Um filme pode conjugar diversão e
inspiração em um só momento. É o caso da obra: “Já fui famoso”. Direção de
Eddie Sternberg. Netflix. 2022.
O roteiro trata da relação de
Vince, um músico de grande sucesso há 20 anos atrás, hoje desempregado, com
Stevie um jovem baterista de talento incomum. Esse encontro acontece numa
praça, momento em que Vince ensaia em seu teclado, inesperadamente o menino se
senta ao seu lado em silêncio, e o acompanha com suas baquetas, usando a
lixeira e o banco como bateria. Um espanto inicial sede lugar a uma sintonia
pela música. A obra sugere uma interseção peculiar, ao apresentar dois
personagens (estigmatizados) à margem da sociedade, um por estar desempregado e
outro classificado como autista.
A sinopse do filme reforça o agendamento
de Stevie como autista. Aqui, outra vez, uma visão pré-concebida distorce o
fenômeno da originalidade. O olhar da crítica, com base nas tipologias,
cristaliza um discurso existencial em desenvolvimento aos limites de uma
interpretação.
Pode-se perceber e sentir (a obra
permite esse desdobramento) que o encontro desses dois personagens singulares,
acontece pelo fato de que um é incompreendido por não fazer mais sucesso e
buscar um lugar para ganhar alguns trocados, e o outro por se refugiar num
mundo só seu, onde somente se ingressa através da música. Enquanto um procura
se abrir para fora, em busca de um lugar para se apresentar (tocar na noite), o
outro se desloca para um ponto dentro de si mesmo.
Em determinado momento,
caminhando pelos bairros da cidade, Vince encontra uma clínica de grupo
(musicoterapia), coordenada por um terapeuta de rara sensibilidade (personagem
de Kurt Egyiawan). Ao se inserir nesse espaço de partilha, desenvolve um papel
existencial que nem sabia existir: uma habilidade de acolhimento e compreensão.
O grupo de convivência trabalha
com pessoas excluídas socialmente. Nesse lugar reencontra Stevie que o
acompanhou com suas baquetas na praça. Amber, a mãe de Stevie, que participa
das reuniões, explica a Vince que seu filho não gosta de multidões e
imprevistos. Revela que as crises do menino são superadas pela música, uma
forma de lidar com suas dificuldades.
Noutro segmento do filme Vince,
sem nenhuma chance de mostrar seu talento, vai em busca de um emprego formal numa
agência. A pessoa encarregada pergunta se ele tem uma formação musical. Em que
escola/faculdade estudou, quais suas referências. Como não frequentou nenhuma
escola, ficou sem a vaga.
Mais adiante o roteiro revela que
Vince - há mais de 20 anos - teve problemas familiares. A relação com Stevie se
mostra como uma chance para reconciliar-se consigo mesmo, quase ao mesmo tempo
em que contribui com a expressividade de seu parceiro baterista.
Ao visitar a casa de Stevie, o
músico encontra um quadro de Bach na parede, quando lhe pergunta: você gostaria
de ser Bach? O menino responde: por que eu iria querer ser Bach? Eu quero ser
eu. Eu gostaria de ir à uma escola de
música. O acolhimento de Vince e a qualidade da interseção oferecem algo
mais.
Na sequência, com um afastamento
involuntário entre os dois, Stevie supera suas dificuldades pessoais,
confecciona cartazes e sai em busca de um lugar para se apresentar com Vince.
No mesmo período, o coordenador da musicoterapia convida o músico para
substituí-lo na liderança do grupo. Noutro segmento um empresário diz a Vince,
tentando recontratá-lo: você será bem-vindo, mas seu amigo baterista não, pois
é uma pessoa esquisita e oferece risco aos nossos projetos. Depois disso,
ocorrem algumas autogenias nos personagens.
Em determinado momento, pela via
da interseção, os personagens conseguem romper com suas armadilhas conceituais
e reencontrar um lugar melhor para viver. O filme, além da diversão numa obra
de rara beleza, também oferece uma atividade aprendiz sobre a sintonia entre as
pessoas, as possibilidades do papel existencial cuidador, os desdobramentos das
construções compartilhadas. Lembrando que a realidade, antes de ser realidade,
rascunha seus originais nos territórios da irrealidade.
O mundo dos excluídos constitui
um desafio e uma referência ao exercício do novo paradigma. Talvez por seu
caráter de invisibilidade, consiga transitar por caminhos à margem do saber
instituído. Nesse sentido, a esteticidade seletiva contribui, encontrando na literatura,
cinema, música, teatro, belas artes, uma fonte de inspiração ao ser
terapeuta.
A filosofia em sua versão
clínica, acolhe o discurso existencial partilhante para encontrar a
matéria-prima a sua atividade cuidadora. Os remédios existenciais, inicialmente,
se esboçam nesse convívio com os dados da originalidade. Depois disso, o
sujeito partilhante pode acessar sua própria farmácia subjetiva para viver
melhor.
*Hélio Strassburger in Revista
da Casa da Filosofia Clínica. Edição Verão/2022.
**Instagram: @helio_strassburger