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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sábado, 23 de dezembro de 2023

Filosofia Clínica Agridoce 6*

 

Em Filosofia Clínica, uma das dificuldades em compartilhar adequadamente os eventos da hora-sessão, reside no fato de que a conjugação de aspectos como: o papel existencial, a expressividade, a qualidade da interseção e as possibilidades de construção compartilhada, costumam reivindicar atitudes de acordo com as dialéticas do instante.

Thomas Kuhn, em sua obra: “A Estrutura das Revoluções Científicas”, ed. 2013, pág. 117, em nota de rodapé, indica: ‘Michel Polanyi desenvolveu brilhantemente um tema (...) argumentando que muito do sucesso do cientista depende do “conhecimento tácito”, isto é, do conhecimento adquirido através da prática e que não pode ser articulado explicitamente’.

Lembro de um tempo em que ficava intrigado e desconfiado até, das retóricas bem ajustadas e bem-falantes de alguns profissionais da área Psi, quando falavam sobre sua atividade clínica, demonstrando uma espécie de controle – na verdade inexistente – que costuma agradar muita gente, despreparada para identificar seu jogo de cena. 

Esses malabarismos verbais, passam longe de traduzir os eventos da hora-sessão. Talvez por isso, alguns profissionais dessa área, depois de alguns anos de trabalho em consultório, sintam a necessidade de deixar de lado, muitas das definições da teoria, que lhe foram alcançadas, quando de sua deformação acadêmica.

O modelo de clínica da Filosofia Clínica - longe de ser a resposta para todas as coisas -, no entanto, oferece subsídios metodológicos de ajuste permanente da atividade do filósofo clínico, o qual pode realizar atualizações de acordo com o padrão autogênico necessário aos atendimentos com base na singularidade. Seu ponto de apoio será a própria estrutura teórico-prática da abordagem, a qual pressupõe em sua mensagem, as transformações que terá de oferecer, quando os fenômenos de consultório deixarem de ser a letra morta dos artigos, crônicas e definições bem ajustadas da teoria escolar.

Uma das contradições que raros suportam nessa profissão, é a distância que pode surgir, quando, nas dinâmicas de consultório, aparecem fatos de aspecto absurdo ou improvável, reivindicando ao filósofo clínico, um borogodó que não lhes é possível ensinar nos bancos escolares.   

Aquele abraço,

*hs

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Filosofia Clínica Agridoce 5*

                                       Sobre a arte de ser invisível 

Por volta de 1999, na capital gaúcha, a Filosofia Clínica despontava como novidade, tanto no campo teórico como na atividade prática. O incômodo que causou - e ainda causa - aparecia na forma de ataques de alguns próceres - que se achavam donos? - do discurso filosófico acadêmico.

Aqui no Sul, acontecia algo semelhante ao que proibiu (anos 1980) Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir palestrarem na capital gaúcha, quando de sua estada no Brasil. Outro caso, que ficou célebre do escracho da intelectualidade escolar, foi a censura e o exílio (anos 1970/1980) de outro grande pensador: Gerd Bornheim, por manifestar um viés excessivamente (?) filosófico e libertário com suas ideias. Assim, esse mesmo território produz (anos 1990) a Filosofia Clínica, com uma mensagem singular, revolucionária, questionadora das crenças e verdades até então hegemônicas.  

Nesse tempo, ocorriam debates, críticas maldosas, ameaças, a maioria por pessoas que não sabiam o que falavam, apenas liam: “Filosofia Clínica” e passavam a discorrer sobre o tema, despreocupados em saber mais e melhor. Revelando uma postura não-filosófica em relação ao novo paradigma.  

Depois de algum tempo - tentando esclarecer, divulgar, orientar - sugeri ao nosso grupo de trabalho, que fôssemos cuidar dos atendimentos, parcerias, desenvolvimento da nova abordagem - para incômodo ainda maior de alguns - já era um projeto nacional -.

Nessa época, lembro com carinho e gratidão, o fato de que, levado por um amigo, conheci a vila Alto Erechim (Morro Teresópolis), no extremo sul da capital gaúcha, onde comecei a trabalhar como filósofo clínico. Com esse evento aprendi as vantagens de ser invisível.

Por cerca de 04 anos conheci pessoas e realidades incríveis, dessas que você pensa existir somente nos filmes de ficção. Com eles desenvolvemos um espectro de construções compartilhadas de longo alcance, sempre com o apoio indispensável das agentes comunitárias, que iam de barraco em barraco, oferecendo os atendimentos do filósofo.

Numa sociedade cuja referência é a propaganda e a divulgação a qualquer preço de qualquer coisa ou pessoa, ser (quase) invisível pode ser pré-requisito para viabilizar sonhos, projetos, buscas existenciais. Distante do barulho das unanimidades e de um certo espírito de rebanho. E aí já se vão mais de 35.000 horas-sessão...    

Aquele abraço,

*hs

domingo, 17 de dezembro de 2023

Filosofia Clínica Agridoce 4*

A expressão “borogodó” foi o termo que encontrei, resultante das atividades da formação e atendimentos, para traduzir pré-juízos a uma candidatura ao ser filósofo clínico. Um conjunto de atributos que tem como ponto de partida: o talento, a sensibilidade e competência, dedicação aos estudos e a clínica pessoal. Esses aspectos, recheados de incompletude, oferecem uma fresta para as dialéticas do convívio e, talvez, um desenvolvimento ao ser terapeuta na nova abordagem.   

O dicionário comum fala em: “atração pessoal irresistível”, no entanto, essa definição pode servir para fins de relacionamentos afetivos, mas não para um papel existencial cuidador, que vai reivindicar, dentre outras coisas, uma distância aproximada com a retórica partilhante em clínica. 

Ter ou não ter um borogodó, é determinante para a atividade clínica do filósofo. Bem como para o partilhante que o encontra e, com ele, elabora um território para as construções compartilhadas que não alcançaria com outro profissional. 

A palavra borogodó é mais que uma palavra, como ensina Wittgenstein nas Investigações Filosóficas: “O significado de uma palavra é seu uso na linguagem.” (1996, pág. 38). Nesse sentido, é fundamento de uma clínica pessoal o autoconhecimento e a autodescoberta, um pouco antes ou concomitante aos estudos da teoria e práticas da formação.   

Aquele abraço,

*hs

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Filosofia Clínica Agridoce 3*

Outro dia conheci um autor, desses - raros - que não fazem questão de notoriedade ou visibilidade, a não ser nas páginas de seus livros, onde oferece pistas sobre a pluralidade de eventos que o levaram a ser escritor.

Trata-se de Alberto Manguel, livreiro em Buenos Aires no tempo em que Jorge Luis Borges percorria as ruas da metrópole Argentina - em suas idas e vindas da Biblioteca Nacional - à procura de matéria-prima para sustentar seu vício predileto: a leitura. Nessas visitas e revisitas Borges encontra, na livraria onde Manguel trabalha, um amigo e um cúmplice da boa leitura. Este não poderia imaginar o que viria depois.

A relação se aprofunda e Manguel passa a frequentar a casa de Borges com regularidade. Trocam ideias sobre livros, autores, crítica literária, novidades no campo editorial. Depois disso, o jovem livreiro passa a cumprir um novo papel existencial para o amigo: agora como leitor.

Nessa época Borges já tinha perdido quase toda a visão, que lhe impedia de exercitar sua paixão dominante: a leitura e a escrita, para compor uma armadilha conceitual quase perfeita, ou seja, a retroalimentação de leitura-escrita-leitura, reféns da sua frequência - sem pressa - as bibliotecas.

Nesse convívio - com múltiplos agendamentos - onde o autor de “Ficções” desempenha um papel existencial íntimo de sua expressividade, se destaca a atividade de mentor para seu jovem amigo livreiro. Talvez Manguel, sem se dar conta na época, além de qualificar sua leitura, também ia desenvolvendo - pela via da interseção - uma série de competências para sua escrita. 

Hoje, radicado no interior da França, Manguel deixa vestígios de suas origens em sua obra, um desses lugares de onde retira a matéria-prima para sua habilidade e talento como escritor, possível homenagem ao velho professor de leitura e escritura: Jorge Luis Borges.

Aquele abraço, 

*hs

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Filosofia Clínica Agridoce 2*

 

Sartre escreveu: “quando alguém escolhe um conselheiro, delimita a natureza do conselho que irá receber”. Esse ponto se aproxima do fenômeno da interseção em Filosofia Clínica, ou seja, quando a pessoa escolhe um terapeuta para sua clínica, sob muitos aspectos, delimita o alcance e desdobramentos dessa atividade.

No caso do novo paradigma, sendo o partilhante sujeito de sua história, tem o direito, e em alguns casos o dever de não concordar com o tratamento que lhe é oferecido, sem ter que justificar ou submeter-se a figura de um determinado saber poder especialista.

Existe exceção a essa regra, devido a legislação nacional, a qual prevê, em seus códigos e normas, os casos para internação involuntária, como:  interesse familiar, social, econômico, ideológico, patrocinados pela indústria de psicofármacos, ignorância cultural, metodológica.

Nos últimos anos, se oferece no país algumas alternativas, como o hospital-dia, CAPS (centro de atenção psicossocial), propondo algum avanço na área, no entanto, além dos equívocos metodológicos, a palavra final ainda é da psiquiatria, sendo ela também refém dos estudos e pesquisas de orientação farmacológica.  

Nesse ponto ocorre, muitas vezes, uma confusão entre as atribuições de um poder de polícia e o asilo de alienados, onde as pessoas, por motivos diversos, são mantidas reféns de uma autoridade: delegado de polícia, poder judiciário, psiquiatria, interesse econômico (internação no hospício custa caro!).     

Num período triste e recente de nossa história (1930 a 1980), foi cunhada a expressão “trem de doido” no Brasil, para descrever um comboio que partia da Bahia/BA rumo a Barbacena/MG, arrecadando pessoas pelo caminho (prostitutas, alcoólatras, desafetos políticos...), destinadas a internação involuntária, tortura, submissão, cura psiquiátrica. A jornalista e escritora Daniela Arbex, em sua obra: “Holocausto brasileiro”. Editora Geração/SP. 2013, descreveu em suas páginas o horror dessas práticas.  

Nossa busca é aliada do sonho por melhores dias, onde se ofereçam lugares para práticas de acolhimento compreensivo e intervenções de acordo com a singularidade, com um mínimo de medicamentos (casos excepcionais e por tempo limitado), sob a coordenação de grupos inter e transdisciplinares, aptos a oferecer procedimentos adequados a cada pessoa.   

Aquele abraço,

*hs

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Filosofia Clínica Agridoce 1***

 

                                      Viva a colônia brasileira?  

Você não vai aprender Filosofia Clínica lendo os clássicos ou acessando as publicações - muitas delas errôneas - da internet, espiando escritos e depoimentos de colegas, amigos, desafetos, menos ainda agregando fragmentos de uma abordagem em outra, acreditando serem complementares, não! São excludentes! Diálogo inter e transdisciplinar é uma coisa, outra bem diferente é querer entender a novidade em conluio com aquilo que já se tem.

Pra começa de conversa: a) após a graduação em Filosofia, vem os estudos da teoria (18/24 meses), b) depois a clínica pessoal (tempo subjetivo), c) aí a supervisão (no mínimo 2 anos), d) após vem a formação continuada (colóquios, seminários, encontros, grupos de estudo, publicações...), depois vida que segue. Lembrando o imprescindível borogodó... para não ficar refém daquilo que a medicina (do corpo) chama: “doença autoimune”.

Na mesma direção, para quem acreditava que o melhor vinha de outros lugares (um certo espírito colonial!), descartando a matéria-prima do Brasil, o novo paradigma da Filosofia Clínica é só uma dessas iniciativas que inaugura um novo capítulo, em busca de se viver e conviver melhor. Ela mesma, sob muitos aspectos, ainda incompreendida, talvez por não ser mais um modismo e atuar, quase sempre, na solidão compartilhada dos atendimentos.

Aquele abraço,

*hs

** A ideia com esses brevíssimos textos é alcançar matéria-prima crítica, analítica, reflexiva, aos estudos em Filosofia Clínica.   

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Representação de Mundo e Singularidade*

O conceito de representação de mundo, nos termos de Schopenhauer, pode significar algo decisivo à qualidade da terapia, ou seja, através da movimentação pela espacialidade intelectiva, a reciprocidade pode significar uma via de acesso ao discurso partilhante: identificar suas origens estruturais, a matriz existencial de onde se originam e como foram constituindo suas verdades.

Sobre a atualização narrativa da clínica, é importante lembrar que alguns conteúdos da pessoa podem surpreender, intimidar, entusiasmar, alegrar e entristecer a ela mesma e ao seu entorno.

Em Rubem Alves: “(...) para uma lagarta não há nada mais lindo que as coisas que se assemelham a ela. No mundo das lagartas, até os deuses são lagartas. Mas as borboletas obviamente dirão: tolice...” (Lições de feitiçaria, 2003).  

Na perspectiva metodológica da Filosofia Clínica, é fundamental acessar, através da interseção, o universo da singularidade, oferecendo ao partilhante um acolhimento de acordo com sua narrativa em processo. Tendo como ponto de partida seu contexto de vida, o lugar onde sua historicidade foi se desenvolvendo, do nascimento até os dias atuais, é possível acessar seu território subjetivo.

Ao sintonizar sua expressividade e papel cuidador na frequência existencial da pessoa, o filósofo clínico torna possível uma proximidade com sua realidade em transformação.

Por outro lado, quando ocorre uma dessintonia nesse acesso ao sujeito, ou a interseção for dificultada por fatores como agendamentos familiares, mundo do trabalho, cultura, internação involuntária, a abordagem da Filosofia Clínica pode nada significar. Em outras palavras, isso ocorre quando o partilhante estiver tão ou mais discriminado do que o exílio manicomial, deixando de ser sujeito de sua condição em processo.

Rubem Alves diz assim: “(...) os poetas têm estado repetindo isso o tempo todo. Não é de espantar, portanto, que não sejam convidados para nossos jantares acadêmicos. Quando os poetas falam, os outros convivas pensam que eles estão bêbados” (Lições de feitiçaria, 2003).   

Talvez um dos maiores problemas do nosso tempo sejam os ruídos e as dificuldades da comunicação interpessoal. Uma pessoa diz uma coisa e a outra entende outra, não conseguindo se afastar de suas verdades subjetivas. Assim não se têm diálogos, mas monólogos, algumas vezes devaneios, distorções interpretativas, em qualquer de suas formas. Tudo isso estimulado pela avalanche de informação, a qual se traduz em desinformação.

É possível, num instante posterior, mesclar essas mensagens oferecidas pelo emissor (partilhante) com a perspectiva do receptor (filósofo clínico), no entanto, isso requer uma escuta atenta e minuciosa (treinamento) sobre os conteúdos e sentidos de sua fala, em busca de ajustar essa pronúncia a um entendimento compartilhável.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.

**Instagram: @helio_strassburger

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Dialéticas do Inesperado*

 

“Já não é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio”

                                                              Gilles Deleuze

O pátio do hospício é um desses lugares onde o extraordinário esboça preferências. Muros, paredes e vigias atualizam a contenção do corpo, para que a alma consiga refúgio em devaneios de transgressão. Institui arranjos de novidade na arte de existir sem razão.

Na invisibilidade dos deslocamentos o compartilhar nem sempre é possível. Talvez por isso, no sujeito delirante, a realidade apareça disfarçada de irrealidade. Na estrutura inquieta, onde as visões dialogam entre si, uma vida inteira pode ser insuficiente para alguma tradução.

A desarticulação das palavras se faz cúmplice ao pensar contraditório das in-completudes. Algo mais nos anúncios desses percursos da introspecção. Talvez alguma indicação à transgressão em torno das paredes do asilo. Mirante às perspectivas fantásticas da natureza humana encarcerada pelas grades da epistemologia da tradição. 

É de saber incerto o que leva as pessoas a buscar abrigo nas lonjuras incomunicáveis dentro de si mesmas. Acaso no território livre das abstrações, onde o aprisionamento nos rituais da normalidade pode se desfazer. Prosperar das diferenças entre a experiência sensível e seus paradoxos. Os segredos indescritíveis seguem à espera de exploradores.

Quiçá a vertigem possa anteceder essas aproximações com o inexplicável da pessoa internada. Enquanto isso, as incógnitas da loucura permanecem à margem, em refúgios de aparente sem sentido. A força narrativa dessas ilegibilidades desloca-se por universos de ambiguidade.

Deleuze refere: “(...) a interioridade não para de nos escavar a nós mesmos, de nos cindir a nós mesmos, de nos duplicar, ainda que nossa unidade permaneça”. (Crítica e clínica, 2004). Perspectiva delirante a denunciar pré-tensas realidades compartilhadas. Ponto de vista onde os consensos se veem ameaçados. 

Ao transgredir o embaçamento do visar normal, surgem outras derivações: uma poética dos milagres aprecia surgir como espetáculo, onde a pluralidade dos personagens exila, momentaneamente, o sujeito originário para descortinar seus outros.

Suspeitas de múltiplas origens procuram algum sentido ao não ser elaborado nas lógicas da esquiva. Diálogos com as formas do estranho descobrem inéditos percursos por trás dos velhos mapas. Os fenômenos integrantes da singularidade se anunciam nas tramas significantes dos relatos. Ao tentar entender a origem dessas viagens, um vislumbre cosmopolita aponta indícios de terra estrangeira.

A rede de saberes incompleta-se por todo lado. Em muitos casos, a estrutura caótica, por seu desvalorizada socialmente, institui novidades, mesmo quando socializa impressões de espectador numa cena que não lhe pertence. Nos convívios de marginalidade, a expressividade decadente denuncia esconderijos onde as palavras não conseguem chegar.

O sujeito subverte as tramas e desloca forças entremeios de certeza, vigilância e domesticação. Atribui-se raridade e funda algo mais, até então calado na estrutura inconformada ao olhar de multidão. Rituais incontáveis transgridem as antinomias de lucidez e submissão.

Um rastro de saber desarrazoado sugere outras lógicas aos traços de surrealidade. Matéria-prima em delírios de re-invenção, a descontinuar-se no vocabulário errante que se faz meio de apresentação, exploração e descoberta.

Em Félix Guattari: “Os lapsos, os atos falhos, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Nas se trata de interpretá-los. Trata-se antes de detectar sua trajetória para ver se podem servir de indicadores de novos universos de referência suscetíveis de adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação.” (Caosmose - Um novo paradigma estético, 2000). 

As falas da descontinuidade parecem preferir a instabilidade dos paradoxos, para vislumbrar as quimeras da insensatez. A improvável fala de aparente sem nexo qualifica interseção com o transbordar desses instantes de perdição e encontro. Insanidade ao olhar classificador do alienista. Estética provisória a se instaurar no início sem-fim das conversações com o exagero de si mesma. Ao ensimesmar-se a singularidade se desconcerta para ser exceção.

A farmácia interior também se qualifica nos ensaios do viajante. Distorção a perder de vista na relação com suas anterioridades. Fenômenos de extravagância ao compartilhar da terapia. Pessoas atormentadas por fantasmas indescritíveis podem enfraquecer seus temores e inseguranças, na compreensão desses vislumbres de razão alterada. Propõe compartilhar o depois de amanhã ainda inexplicável ao presente. A história reescrita faz surgir atributos de profecia, até então desconhecidos para si mesma.

Labirintos excepcionais denunciam outras verdades, entrevistas na realidade delirante. Inauditos discursos assopram sentidos divergentes aos ditos de euforia.

Jacques Derrida insinua: “Como o deserto e a cidade, a floresta, onde formigam os signos amedrontados, diz sem dúvida o não-lugar e a errância, a ausência de caminhos prescritos, a ereção solitária da raiz ofuscada, fora do alcance do sol, em direção a um céu que se esconde. Mas a floresta é também, além da rigidez das linhas, das árvores em que se agarram às letras enlouquecidas, a madeira que a incisão poética fere.”  (A escritura e a diferença, 2005).

O Filósofo Clínico se faz cúmplice, em seu papel existencial, na busca de um alívio compartilhado, para o alvoroço dessas reestreias do sujeito. Embora isso tudo reivindique nomes ou apelidos, quase sempre permanece como saber obtuso. Poéticas de interrogação alternam-se na obscuridade das lacunas.

Focos de miragem na investigação das impermanências. Mutante a surgir como fragilidade bem disfarçada aos diagnósticos de objeção. A trama significante escolhe o delírio exilado nas circunstâncias para se fazer ver. Inúmeras incógnitas aguardam tradução em seus esconderijos. Fonte se originalidades a permanecer dissonância. Talvez a vida normal seja sua ilusão mais bem acabada.

Nesses percursos pela desmedida dos segredos, as intencionalidades transitam entremeios de um pretérito-futuro. Embora o deslize do traço, muitos são os inéditos à deriva. Inacreditáveis sugestões no esboço das imperfeições.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger