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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 19*

 

                                        A Singularidade e os Novos Tempos 

Num dia desses, em sua coluna, o jornalista, escritor, tradutor, Juremir Machado da Silva, Doutor em comunicação e professor universitário na FAMECOS/PUC em Porto Alegre, “Doutor Honoris Causa” pela Universidade Paul Valéry Montpellier III na França, dentre muitos outros méritos e competências, escreveu algo que nos interessa.

Um pouco antes, lembro de alguns dos principais jornais brasileiros, como Zero Hora (aqui no Sul), O Globo (no RJ), a Folha (em SP), só publicarem textos (alguns sofríveis) se partirem de escritores com alguma posição social reconhecida. Em suas descrições a maioria é: diretor de alguma coisa, coordenador de outra. Parece que os editores são reféns de seus pré-juízos.   

No caso do Juremir existe uma conciliação entre o talento e a sensibilidade de escritor, jornalista, educador, e suas publicações, antes no Correio do Povo (tradicional publicação gaúcha), agora noutros espaços, como: o Matinal Jornalismo. Nem se fala na farta produção literária!

Recordo com carinho e gratidão, do espaço que abriu para publicação no caderno de sábado do Correio do Povo, de um artigo: “Além da Psicanálise – A Filosofia Clínica”. Esse fato ocorreu por ocasião do V Colóquio Nacional de Filosofia Clínica, realizado na Assembleia Legislativa do RGS em 2016. Esse é um aspecto que identifica o tal borogodó, ou seja, quem, mesmo nas leituras preliminares, consegue reconhecer as faíscas de algo novo.   

Por outro lado, na mesma direção, em meio a tanta mesmice sob a rubrica de inovação, penso, mas não digo: “Deixa de ser colono (no pior sentido da expressão) e sossega com essa mania de acolher a enganação e consumir porcaria!”.

Mas quero falar de outra coisa. Em seu texto de 18/01/2024, no espaço: “Matinal Jornalismo”, Juremir tece algumas críticas reflexivas sobre o fenômeno da privatização desvairada em nosso estado. Diz o autor: Quase tudo no RS continua chegando com 30 ou 40 anos de atraso. Grandes cidades europeias privatizaram água e luz nos anos 1990. Têm voltado atrás recentemente.” Na sequência compartilha: “Enquanto cidades europeias caminham para o transporte público e gratuito, Porto Alegre privatiza o que tinha de melhor. Sucateia e privatiza”. Esses tópicos têm relação com o recente ciclone que passou por aqui, deixando a maioria da população sem luz e água por vários dias.

Diz ainda: “Os modernizadores fanáticos substituíram o bonde pelo ônibus, os trens pelo transporte rodoviário, a sacola de pano pelo plástico...” (...) “Depois vão andar de bonde e de trem na Europa.”  

Ora, ora, essa cegueira é clássica. Vejam-se os casos: Van Gogh, na Pintura, que nos deixou aos 37 anos, viveu de 1853 a 1890. Em vida teve como reconhecimento o descaso, a miséria dos seus contemporâneos. Suas obras hoje valem milhões em qualquer moeda. Frantz Kafka, na Literatura, que nos deixou aos 31 anos, viveu de 1883 a 1924, sua obra foi desconhecida em vida. Hoje seus textos são fonte de inspiração. Friedrich Nietzsche, na Filosofia, que nos deixou aos 56 anos, viveu de 1844 a 1900, teve uma vida errante e suas ideias foram acidamente criticadas, descartadas pelos seus contemporâneos. Hoje é referência. Virgínia Woolf, na Literatura, que nos deixou aos 59 anos, viveu de 1882 a 1941, outro caso de descaso em vida. Teve algum reconhecimento tímido, por alguns amigos e colegas de profissão. Hoje festejada e acolhida.  

Alguns anos ou séculos depois, essas genialidades costumam ser descobertas, como resultante da pesquisa de um público seleto, com borogodó para compreender, traduzir, ressuscitar aos nossos olhos, ouvidos e mentes, a magia despercebida por seus contemporâneos.  

Quer inovação? Leia e releia os clássicos! A novidade que anda por aí, passa longe dos festejos, fogos de artifício, unanimidades de rebanho. Nas entrelinhas disso tudo, existem sujeitos convivendo com a singularidade dos novos tempos.   

Aquele abraço,

*hs

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 18*

 

                                         Sobre palavras ao vento

Outro dia li uma expressão - nas redes sociais - de uma ex-aluna da Filosofia Clínica. Profissional inteligente, sensível, talentosa. Ela escreveu: “(...) gosto dessas coisas. É óbvio que isso é assim pra mim!”.

É possível que algo seja óbvio a partir de uma cegueira da própria estrutura de pensamento, pois essa não consegue enxergar-se enquanto olha, possivelmente por se tratar do mesmo tópico utilizado para ver. Noutras palavras, poderíamos perguntar: para quem é óbvio o óbvio que se apresenta?

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer ajuda a entender essa espécie de coisa, ou seja, sendo o mundo vontade e representação, ao nos depararmos com algum fenômeno existencial, seja ele sensorial ou abstrato, por detrás de nossas lentes utilizadas para enxergar, existe um constructo intelectivo refém de suas próprias circunstâncias.

Assim é possível entender a expressão acima - de alguém graduada e pós-graduada - a partir de seu referencial epistemológico ofuscado por uma fala ensimesmada.

Por outro lado, na mesma direção, esse tímido exemplo, serve para traduzir as dificuldades de um novo paradigma, nos dias de seu nascimento e tentativas de compartilhar a novidade com os contemporâneos. Dentre as principais causas, se apresenta a intoxicação da geração atual com as abordagens reconhecidas, impregnadas de publicações, congressos, patrocínios, cursos acadêmicos... ciência normal!

Um dos pressupostos para quem se atreve a investir seus dias e noites em uma nova abordagem - como a Filosofia Clínica - é que terá de encontrar alguma alegria e realização, tendo por companhia o escracho, a crítica maldosa, o desmerecimento de quem - a qualquer preço - tenta manter sua zona de conforto metodológica, financeira (reserva de mercado).

Foi esse um dos motivos pelo qual deixei a formação, por não vislumbrar candidatos com borogodó para a nova metodologia cuidadora. Dentre os que se candidatavam aos estudos, tanto àqueles que estudaram comigo nos 21 anos pelo Brasil, como quem se candidatou nos últimos tempos, testemunhei - com exceções - palavras ao vento.  

A maioria dos estudantes ou candidatos, não gosta de estudar. São reféns do seu contexto de vida, suas escolhas, a preguiça intelectual, hipocrisia social, ou do sistema capitalista, que busca transformar tudo em necessidade pecuniária. Assim, preferem cursos que ofereçam “atalhos” para aquisição de um diploma “fácil”.

O que não percebem, no momento desses “estudos”, é que, exatamente por isso, terão dificuldades com a nova profissão. Nesse sentido, podem colocar a responsabilidade na nova abordagem, sem suspeitar que foram cúmplices de uma fraude.    

Aquele abraço,

*hs

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 17*

                              O que você vê quando olha? 

Para acessar uma representação de mundo (Schopenhauer), não se trata de concordar ou discordar, aderir ou não aderir, odiar ou se apaixonar, mas aprender a conviver com as lógicas da diferença. Se você tem a curiosidade das pessoas inteligentes, poderá gostar de exercitar suas habilidades em comum acordo ou desacordo com essas linhas.

Aqui não se trata de agradar, desagradar, convencer, mas um convite para saber mais, conhecer alguns aspectos da lógica das contradições, desenvolver os próprios argumentos e reflexões, pensar diferente e isso não ser um crime. Ao conviver com outras formas de percepção das coisas, é possível ampliar o ângulo de visão.

Transitar por fenômenos até então desconsiderados, pode servir a um processo de autoconhecimento e descoberta de novas facetas da realidade. Talvez uma das maiores dificuldades para se compreender o conceito de singularidade, resida nos agendamentos históricos e sua proposta de controle pela generalização e classificação do fenômeno humano.  

A ilusão de se ter um controle sobre a natureza humana, tem produzido uma busca incessante pela manutenção e desenvolvimento das ciências humanas numa só direção (ideológica). Livros são escritos, filmes produzidos, peças de teatro e seus roteiros, tem servido para dizer o que e como pensar, como agir, o que comprar, no que acreditar, educando o olhar para ver sempre o mesmo em todo lugar.

As tipologias - recheadas de fundamento - ao buscar um padrão para a diferença, servem as ideologias do consumo, transformando sujeito em objeto. Vale lembrar uma das definições psiquiátricas para se ter uma pessoa saudável: o fato dela ser ou não produtiva.

Um exemplo dos obstáculos para se pensar a singularidade é o caso das comunidades LGBTQIA+, ou seja, mesmo quem busca uma identidade, acaba reivindicando uma classificação para se ver representado. Penso que, se tivéssemos uma sociedade não tipológica, as pessoas poderiam ser reconhecidas pelo nome, sobrenome, e não pela cor da pele, raça, orientação sexual, gênero, religião, política... Quem sabe assim o convívio dos princípios de verdade com a expressividade se tornasse acolhedor, agradável, humano.

O tópico busca de nossos dias, dentre outras coisas, sugere um encaminhamento veloz para a fabricação de humanoides. Veja-se o caso do desenvolvimento tecnológico, o qual se assemelha a uma Ferrari ou Lamborghini em relação a vida da maioria das pessoas e suas carroças da idade média.

Ao mencionar essa realidade, talvez a lógica das contradições, possa realizar o milagre de desconstruir os prognósticos que se avizinham. Nesse sentido, esse texto estar equivocado pode significar algo a mais, em meio a cegueira coletiva ao redor da fogueira.  

Aquele abraço,

*hs  

   

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 16*

                           Quem ou o que descreve a sua história? 

Em seu texto ‘A casa dos loucos’ Michel Foucault ensina: “No fundo da prática científica existe um discurso que diz: ‘Nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que, no entanto, está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar.’” (Microfísica do poder, 1990. Pág. 113).  

Se pensarmos na realidade latino-americana, da qual fazemos parte, é possível cogitar sobre a cegueira existencial de nossos dias. Levados por um espírito de rebanho, frequenta-se, cada vez mais as redes sociais, igrejas, farmácias, festas rave, manicômios...  

O governo anterior do Brasil - sabendo o que estava fazendo - vetou disciplinas como: Filosofia, Sociologia, História e afins, dos currículos escolares. Um sistema de ensino capenga e refém de profissionais despreparados (veja-se a lógica EAD), multiplica o espírito de faz de conta. Por outro lado - em sua maioria periféricas - as famílias se multiplicam como “cucarachas” (Henfil - Diário de um cucaracha).

Veja-se o caso da universidade - instituição que poderia fazer a diferença -, a qual se encontra (em nosso país) submissa a camisa de força do MEC, professores reféns da lógica contracheque, homenagens ao sr. diretor, chefias de departamento, publicações indexadas (quase ninguém lê!).   

Uma questão: ‘O que acontece quando, apesar desse contexto, ainda assim, aparecem novos paradigmas, invenções, maestrias no mundo da ciência, nas belas artes, na música, no teatro...?’ O que tenho escutado: “A maioria encontra o caminho da estrada, alguns se refugiam nalgum lugar para proteger suas ideias, pesquisas, práticas, outros fazem outras coisas”. Penso eu: ‘Na multidão se vivencia uma solidão compartilhada’.

Nossos dias se assemelham a caverna de Platão (428 a.C.-347 a.C), onde as pessoas, amarradas umas às outras, viviam as imagens refletidas no fundo da caverna... Se alguém conseguisse reencontrar a vida lá fora, ao regressar seria encaminhado a ‘casa dos loucos’, onde seus delírios seriam normalizados pelo pajé alienista. Ainda assim, esses inéditos seguem imprimindo seus sinais por aí.    

Nesse sentido, uma perspectiva fenomenológica, de hermenêutica compreensiva, analítica, divulgadas em palestras e cursos, inovações, curas, ainda é experienciado por poucos. Talvez uma educação voltada para as descrições e acolhimento da singularidade pudesse anunciar melhorias. Lembrando que isso tudo já estava borrado quando chegamos por aqui. Agora nos resta ir até o fim, deixando algumas pistas do que conseguimos vislumbrar e compartilhar pelo caminho.

Aquele abraço,

*hs  

domingo, 14 de janeiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 15*

 

                       Sobre anjos, demônios e seus disfarces

A história é rica em fatos envolvendo uns e outros. O âmbito das possibilidades costuma estar associado a uma interseção da pessoa com as circunstâncias históricas onde viveu, sobreviveu, desenvolveu sua singularidade.  

Se fôssemos levar a sério o que os princípios de verdade (documentos da abordagem psi) proclamam como “loucura”, não sairíamos mais de casa ou olharíamos no espelho.

Um exemplo: entre 1863 e 1864, no centro de Porto Alegre, quando ocorreram fatos conhecidos como: os crimes da rua do Arvoredo (hoje Fernando Machado), ou seja, José Ramos e sua esposa Catarina Palse, aliados com o açougueiro alemão Carlos Klaussner, produziam e vendiam linguiças de carne humana. José e Catarina foram condenados por 2 assassinatos em abril de 1864. Os demais crimes ficaram extraviados para a memória.

Reza a lenda que a demora na descoberta dos fatos, ocorreu pelo sucesso das linguiças na capital gaúcha. Existem depoimentos - clandestinos - que afirmavam ser a carne mais saborosa até então experimentada. Algo semelhante (canibalismo) aconteceu na queda do avião nos Andes em outubro de 1972. Talvez a diferença seja a natureza dos argumentos utilizados, a prática é a mesma.

No outro lado do oceano, na festejada Europa, berço de espécimes como: Calígula, Napoleão, Nero, Hitler, Mussolini, Stálin, Franco... Ainda nos dias de hoje, as guerras e genocídios proliferam, sob os mais arrazoados argumentos. Práticas atrozes, que, muitas vezes, se refugiam em diagnósticos psiquiátricos, para não responder por seus crimes.  

A questão metodológica – mais uma vez – se apresenta como um divisor de águas, ou seja, ao interditar alguém num Instituto Psiquiátrico Forense (na ausência deste, um hospital psiquiátrico ou geral pode servir), com um diagnóstico de doença mental, sob muitos aspectos, se livra o assassino ou criminoso de guerra do cumprimento integral da pena.

Lembro um hospital psiquiátrico, comprado por facções criminosas no Brasil, para que pudessem enviar para lá alguns comparsas, como: matadores de aluguel, pois assim teriam uma vida melhor, inclusive com facilidades para fuga. Tudo dentro da lei. Desde o diagnóstico psiquiátrico à sentença judicial e o cumprimento da pena.  

René Descartes (séc. XVII) ensina: “As maiores almas são tanto capazes dos maiores vícios como das maiores virtudes”. Sei que existem almas como Mahatma Gandi, Martin Luther King, e muitas outras.

Se pensarmos com Maquiavel ou Thomas Hobbes, abraçamos a tese de que a natureza humana é essencialmente má. Se entendermos o homem com Rousseau ou Marx, iremos acreditar que as pessoas nascem boas, mas a sociedade as corrompe. Ainda àquelas que acreditam no “anjinho barroco” e suas derivações, as quais se deve levar em conta, enquanto for possível. Sem contar os anjos e demônios disfarçados que andam por aí.   

Aquele abraço,

*hs

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 14*

 

                                    Quem ou o que significa você? 

Outro dia uma partilhante compartilhou um evento ocorrido quando da sua primeira sessão com o psicanalista. Algo que a fez buscar outra abordagem terapêutica.

Dizia ela: “O analista, alguém que eu nunca tinha visto antes, na primeira sessão, após as palavras iniciais, orientou que me deitasse no divã e ficasse à vontade. A seguir, como faço em minha casa, tirei as sandálias e me deitei confortavelmente. Imediatamente o doutor fez a seguinte afirmação: ‘sei, sei, tu estás querendo me seduzir mostrando teus pés (...)’. Isso me fez muito mal, pensei que eu tinha ido ao lugar errado...”

Esse exemplo - tenho muitos outros - serve como reflexão metodológica do que não fazer em Filosofia Clínica. Um alerta a quem segue indiscriminadamente as hegemonias e as modas do momento, os agendamentos da publicização e outros aspectos da ideologia dos princípios de verdade.

Vejo esse relato como uma questão de método, ou seja, como se apresenta numa abordagem de hermenêutica interpretativa, de onde um saber-poder especialista (psicanalítico), refere saber mais sobre seu paciente do que ele próprio. A partir de então, este fica refém das interpretações e significados do outro. 

Levando-se em conta a fragilidade existencial desses momentos de ressignificação, a problemática se amplia, no que diz respeito as distorções que a pessoa é alvo. Noutras palavras, afastando, cada vez mais, a possibilidade de ser sujeito em uma história que deveria lhe pertencer por inteiro.

Usando expressões do método utilizado com a paciente, percebo um sadismo controlador nessa espécie de abordagem, quando se desrespeita a matéria-prima dos atendimentos, com significados, distorções, agendamentos, para desqualificar uma realidade em processo.       

No caso da partilhante, na continuidade das sessões, foi possível identificar o dispositivo de autodefesa que ela usou para desautorizar a invasão indevida ao seu território subjetivo. O tópico significado da estrutura de pensamento, quando associado a outros aspectos de uma autogenia, pode se traduzir como uma bateria antiaérea. Assim, um significado, na clínica filosófica, deve ser um evento de construção compartilhada, não uma atividade isolada do terapeuta.

A resultante de um processo clínico em Filosofia se apresenta numa via de mão dupla, elaborada cuidadosamente, desde os instantes iniciais dos atendimentos. Depois disso, os exames categoriais - na versão partilhante - constituem o chão por onde se poderá compreender a natureza e o funcionamento da estrutura de pensamento, bem como suas possibilidades de um ser singular em processo.

Não é mágica ou propaganda enganosa! É trabalho e método, além, é claro, do imprescindível borogodó!

Aquele abraço,

*hs

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 13*

                                      Qual diagnóstico te representa ?

Existe um fenômeno que se apresenta nas telas de tv, cinema, por onde um expectador, ao ingressar num território nem sempre favorável à sua singularidade, fica refém de seus agendamentos.   

O conteúdo de um roteiro dramático, costuma cair no gosto de muitas pessoas, levando-as a ter ideias e sensações conhecidas ou desconhecidas. De qualquer forma, ninguém sai o mesmo de um mergulho em algo assim descrito (a menos que durma), onde a escolha da obra já delimita o alcance da interseção.   

Recordo alguns clássicos: Um estranho no ninho (1975), Hair (1979), Blade Runner – o caçador de androides (1982), O pescador de ilusões (1991), Don Juan de Marco (1995), O Quatrilho (1995), Shine – brilhante (1996), Gênio indomável (1997), O encantador de cavalos (1998), Path Adams – o amor é contagioso (1998), Garota interrompida (1999), Encontrando Forrester (2000), Náufrago (2000), Pão e tulipas (2000), Doce novembro (2001) ... Apontam para o cuidado sobre a relação do autoconhecimento e os desdobramentos - na vida de cada um - dessas vivências.   

Um roteiro cinematográfico, ao retirar sua fonte de inspiração da lida cotidiana ou da imaginação de um autor, indo dos rascunhos ao momento da partilha com seu público, oferece múltiplas experiências pela via dos deslocamentos intelectivos. Os impactos de um filme na vida de uma pessoa, costuma modificar seu viés de realidade pelos agendamentos da película.

Os profissionais da área clínica (Filósofos clínicos, Psicoterapeutas, Psicanalistas), apesar do distanciamento metodológico, vivenciam situações semelhantes em seu dia a dia, ao conviver com os dramas e tragédias de seus partilhantes, clientes, pacientes, em seus espaços de trabalho. Nesse sentido, cabe destacar, mesmo levando-se em conta a maestria de roteiristas e diretores, a distância abismal da hora-sessão para a hora-cinema.

Em um texto: “o cuidado do cuidador” (A palavra fora de si, 2017), recordo a preocupação em acolher profissionais que tem um cotidiano de intervenção clínica em consultórios, hospitais gerais, manicômios, escolas, empresas, pois, muitas vezes, se encontram desamparados, ao não encontrar um refúgio eficaz para reabastecer seu papel existencial cuidador.

Vejo com apreensão algumas notícias, que dão conta desse fenômeno invisível, onde profissionais da área terapêutica, adoecem (fisicamente) com diagnósticos como: ‘doença autoimune’ e outros, sem a possibilidade de uma intervenção clínica anterior (prevenção) a um processo de somatização radical. A medicina do corpo ainda padece do código internacional de doenças.  

Aquele abraço,

*hs

domingo, 7 de janeiro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 12*

                                     Por onde se diz aquilo que não fala?

O cotidiano dos atendimentos compartilha múltiplos fenômenos ao filósofo clínico. Seu viés de acolhimento e cuidados encontra na redução fenomenológica, um fundamento para encontrar o sujeito singular.  

Um desses eventos ocorre quando a intencionalidade partilhante - em sua narrativa - oferece conteúdos além do que tinha previsto dizer na hora sessão. Sendo a fala a semiose por onde a pessoa se diz, não é raro sua expressividade revelar algo mais, por um filtro que lhe escapa num viés de momento.

Merleau-Ponty auxilia: “(...) um homem no trabalho, que reencontra toda manhã, na configuração que as coisas readquirem sob seus olhos, o mesmo apelo, a mesma exigência, a mesma incitação imperiosa à qual jamais acabará de responder. Sua obra não termina: está sempre no futuro.” (A prosa do mundo, 2002. Pág. 94).

A percepção da incompletude discursiva, compartilha uma ótica aprendiz, numa geografia subjetiva que não cessa de desdobrar-se. Assim é possível entender o fenômeno da intencionalidade como filtro, o qual se ativa ao encontrar um lugar e uma interseção para esgaçar a lógica conhecida.  

Esse caráter de imprevisibilidade retórica, é um dos meios por onde o partilhante pode ensaiar suas buscas existenciais, descobrindo ou inventando nuances que lhe representem. O olhar de escuta atenta do filósofo, deverá compreender esses deslizes como uma emancipação da pessoa em direção a ela mesma.   

Em Merleau-Ponty: “(...) é o preço que se deve pagar para ter uma linguagem conquistadora, que não se limite a enunciar o que já sabíamos, mas nos introduza a experiências estranhas (...). Jamais veríamos uma paisagem nova se não tivéssemos com nossos olhos, o meio de surpreender, de interrogar e de dar forma a configurações de espaço e de cor jamais vistas até então.” (A prosa do mundo, 2002. Pág. 119).

A clínica, sob muitos aspectos, se assemelha a um encontro da pessoa diante do espelho. Aquilo que se vê sendo a mirada provisória de um instante, não irá oferecer a totalidade de uma visão - se é que isso existe -, mas um determinado ângulo numa autogenia em processo.

O dado de semiose por onde alguém significa sua condição, quando identificado e acolhido num espaço de liberdade expressiva, aprecia experienciar àquilo que sua cultura lhe interdita.   

A característica do espanto filosófico, própria dos filósofos precursores, caminha junto a lida de consultório, desde a fase preliminar aos desdobramentos das sessões, como uma aliada das novas configurações da singularidade diante de si sendo outra.  

Aquele abraço,

*hs