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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 32*

 

                                Qual síndrome te representa?

Um dia desses, pensando em assistir um jogo do Grêmio, sentado, confortavelmente, diante da tv, vejo - quase não acredito! - uma faixa em destaque, de frente para a transmissão das imagens, que dizia assim: “Gremistas na síndrome do espectro autista”.

Outro dia uma amiga mostrou sua medalha, conquistada numa maratona, a inscrição: “corrida da síndrome do espectro autista”. Na mesma direção, nessas coisas que surgem em quase todo lugar, apareceu a foto de uma menina com a camiseta escrita: “sou autista”, ela parecia feliz, dançava... Quem postou a foto foram os pais.

Qual psicopatologia (disfarçada de qualquer outra expressão) te representa? Escolhe, manda ver, te junta a multidão de desavisados!

Nos últimos meses é possível notar uma avalanche de propaganda nas mídias sociais e antissociais, divulgando cursos, palestras, seminários das abordagens da tradição psiquiátrica, psicanalítica, psicologias... nem a filosofia clínica escapou, em suas variantes de distorção.

David Cooper alerta: “A violência da psiquiatria só pode ser compreendida com base no seu dogma fundamental: se não compreende o que outro ser humano está a fazer, diagnostique-o! Nunca deixará de encontrar vítimas coniventes que farão o jogo. Mas começamos agora a cansar-nos desse jogo.”  (A linguagem da loucura, 1978. Pág. 101).

Cada vez mais se propagam as verdades da medicina do corpo, como a única possibilidade de acolhimento e compreensão do fenômeno humano. Como se esse fosse constituído somente por ossos, músculos, nervos, mãos, pés, órgãos internos... A farmácia da esquina e suas igrejas encontram os fiéis na hóstia da alienação.      

É antiga a proposta, de setores da ciência, em querer localizar o esconderijo da alma. Qual o recanto onde o espírito se abriga, ou como traduzir adequadamente a vida em suas múltiplas facetas, modos de aparecimento, representação, sensações, ideias, buscas, de onde vem, como se desenvolvem, qual sua estrutura?

Nesse cenário multifacetado, impregnado de jogos de cena, um novo paradigma, ao ser incompreendido, poderá ser condenado as fogueiras da ciência normal. Um saber-poder se desdobra em fabricar loucuras, síndromes, doenças a qualquer preço. Um dito popular ensina: “muito cuidado ao passar em frente ao consultório do psiquiatra, pois ele vai encontrar uma doença mental em você!”.

Uma dificuldade que se apresenta, especificamente em nosso país, é a escassez (ideológica) de recursos para a educação, desde seus fundamentos até a pós-graduação. Talvez a leitura de Nicolau Maquiavel em seu texto: O príncipe, ajude a entender essa espécie de coisa. Alguns anos atrás, quando era professor de Filosofia numa escola particular, num momento do intervalo para o cafezinho, o diretor afirmou: “nossa escola tem como diferencial a preparação de líderes, empreendedores, futuros gestores da sociedade...”. Na semana seguinte, sai desse lugar sem olhar para trás!   

Com David Cooper: “Razão e Desrazão são ambas maneiras de conhecer. A loucura é uma maneira de conhecer, outro modo de exploração empírica dos mundos tanto interior como exterior. A razão para a exclusão e invalidação da loucura não é puramente médica, nem estritamente social. É, como tentarei mostrar, política.”. (A linguagem da loucura, 1978. Pág. 153).

Cooper, esse médico psiquiatra, um dos líderes do movimento conhecido como antipsiquiatria, desenvolveu um conjunto de reflexões ao longo de sua clínica, que ajudam a entender sua sintonia existencial com os desvalidos, invalidados pela chamada ciência normal de sua especialidade e seus coadjuvantes, repletos de narrativas para enquadrar o fenômeno humano numa medida incabível ao seu ser singular.

Ao encontrar a abordagem da Filosofia Clínica - em 2025 serão 30 anos de dedicação exclusiva - vislumbrei um novo paradigma, para acolher e cuidar das pessoas em seus instantes de ressignificação existencial. Naquela época, morava em Novo Hamburgo, vinha a capital gaúcha de jipe (modelo Ford 1960), para as aulas no antigo Instituto Packter. Dediquei cada momento dos encontros de estudo, seminários, para aprender os fundamentos da nova teoria, depois na clínica pessoal, e aplicados na supervisão, nos atendimentos, na formação continuada.     

A propaganda, o marketing, a divulgação de novas e velhas ideias, constituem uma ferramenta poderosa, capaz de destacar eventos importantes e significativos de nossa condição humana em processo. Seu uso, ao ter um caráter ideológico (manipulador), produz consequências que poderão ser avaliadas - crítica e reflexivamente - com um distanciamento histórico.    

Aquele abraço!

*hs

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 31*

 
                                    

                              Sintonia existencial e novos paradigmas 

Existem tantos modelos de terapia quantas são as pessoas em busca de um ponto de apoio para suas questões existenciais. Com isso é possível entender sua diversidade: xamanismos, exorcismos, aconselhamentos, danças de cura, chás milagrosos, confessionários religiosos, psicanálises, psicologias, psiquiatrias, filosofias clínicas, e tantos outros rituais como proposta ao entendimento e cuidado do fenômeno humano.

Acredito que as abordagens terapêuticas, quando ofereçam um acolhimento e bem-estar aos seus integrantes, tenham a ver com a sintonia existencial (autogenia) dos envolvidos. Ressalvadas as influências do marketing, jogo de cena.      

Nos dias de hoje, impulsionados pela ideologia da propaganda (filmes, teatro, palestras, redes sociais, cursos acadêmicos, artigos de jornal, entrevistas, publicações) a liderança parece estar com a Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, em suas diferentes formas de apresentação. A repetição - via agendamento - desses modelos de intervenção nas mídias, reafirma a ideia (equivocada) de que essas metodologias detém a melhor resposta à crise existencial de todo mundo. Afinal, todo mundo é ninguém!

O esboço de uma nova abordagem terapêutica, conhecida como Filosofia Clínica, desde os anos 1990, iniciada com o trabalho e a pesquisa do filósofo gaúcho Lúcio Packter, vem contemplando uma fatia de pessoas diferenciadas, as quais encontram na nova abordagem um acolhimento compreensivo que suspeitavam existir, mas não sabiam onde encontrar.   

Um dos aspectos dessa nova concepção clínica, é a ideia de indeterminação (Werner Heisenberg), que se oferece em contraponto as generalizações e classificações das metodologias clássicas.

Fritjof Capra ensina: “O grande feito de Heisenberg foi expressar essas limitações dos conceitos clássicos de uma forma matematicamente precisa – que hoje leva seu nome e é conhecida como princípio de indeterminação. (...) O princípio de indeterminação mede o grau em que o cientista influencia as propriedades dos objetos observados pelo próprio processo de mensuração.” (Sabedoria incomum, 1988. Pág. 15).  

Esse pressuposto ajuda a entender o fundamento da singularidade com o qual a Filosofia Clínica trabalha, ao distanciar-se das abordagens de base DSM, suas tipologias e classificações a priori.

A contradição e o distanciamento não param por aí!

Os fundamentos do novo paradigma, encontram seus subsídios na Filosofia, como: fenomenologia (Merleau-Ponty), analítica da linguagem (Wittgenstein), hermenêutica compreensiva (Gadamer), representação de mundo (Schopenhauer), dentre outros, em íntima conversação com as práticas de consultório (hoje já são 30 anos, desde os primeiros atendimentos e turmas da formação clínica).  

A nova abordagem da Filosofia Clínica encontra seu chão numa convergência de momentos diferenciados na terapia. Tendo como ponto de partida os exames categoriais, a estrutura de pensamento e submodos, a qualidade da interseção entre o filósofo clínico e seu partilhante, é possível encontrar um caminho para qualificar o alcance das construções compartilhas na hora-sessão.

Em Capra: “Bateson costumava enfatizar que para descrevermos a natureza com precisão deveríamos tentar falar a língua da natureza.” (Sabedoria incomum, 1988. Pág. 64).

O filósofo terapeuta, inicialmente, ao acolher seu partilhante, cuida de sua própria estrutura de pensamento em interseção, para interferir minimamente (redução fenomenológica) na expressividade do outro sob seus cuidados. Depois disso atua para compreender sua linguagem em modo próprio (singular), em visitas autorizadas ao seu jardim subjetivo.

A busca por reconhecer o uso que o partilhante faz das palavras, seu sentido e direção, o contexto onde se desenvolvem, bem como a identificação da relação tópica estrutural determinante, vai concedendo ao filósofo clínico um constructo de matéria-prima para qualificar sua atividade. Nessa direção, será possível encontrar os procedimentos específicos para um partilhante, os quais, elaborados para uma determinada circunstância clínica, não poderão ser utilizados com outra pessoa. 

Fritjof Capra contribui: “Heisenberg mostrou que um elétron, por exemplo, pode surgir como uma partícula ou como uma onda, dependendo de como o observamos. Se fizermos ao elétron uma pergunta no plano das partículas, ele nos dará uma resposta no plano das partículas; se lhe perguntarmos algo no plano das ondas, ele nos responderá no plano das ondas.” (Sabedoria Incomum, 1988. Pág. 116).

Talvez essa informação contribua com a razão de se ter tantas terapias quantas sejam as pessoas, uma vez que a sintonia existencial de cada uma é singular. Sob muitos aspectos, refém de sua circunstância de vida, suas relações, o período histórico, as ideias, normas e leis de seu cotidiano, as verdades hegemônicas ao seu redor.

Assim, cabe ao filósofo clínico distanciar-se desse espírito de rebanho, num acolhimento aprendiz com a pessoa sob seus cuidados - caso a caso - para decifrar seu padrão autogênico, as alternativas que sua estrutura de pensamento oferece. Nesse sentido, cada um, de acordo com suas possibilidades, vai encontrando (na vida) um caminho para algo que lhe represente, onde sua expressividade não seja tratada como doença ou anomalia.   

Aquele abraço!

*hs   

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 30*

 

                  Quem interna quem? O último apaga a luz, por favor!

A obra: Escritos de Antonin Artaud, publicada pela editora LPM de Porto Alegre/RS em 2019, com organização, tradução e notas de Claudio Willer, oferece recortes de uma hermenêutica compreensiva, sob a ótica de um pensador singular.

Incompreendido por sua época, e, sob muitos aspectos ainda hoje, internado, tratado pela psiquiatria dos psicofármacos, eletrochoques, como se fora um bicho ameaçador, por suas ideias, atitudes, registrados em textos diferenciados.

Ao não submeter sua estrutura de pensamento ao olhar medíocre de quem ousou tratá-lo, é aprisionado e torturado com experimentos vários, propondo normalizar sua condição crítica, analítica, revolucionária.

O incômodo Artaud ao mundo de sua época, lhe custou a própria liberdade, uma vez que passou a maior parte da vida entrando e saindo de manicômios, onde a psiquiatria tentava ajustá-lo.   

Artaud ensina: “Há um ponto em vocês que médico algum jamais entenderá e é este ponto, a meu ver, que os salva e torna augustos, puros e maravilhosos: vocês estão além da vida, seus males são desconhecidos pelo homem comum, vocês ultrapassaram o plano da normalidade e daí a severidade demonstrada pelos homens, vocês envenenam sua tranquilidade, corroem sua estabilidade.” (Escritos de Antonin Artaud, 2019. Pág. 29),

Até encontrar a abordagem da Filosofia Clínica (versão inicial dos anos 1990), o que se tinha, com raras exceções, era o que descreve o pensador dos escritos. Desde 1970 conheço essa realidade, primeiro como acompanhante, depois como Filósofo Clínico. Inicialmente no sanatório Kaempf, rebatizado de Vida Nova, em Santa Cruz do Sul, hoje extinto, devido a lei de reforma psiquiátrica (lei antimanicomial 10216/2001). Depois na ala psiquiátrica do hospital universitário de Santa Maria, ainda o Hospital Espírita em Porto Alegre, e outros.

Uma peregrinação infindável em busca de cura, para a loucura de um de seus integrantes. Interessante notar que o diagnóstico se iniciava dentro de casa, na própria família, seja por ignorância ou interesse, aí se encontrava um personagem ideal (meu pai) para representar o desajuste familiar. Uma pessoa sensível, generosa, alegre, animada, algumas vezes revoltada, que gostava de viver e conviver. A psiquiatria, a família, a sociedade, transformou sua singularidade em vegetal, um pouco antes de partir.  

Com Artaud: “Foi assim que uma sociedade tarada inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas (...). A sociedade mandou estrangular em seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se (...) um louco é também um homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.” (Escritos de Antonin Artaud, 2019. Págs. 162 e 164).   

Não é raro encontrar na esteticidade seletiva, um caminho de tradução aproximada, para as fases de desestruturação subjetiva, algumas vezes até um pouco antes do acolhimento compreensivo, da interseção clínica dialogada, e construções compartilhadas.   

A analítica da linguagem em Wittgenstein ensina que o sentido das palavras pertence ao sujeito que fala, escreve, silencia. Os jogos de linguagem precisam ser compreendidos em sua fonte de originalidade e não fora. Uma hermenêutica que despreze essa característica fundamental da singularidade, se associa ao rol de torturas, distorções, experimentos psiquiátricos (sonoterapia, lobotomias, choques insulínicos...) e seus coadjuvantes, tão em voga, ainda hoje na sociedade, muitas vezes travestida de boas intenções, outras disfarçadas com novas nomenclaturas.    

Nesse sentido, se associam as ideias de Michel Foucault, em sua obra: “O nascimento da clínica”, onde ensina, dentre outras coisas, que conceitos como: cura, loucura, saúde, doença, são conceitos políticos.

Por outro lado, na mesma direção, existe um clima de reflexão crítica em torno da questão, onde profissionais da nova geração e alguns veteranos, começam (no âmbito da psiquiatria) a rever pressupostos, questionar tratamentos. Em casos raros, como a antipsiquiatria e a não-psiquiatria, rasgam diplomas, reinventam práticas cuidadoras, rumos existenciais. Mas isso não é para qualquer um!

Recordo uma cantiga: um louco incomoda muita gente, dois loucos incomodam, incomodam, muito mais...

Hoje em dia, os textos de Antonin Artaud são estudados e reverenciados, no mundo do teatro, cinema, como revolucionários, libertários, expressivos, um pré-requisito a formação de novos atores e atrizes.   

Aquele abraço,

*hs  

sábado, 30 de março de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 29*


 







                     Sobre a arte de decifrar incógnitas 

O filme: Dogman, de 2023 (disponível no Prime vídeo), com roteiro e direção de Luc Besson, oferece um olhar aproximado com o fenômeno da singularidade.

Tendo como ponto de partida alguns recortes da vida do personagem Doug, a psiquiatra que o entrevista na prisão, refaz alguns aspectos de sua vida, com intervenções que acabam direcionando sua narrativa. Ainda assim, mesmo sob a égide da psicanálise - disfarçada de psiquiatria - a obra oferece rastros de algo mais, possivelmente pela interpretação magistral de Caleb Landry Jones como Doug, e coadjuvantes diferenciadas.   

A obra também se destaca por evidenciar a situação de um personagem a margem dos princípios de verdade, tendo como companhia seus cães - igualmente abandonados - os quais se associam para viver suas circunstâncias existenciais.

Doug é um cadeirante que, após uma prisão, e com a interferência de uma psiquiatra, passa a relatar alguns eventos de sua vida. Com isso nós os expectadores, somos convidados a vivenciar alguns momentos de sua trajetória de vida, pela batuta do mestre Luc Besson.   

Algo que se destaca em filmes, peças de teatro, romances com base em metodologias da área Psi, é a ilusão de que, ao efetuar recortes (agendamentos inadvertidos) na história de vida das pessoas, destacando os eventos da infância (Freud), esse viés por si só, sugere uma competência para acessar a estrutura de pensamento singular.

Sei que aquilo que não se consegue acessar, pela via discursiva de um paciente psicanalítico ou psiquiátrico, é jogado para o tal inconsciente. Também conheço a força dos agendamentos da publicidade, marketing, a mídia e suas derivações, no que diz respeito a proposta por hegemonia do seu discurso ideológico.   

No filme, a única possibilidade ao personagem principal é um caminho sem volta, traduzido nas cenas finais, bem assim o seu repúdio a condição humana, em detrimento de seu amor aos cães que o acolhem. Existe uma tendência em muitas obras de arte, para confirmar a necessidade de punição a quem vive em desacordo com sua época.   

Talvez uma referência de obra aberta (Umberto Eco), pudesse - ao menos cogitar - o que não se sabe, como cautela sobre a existência de uma microfísica de poder (Michel Foucault), onde múltiplos personagens atuam, nem sempre de acordo com uma pré-determinada vida normal.   

É o caso do filme: Anatomia de uma queda, de 2023. Direção: Justine Triet. Roteiro de Justine Triet e Arthur Harari. Onde a história nos leva, o tempo todo, em direção a incógnitas que não podem ser decifradas por inteiro, restando dúvidas, hipóteses, considerações, de acordo com as possibilidades do expectador.

Aquele abraço,

*hs   

domingo, 24 de março de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 28*

 

                                  Sobre a lógica aprendiz e seus desafetos

Um dia desses alguém que não conheço, manifestou algo através de uma amiga em comum nas redes sociais. A pessoa buscou questionar a Filosofia Clínica, sem conhecer nada a respeito, talvez por ser algo estranho, diferente. Sua amiga indicou o blog da Casa da Filosofia Clínica e lá foi ele, leu as primeiras palavras da apresentação, que diz assim: “Um endereço artesanal para convivência aprendiz com o novo paradigma (...)”, a seguir lascou: “como eu imaginava, não é algo profissional, mas artesanal, ainda estão aprendendo”.

Lembrei de Fernando Pessoa: “(...) ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam a língua em que fala.” (Alguma prosa, 1990. Pág. 74).

A expressão do amigo da amiga me lembrou os primeiros anos da Filosofia Clínica, onde grande parte dos cronistas da capital gaúcha e do centro do país, falavam, escreviam sobre o novo paradigma. Diziam coisas como: “os filósofos agora estão oferecendo o divã a quem precisar”, “só o que faltava, a Filosofia está se metendo onde não deve”, “imagina, agora ao invés de procurar psicólogos e médicos psiquiatras, teremos de consultar os filósofos, pode?”, “em Filosofia não se estuda as psicopatologias, as doenças mentais, como poderão clinicar esses profissionais?” (...). A lista é significativa, nomes considerados de destaque em suas áreas (inclusive a Filosofia), falavam sobre o que não sabiam. A fogueira das vaidades oferecia sua versão pós-moderna.

Por volta de 1998, apareceu um jornalista escrevendo sobre o novo paradigma no caderno ‘Mais’ da Folha de São Paulo. Depois de uma visita a Porto Alegre, onde conversou com filósofos clínicos e partilhantes, conheceu o local onde tudo começou, assistiu algumas aulas, leu os cadernos didáticos, buscou saber mais e melhor do que se tratava a Filosofia Clínica. Logo depois publicou sua versão, esclarecendo, compartilhando, festejando o novo modelo de cuidado e atenção a vida.  

Fernando Pessoa auxilia: “Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. (Alguma prosa, 1990. Pág. 62).

A perspectiva filosófica de um saber que não sabe, mas que deseja saber e se coloca numa condição aprendiz, tem a ver com o novo paradigma da Filosofia Clínica, como um pressuposto preliminar ao acolhimento da pessoa. No mesmo sentido, o artesão acolhe o barro para trabalhar de acordo com suas possibilidades de interseção com esse material. O barro se molda, adapta, tem uma plasticidade para modificar sua estrutura, busca ser outra coisa que não aquilo que procura superar.

Um olhar de primeira vez é algo quase extinto nos dias de hoje, onde as certezas - cada vez mais - assumem o lugar da cautela, do estudo, do aprendizado com as palavras dos livros, a lógica das ruas. O fenômeno das redes sociais - muitas vezes - concede espaço para as verdades da miopia e do astigmatismo.

Penso, mas não escrevo: Querem inovação nas ciências humanas? Leiam Sócrates, Platão, Aristóteles..., bem assim os poetas, sonhadores incorrigíveis, artistas de várias cepas existenciais, acolham o xamã sufocado em cada um de vocês (...).

Em Fernando Pessoa: “Toda obra fala por si, com a voz que lhe é própria, e naquela linguagem em que se forma na mente; quem não entende não pode entender, e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que ele não fala.” (Alguma prosa, 1990. Pág. 65).

Talvez assim se possa entender os atendimentos que se multiplicam em Filosofia Clínica nos últimos 30 anos no Brasil. O fenômeno partilhante se apresenta nas pessoas com um olhar diferenciado, como se encontrassem nessa nova abordagem clínica, algo que imaginavam existir, mas ainda não haviam encontrado.

O fenômeno humano da singularidade (redescoberto) esboça - já nos primeiros anos - uma possibilidade de resgate da pessoa em seu processo de experienciar algo que lhe represente por inteiro. Nesse sentido, uma metodologia que acolha as lógicas da diferença, pela via da interseção, das construções compartilhadas, recoloca no centro da vida como ela é, um sujeito inquieto, criativo, em processo de exercitar sua condição existencial.     

Aquele abraço,

*hs

segunda-feira, 18 de março de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 27*

                                               Bem depois do final feliz

A série americana “Criminal Minds” foi ao ar em 2005, tendo como fonte de inspiração as atividades de um grupo de analistas comportamentais do FBI. O pano de fundo das suas análises é o referencial teórico-prático das metodologias de base PSI. Assim desenvolvem perfis para solucionar assassinatos seriais. 

No que se refere a alguns desses casos, é possível pensar e acreditar numa resolução bem-sucedida, por outro lado, levando-se em conta estudos e atividades de uma abordagem de base singular, esses procedimentos teriam de seguir por outras rotas de acolhimento, estudo, pesquisa, além do dado padrão e as certezas freudianas, para identificar muitos casos, até hoje insolúveis.

É claro que a série - muito bem dirigida, com atores e atrizes magníficos, roteiros excepcionais - trata de eventos bem-sucedidos com base em determinada fonte de inspiração teórica, onde os personagens (elite cognitiva do FBI e os assassinos) se adequam ao olhar determinista da metodologia aplicada.  

Por outro lado, na mesma direção, o pensador Yuval Noah Harari, autor da obra: “Sapiens - Uma breve história da humanidade”, desenvolve um raciocínio, com base em fatos históricos, onde identifica uma ameaça mortal a espécie humana: os próprios seres humanos, representados pelo desenvolvimento do fenômeno conhecido como: Homo Sapiens.

O autor indica: “Não acredite nos abraçadores de árvores, que afirmam que nossos ancestrais viveram em harmonia com a natureza. Muito antes da Revolução Industrial, o Homo Sapiens já era o recordista, entre todos os organismos, em levar as espécies de plantas e animais mais importantes à extinção. Temos a honra duvidosa de ser a espécie mais mortífera nos anais da biologia.” (Sapiens – Uma breve história da humanidade”. Pág. 109).

Se eu sei que existem homens santos e que a natureza humana pode ser boa? Sim sei e conheço alguns exemplos. No entanto, esses mesmos exemplares da espécie, por não terem a violência e a agressividade desenvolvidas para o extermínio de sua raça, podem ser facilmente dominados e extintos por seus semelhantes de maior competência na área, ainda mais com os avanços da tecnologia de guerra, armas químicas, etc... Algo parecido com o que aconteceu com as espécies anteriores ao Homo Sapiens.

Talvez a educação pudesse contribuir para reequilibrar a balança entre anjos e demônios, se não fossem as iniciativas e investidas para permitir acesso a uma educação de qualidade apenas aos escolhidos, via de regra com base no topo da pirâmide social, o que, na realidade não garante nada, pois o ser singular parece determinar os avanços de cada pessoa por este ou aquele caminho de vida, muitas vezes a margem dos princípios de verdade.   

Yuval Harari compartilha: “Isso não quer dizer que tudo é possível. Forças geográficas, biológicas e econômicas criam restrições. Mas, ainda assim, essas restrições deixam muito espaço para desdobramentos inesperados, que não parecem ter ligação com qualquer lei determinista.” (Sapiens – Uma breve história da humanidade. Pág. 323).

Essa observação se aproxima da abordagem singular da Filosofia Clínica, ou seja, reivindica-se um olhar de acolhimento investigativo, compreensivo, e singularizado, para decifrar o campo do fenômeno humano, o qual é capaz de reinventar seu próprio meio cultural, existencial, tendo como referência sua estrutura de pensamento em processo de interação com seu ambiente.

A superação das restrições e condicionamentos da cultura, tem a ver com as circunstâncias onde cada pessoa se desenvolve existencialmente, em suas ideias, atitudes, seja de submissão, subversão, criatividade, tradução, invenção de novos sistemas de convívio com as lógicas da diferença.

O pensador ensina: “A disposição para admitir ignorância tornou a ciência moderna mais dinâmica, versátil e indagadora do que todas as tradições de conhecimento anteriores.” (Sapiens – Uma breve história da humanidade. Pág. 341).

A base metodológica que contenha uma redução fenomenológica (epoché dos gregos), como cautela de aproximação com o fenômeno da singularidade, já seria bem-vindo, ou seja, teria como indicativo preliminar um não saber, em busca de um estudo peculiar da pessoa ou grupo social diante de si em processo.

Aqui se apresenta um pré-requisito de plasticidade e capacidade de adaptação ao meio desconhecido, algo que sugere uma inovação, no que se refere a proposta de conhecer as pessoas, do lado de lá da relação. Levando-se em conta seu contexto cultural, social, existencial, como uma imersão antropológica singularizada, distante das classificações e tipologias apriorísticas reconhecidas.   

O método fenomenológico, a analítica da linguagem, a hermenêutica compreensiva, como fundamento, poderia ser aliada dessa busca por acessar o fenômeno humano refugiado numa complexidade distante de um saber que não sabe.    

Yuval Harari cogita: “(...) a desordem ecológica pode ameaçar a sobrevivência do próprio Homo Sapiens. O aquecimento global, o aumento do nível dos oceanos e a poluição disseminada podem tornar a Terra menos habitável para nossa própria espécie (...) outros organismos estão se saindo muito bem. Ratos e baratas, por exemplo, estão em seu apogeu. (...) Talvez daqui a 65 milhões de anos, ratos inteligentes olhem para trás e sintam-se gratos pela dizimação causada pela humanidade (..)”. (Sapiens – Uma breve história da humanidade. Págs. 470 e 471).

A constatação da evolução do fenômeno humano conhecido como Homo Sapiens, ao destruir outras espécies para se firmar, tem a ver com o alerta do pensador Yuval, pois lembra de que os eventos atuais, já existiram noutras épocas, com nomes e recursos diferentes. Hoje vivemos tempos de avançada tecnologia, seja em benefício do homem ou voltada para a destruição em massa.

Essa capacidade de adaptação requer um borogodó raramente desenvolvido por nossas bases educacionais. Talvez devêssemos aprender com ratos e baratas, como fazem para sobreviver aos ataques da química, da biologia humana. Seguem por aí, apesar das novas drogas, venenos, parecem desenvolver contravenenos com aquilo que poderia ser o seu fim.  

Aquele abraço,

*hs

terça-feira, 12 de março de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 26*

 

                                     A sala de aula e a clínica aprendiz

Os anos de atividade em sala de aula, como professor de Filosofia, especificamente com alunos do ensino médio e da graduação, ensinaram a respeito da condição humana incompreendida, suas formas de manifestação, a linguagem, roupas, músicas, cabelos, e outras formas de contestação social.  

Acho que Carl Rogers escreveu: “a sala de aula é um ambiente para terapia de grupo”, ou seja, o processo de ensino aprendizagem - ainda mais com a disciplina de Filosofia - se presta a conversações, reflexões, partilhas, de longo alcance na malha intelectiva do lado a lado da relação professor/aluno.

Octavio Paz ensina: “(...) a linguagem é poesia e cada palavra esconde certa carga metafórica disposta a explodir no momento em que se toque na mola secreta, mas a força criadora da palavra reside no homem que a pronuncia.” (O arco e a lira, 2012. Pág. 45).   

Um aspecto que chamava a atenção era a força expressiva, em minhas aulas, de alunos considerados problemáticos, divergentes, os quais participavam ativamente (discutindo, escrevendo, protestando), elaborando uma relação singular da Filosofia com eles mesmos.  

Naquele tempo (início dos anos 1990) percebia e sentia um acolhimento de suas singularidades, sem um alcance maior, por não estarmos numa terapia de excelência. No entanto, ainda assim, os textos, diálogos, conteúdos em sala de aula, pareciam traduzir alguma coisa que os alunos não atingiam por si só, manifestando variadas formas de violência em seu cotidiano dentro e fora da escola.

Octávio Paz compartilha: “A cólera, o entusiasmo, a indignação, tudo o que nos deixa fora de nós tem a mesma virtude libertadora.” (O arco e a lira, 2012. Pág. 59).

Foi nessa época que surgiu um projeto na escola Pedro Schneider (Pedrinho) em São Leopoldo/RS, de encontros semanais. Eram grupos de alunos e ex-alunos interessados em participar de uma terapia de grupo, com base na Filosofia Clínica.

Em um espaço cedido pela instituição, formamos grupos de 10/12 participantes, com encontros aos sábados à tarde. O projeto teve a duração de 03 anos, interrompido pelas necessidades de expansão da Filosofia Clínica - com as aulas em vários estados brasileiros - e o direcionamento dos integrantes aos estudos da graduação. Alguns continuaram sua clínica no espaço em Porto Alegre. 

Esses encontros se realizaram, posteriormente, com alguns alunos da graduação (Feevale em Novo Hamburgo). Na época aconteciam no Instituto Packter na capital gaúcha, eram atividades com 8/9 participantes. A reflexão, nos dias de hoje, aponta para a necessidade de se formar grupos menores, talvez 4/5 integrantes.

Com Octavio Paz: “(...) toda magia que não se transcende – isto é, que não se transforma em dom, em filantropia – devora a si mesma e acaba devorando seu criador.” (O arco e a lira, 2012. Pág. 61).

As dinâmicas de uma clínica de grupo oferecem a possibilidade de se alcançar uma população maior de pessoas, em seus processos de integração, desconstrução de formas de agir e pensar, que dificultam um processo de autodescoberta e desenvolvimento.

Um caminho aprendiz sobre a natureza e o alcance de um saber compartilhado com a vida como ela é, em busca de uma melhor expressividade para pessoas a margem de si mesmas. 

Aquele abraço,

*hs

sábado, 9 de março de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 25*

                                 A loucura fabricada em laboratório

Talvez a maior dificuldade da medicina do corpo, seja sua busca incessante em aprisionar seu saber sobre a fisiologia humana em uma métrica de medida cabível para todas as coisas. Penso, especificamente, na proposta de se entender as manifestações da alma, via estrutura de pensamento, como se fossem causadas por distúrbios da química cerebral ou consequência de desdobramentos de eventos de natureza física, tão somente.

O pedestal em que se coloca a medicina nos dias de hoje (noutras épocas também acontecia algo semelhante), lembra a história da própria medicina, a qual precisa rever sua condição de medicina do corpo, sem se atribuir uma magia sobre humana que não possui. Assim poderia deixar de ser refém da indústria de psicofármacos.

Michel Foucault em sua obra: “O nascimento da clínica”, lembra de um evento que recolocou a medicina de sua época (período clássico) no lugar devido, ou seja, de aprendizado constante sobre as condições de vida das pessoas e suas moléstias.  

Nesse texto Foucault destaca o efeito que teve na medicina, as descobertas da microbiologia de Pasteur (séc. XIX). Os desdobramentos no papel existencial do médico, o qual, até então, tratava seus pacientes no mesmo lugar, sem assepsia adequada a sua clínica. A mão do médico, que tocava o corpo de uma pessoa, sem luvas, ao investigar o próximo paciente, colocados lado a lado, independente de sua moléstia, se transformava no agente transmissor das doenças.

Esse fato, em seu tempo, recolocou uma certa humildade e cautela, no exercício da medicina, levando as escolas médicas a darem atenção aos diferentes modelos de assepsia, diferenciando doenças e doentes, construindo hospitais arejados, com janelas, portas, distanciamento entre as camas, uso de luvas e outros recursos para cada atendimento.     

Quem sabe a medicina (psiquiátrica) pudesse reconhecer sua incompetência em cuidar das pessoas em seus processos de desestrutura e reconstrução pessoal, deixando de interná-las involuntariamente, oferecendo seus tratamentos de eletrochoque, camisas de força, medicalização de uma loucura. Aqui se apresenta uma questão metodológica, de natureza ideológica, onde o médico precisaria renunciar a sua pretensão de cura da loucura, para tratar de suas técnicas para uma medicina do corpo. Não se meter em temas que não domina, passando a fabricar doenças, síndromes, e outros escrachos da moda para vender remédios a candidatos a doentes mentais fabricados em laboratório.

Bronislaw Malinowski diz assim: “Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil.” (Argonautas do pacífico ocidental, 1976. Pág. 26).

Nesse sentido, os dias de hoje, mergulhados numa lógica de zoom, onde quase tudo é fugaz e se desmancha no ar, sentimentos, projetos de vida, formas de entender e compreender as coisas, pessoas, parecem reféns de uma definição absoluta, como em outros tempos, logo superados pela ciência a demonstrar as equivocidades do que se tinha como a última palavra.

O método científico tem esse cuidado de acolher as hipóteses do absurdo, as quais, num primeiro momento, podem se apresentar como algo estranho, em linguagem própria, indefinível, reivindicando uma abordagem diferenciada para acessar a estrutura de pensamento singular.  

Aquele abraço,

*hs