui uma fonte inesgotável de surpresas, através das evasivas ao
ser singular. Longe de uma faceta desligada da realidade, se apresenta, também,
na descontinuidade das coisas inteligíveis. Para domesticar as transgressões à
norma social, a internação involuntária surge recheada de fundamentação e rigor
tecnicista.
O sujeito em vias de mudança
expressa desconformidade com os moldes até então conhecidos da convivência
social. A partir de agora um mundo estranho lhe aparece diante da janela. A
família, o poder judiciário e a igreja, muitas vezes, costumam ter cumplicidade
(para exclusão) entre si. O exílio partilhante surge como estratégia de fuga em
abrigos de introspecção radical.
Fenômeno complexo e de difícil
entendimento, se distanciado da representação da pessoa. A subjetividade da
estrutura caótica não se mostra a qualquer um. Suas narrativas surgem
estilhaçadas na incompletude das ideias e jeitos de ser.
Gaston Bachelard poetiza seu
dizer: “As ilusões possuem uma importância decisiva, porque a vida do
espírito é ilusão antes de ser pensamento.” (A terra e os devaneios do repouso,
2003).
Nem sempre é possível realizar
alguma forma de conversação com a subjetividade delirante. Ela possui rituais
muito íntimos de escolha e expressividade, ao se distanciar da superfície dos
convívios, suas palavras podem se mostrar semiose inútil. Nuança indefinida a
multiplicar-se em regras do acaso. Estranha desordem nos simulacros de
reinvenção.
A pessoa existe na contrariedade
das manifestações de sentido único. Ao tornar-se uma perspectiva acreditável,
aproxima contextos de aspecto contraditório, sem desmerecer vivências de
interioridade. Aqui se trata de acolher a matéria-prima numa fonte que se
renova com as crises.
Interferências mútuas descobrem
algo mais até então desprezado como insignificante. As lógicas da insensatez
permitem transitar por atmosferas de irrealidade. Intercâmbio animado pela
inconformidade de ser apenas uma coisa ou outra. Desequilíbrio ao pensar
impensável se legitimar na obra de arte da singularidade incompreendida.
Heidegger ensina: “(...) ser o
dizer projectante aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo
advir, enquanto tal, o indizível ao mundo.” (A caminho da linguagem, 2003).
A parcialidade cotidiana esboça
esconderijos e preferências ao devaneio pessoal. Para melhor entender os
discursos de incompletude, é impreciso descortinar atalhos de imperfeição e
desnudar exílios escondidos no próprio olhar. Personagens fantásticos habitam
ruelas e guetos clandestinos as unanimidades.
Os manuscritos do desatino se
protegem entrelinhas de incompreensão. Persistem anônimos à normalidade, embora
tenham desenvoltura nos roteiros de loucura e normalidade. Apelos
extraordinários insinuam algo mais, ao reinventar normas para o absurdo das
palavras.
As inquietudes do delírio
apreciam esconderijos de raridade. Ensimesmadas e sem vocabulário conhecido
para se expressar, escolhem um bairro existencial distante para morar.
In-tradução de linguagem própria na distância dos demais, onde o tempo sem
amanhã rascunha indescritíveis presentes. Abismos significativos desarticulam
as fronteiras bem limitadas pelas epistemologias da tradição. A tradução dos
asilos reinventa-se na impermanência de um agora.
Schopenhauer indica: “(...)
ter encontrado em manicômios sujeitos com inegáveis indícios de disposições
geniais que, devido à raridade proporcional da loucura, mais até que o gênio,
não podem ser atribuídas ao acaso, mas justamente confirmam o que sempre se
observou e explicou – que o gênio de algum lado faz fronteira com a loucura, sim,
com facilidade a ultrapassa.” (O mundo como vontade e representação, 2001).
A proliferação de novas ideias
antecipa-se no dizer inter-dito dos signos estapafúrdios. Ponto de vista
impensável não fora sua identificação na informalidade criativa das
interseções. Minúcias de imperfeição sugerem roteiros de novidade. A realidade
assim disposta se esparrama na embriaguez mal disfarçada da ilusão. Complexidade
inspirada na vertigem sensorial a desestabilizar o chão sob seus pés.
O sujeito, antes desses instantes
de travessia e refúgio para si mesmo, muitas vezes tenta expressar seus
desatinos. No entanto, tropeça na escolha das palavras e atitudes, as quais
podem soar como ameaça ininteligível. Na perplexidade desses espaços imensos, a
pessoa se desconstrói em labirintos de abstração. Na inquietude das crises os
indícios podem se confundir.
Para Tzvetan Todorov: “(...) o
maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir:
logo, a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a
fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao passado.” (Introdução à
literatura fantástica, 2008).
Lugar privilegiado no esboço
entre o tudo e o nada de cada um. Alegorias por onde a vida também se
experimenta. O desconcerto originário anuncia a natureza transformadora, mesmo
quando inacabada em seus ímpetos. Sua expressividade pode deixar entrever os
primórdios de uma ausência.
Nesse sentido, o saber médico
tecnicista não sabe a extensão do que ignora. Novos paradigmas apreciam o
esconde-esconde das lógicas do desmerecimento. Um ser mestiço chama atenção ao
fato do delírio não recusar nada, sequer a medicação que busca destruí-lo,
enquanto a normalidade cristaliza práticas de segregação.
Na voz intercalada dos presságios
a contradição é prefácio para um dicionário da loucura. Erudição maldita
contida nas lógicas do desatino. Relatos das ideias, palavras e sensações até
então indescritíveis à luz do dia. Denúncia dos abismos de incompreensão por
essas peças de ficção inacabada.
*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos. Ed. E-Papers/RJ. 2009).
**Instagram: @helio_strassburger