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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 42*

  Sobre palavras ao vento, barquinhos de papel e um sol entre nuvens* 

O início de feriado (sexta-feira 20/9, por volta das 7hs) nos oferece um discurso existencial na esquina de casa, um manifesto singular. Trata-se de um rapaz, sem idade definida, em diálogos consigo mesmo e seus outros ao redor. Acena para os carros, discute com as folhas da árvore, bate no peito, abre os braços, retira um chapéu invisível para a moça que passa.    

Num instante visitamos - da nossa janela - um esboço de quase miragem. Ao avistá-lo surge a pergunta: como suportar essa vida sem conhecer outros endereços existenciais?   

Em Porto Alegre, depois de mais uma hecatombe (a enchente), após a pandemia, com os incêndios florestais, ainda temos de ler num jornal da cidade que um dos principais responsáveis (pelos sufocos locais) tem a possibilidade de ser eleito em primeiro turno.

Como censurar a lógica dos exilados, alienados? Gente que encontrou um território para navegar pelas águas de si mesmo, na companhia de alguns convidados?

José Castello indica: “Meu tio recomenda a ginástica, o ar puro e os banhos de mar. ‘Esqueça os livros, você sofre deles. Prefira a vida’. Quer que eu perca a palidez e que encorpe. (...) ‘Meu filho não tem saída’: a frase me empurra, em definitivo, para dentro de mim. É daqui que escrevo, de meus subterrâneos.” (Ribamar, 2010. Págs. 87 e 88).  

Um horizonte tímido ensaia algo por entre as nuvens carregadas de desesperança. As pessoas, nesse dia vazio de qualquer coisa, seguem o sono profundo da cumplicidade. Leem seus jornais, assistem a tv, dialogam com seus espelhos (como fazemos agora) e, ainda assim, inconformados, reinventam refúgios de natureza singular.

Uma condição de estar a ver navios, pode localizar um porto seguro que flutua no mundo das vontades sem tradução. Um pretexto para redigir desatinos, descobrir-se em meio aos labirintos da representação descabida.   

A obra descreve: “O escritor é um viajante que, contando apenas com uma precária bússola, chega a um destino que nunca planejou. Todo escritor é um náufrago. Um Robinson. Nem por isso seu destino se torna menos verdadeiro; ao contrário, o inesperado o avaliza. A esse porto inexistente chamamos, enfim, de literatura.” (Ribamar, 2010. Pág. 116).  

Nas páginas de um texto assim, pode-se achar uma referência para os dias de aparente sem sentido. Ao conseguir acessar essa bússola singular, em meio a tantos desvios de rota, agendamentos recheados de boa vontade, a lógica dos princípios de verdade, e as retóricas bem postadas de quem não sabe que não sabe. Mesmo assim, aqueles que sabem que não sabem, parecem entrever um sol entre nuvens.

Os textos da solidão compartilhada perseguem viagens, acenam aos outros que se distanciam, ou será que somos nós que nos distanciamos?  O tímido indicativo, recém-descoberto, parece indicar vírgulas extraordinárias, para onde - sem pensar - nos encaminhamos ao sabor dos ventos e das marés.  

A brisa leve, quando encontra seu barquinho de papel, convida a trajetos de não saber. Parece descrever refúgios ao instante leitura. Quiçá reescrever os ritmos da vida lá fora, cogitar possibilidades, rascunhar capítulos.

No entanto, o tempo insinua ímpetos de regressar. É hora de içar velas para reencontrar a poltrona onde tudo começou. Olhar em volta e perceber que o lugar de onde se partiu não existe mais. Sendo os mesmos, somos outros os viajantes por esses refúgios do cotidiano. Se à primeira vista pareçam palavras ao vento, as releituras indicam uma menção as vontades ainda sem representação.   

Aquele abraço,

hs    

     

sábado, 7 de setembro de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 41*

                                     Notas para um refúgio singular

Existem indícios sobre ser a poesia uma das formas de conexão do infinito com as pessoas. No mesmo sentido a suspeita de que, ao reconhecer sua singularidade, possam desenvolver um devir inédito no convívio com outras na mesma condição. Onde ser único não seria uma síndrome, um transtorno, mas um jeito de ser e existir inclassificável, por ser único. Teríamos nome e sobrenome, não tipologias ou protocolos distantes de nossa realidade em processo. Questão de método!   

Os princípios de verdade usam os meios ao seu dispor para divulgar e sustentar seus pontos de vista, mesmo que para isso, a cada novo dia, invente nomenclaturas para abordar e controlar originalidades em vias de nascimento. Mais que uma questão de método, muitas vezes, é possível perceber-se uma ideologia a sustentar práticas com interesses de natureza econômica.  

A medicina do corpo, ao oferecer sua metodologia bem-sucedida nas questões materiais, enfrenta dificuldades no que diz respeito as questões imateriais do fenômeno humano. Alegam ser um atributo da Filosofia, Teologia, Antropologia. Assim se veem livres da investigação filosófica, por exemplo, a qual poderia ser aliada se apropriadamente trabalhada em uma relação interdisciplinar.    

No entanto, ao inventar doenças mentais que não aparecem em exames clínicos, o que se apresenta, com fartura de propaganda, é uma sucessão de classificações, estigmas, que parecem fazer sentido para pessoas sem um senso crítico, reflexivo, tão comum em nosso tempo.

Veja-se o caso da bíblia DSM, inventada por uma cultura diferente da nossa, no entanto, encontrou adeptos no Brasil, como se aquilo que vem de outros lugares fosse melhor, desconhecendo nossa cultura repleta de talentos, gênios criativos, desprezados, possivelmente, por ser contemporâneos da vida normalizada.  

As estruturas de saber-poder, como ensina Michel Foucault em seu texto O nascimento da clínica, tentam se manter a qualquer custo, dificultando a inovação, a inquietude criativa, em alguns campos da pesquisa científica. Parece existir um receio, uma insegurança, um medo de que as novas ideias possam tomar o lugar de autenticação da ciência, ora em vias de ser superada, pela própria ciência.   

Nesse sentido não é surpreendente que os novos paradigmas surjam em ambientes de liberdade aos estudos, pesquisa, diálogos inter e transdisciplinares, de onde costumam brotar novos saberes, críticas, reflexões, publicações. Ainda assim, como informa Thomas Kuhn na sua A estrutura das revoluções científicas, essa nova forma de enxergar, sentir, descrever o mundo, ao oferecer uma nova direção reflexiva e investigativa para o fenômeno humano, também reinventa o mundo das ideias, das práticas empíricas, e a abordagem de determinadas problemáticas existenciais.

As poéticas da singularidade, tendo em vista essa realidade, encontram pontos de interseção na natureza ao seu redor, para conviver com suas estéticas numa forma originária, onde possam se expressar em linguagem própria.

Assim sendo, muitas vezes, tratam de ficar invisíveis ao olho nu de suas circunstâncias, as quais repletas de distorções, aprisionam seu aparecimento com as mordaças da definição. Talvez ao ser marginal, periférica, viajando na invisibilidade de um triz, sua condição desconhecida possa seguir indefinida para um grau diferenciado de expressividade.

Um endereço para reconhecer e traduzir pontos de interseção, lugares, linguagens, momentos para ensaios de um discurso existencial singular. Com essa condição irrepetível, redigir um esboço pessoal em linguagem própria, em rotas de não-ser, pelas frestas daquilo que lhe desautoriza.    

Aquele abraço,

hs

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 40*

 

                                   Onde você está quando se encontra? 

Das possibilidades para uma aproximação com o fenômeno da singularidade, se destaca a linguagem na qual o partilhante se expressa, por onde se diz, como e quando se rascunha existencialmente em relação aos princípios de verdade, com as pessoas de seu meio, consigo mesmo.

Em Filosofia Clínica, mais que usar a palavra singular de forma equívoca, distorcida, generalista, se oferece uma abordagem para acolher e compreender os meios por onde a pessoa tenta existir. Quais as origens, os deslocamentos de sua representação. De onde vem, para onde vai, onde se encontra, desencontra, reencontra, em outro lugar da mesma estrutura, a qual, sendo a mesma, já é outra. É possível a investigação aprendiz para uma tradução compartilhada desses instantes de vir a ser.   

À primeira vista, em busca de um entendimento de sua desestrutura, a pessoa costuma procurar amigos, familiares, os quais, na maioria das vezes, não conseguem entender o que se passa, qual o sentido das suas expressões, qual língua está falando. É comum, como proposta de algum controle e manutenção, qualificar a pessoa como descontrolada, desmiolada.

O referencial para uma condição aprendiz, tendo em vista o novo paradigma da Filosofia Clínica, é uma aproximação de cuidado e atenção a isso que se apresenta como um movimento precursor, de mudança de rota, inicialmente desencontrado de si para consigo mesmo. Um desses lugares onde o filósofo clínico atua para acolher, transitar, aprender os rituais dessa expressividade, tendo como mapa a estrutura de pensamento do partilhante.

Não é raro acontecer revisitas ao passado ou a um futuro incerto, ambos movimentos intelectivos em deslocamento longo, para tentar acessar o que se passa ou buscar um refúgio nalgum lugar seguro, longe dessas vertigens para fora de si.  

Heidegger compartilha: “Queremos ao menos uma vez chegar no lugar em que já estamos”. (A caminho da linguagem, 2004. Pág. 8).

No entanto, pode ser um sofrimento adicional encarar o dia a dia em um processo de não-ser, onde as crenças, companhias, lugares, cotidianos, multiplicam a sensação de desamparo, em meio as inéditas percepções, sensações, como algo novo ao próprio vocabulário em processo de reescrita.   

Um dos problemas de maior impacto, nesses momentos, é a internação involuntária, onde o alienista encharca seu paciente com psicofármacos (sossega leão), para conter essa dialética em busca de superar velhos endereços existenciais. Essa primeira consulta, a internação, a medicalização, costumam ser decisivos para o futuro da condição da pessoa, a partir de agora, um paciente psiquiátrico.

Existem muitas maneiras de se encontrar com esses instantes de caos precursor, talvez a mais significativa, seja o estudo preliminar de sua semiose, ou seja, por onde a pessoa se comunica consigo mesma e com seu entorno existencial. Aprender ou não aprender sua língua pode significar intervenções para distorcer sua singularidade em processo, mudando radicalmente o rumo dos atendimentos, significando a pessoa como partilhante ou em prognósticos de ser paciente.

Em Heidegger: “O estranho está em travessia. Sua errância não é porém de qualquer jeito, sem determinação, para lá e para cá. O estranho caminha em busca do lugar em que pode permanecer em travessia. ‘O estranho’ segue, sem quase dar-se conta, um apelo, o apelo de se encaminhar e pôr-se a caminho do que lhe é próprio.” (A caminho da linguagem, 2044. Pág. 31).

Outra vez recordo as lições de Parmênides e Heráclito, quando - há mais de 2000 anos atrás - defendiam suas teses sobre a permanência e a impermanência. Pelo menos duas grandes escolas disputam, ainda hoje, a posição de como abordar e cuidar do fenômeno humano em seus dias de crise de ressignificação pessoal, isto é, aquela que defende diagnósticos precisos, cristalizados, com base em definições bem ajustadas (psiquiatria e coadjuvantes) e aquelas abordagens com fundamentos de obra aberta, atuando de acordo com o fenômeno da singularidade (Filosofia Clínica e algumas Terapias Alternativas).

Nesse sentido, o discurso existencial do sujeito em vias de não-ser, pode ser freado ou trabalhado para ser aquilo que sua condição pessoal reivindica. Por aí, a vida persegue seus rituais, como se fôssemos os primeiros habitantes desse indecifrável (por inteiro) planeta em formas de existir. A ciência segue estudando, analisando, refletindo, a estrutura significativa desses eventos de transgressão, por onde a natureza - em ritmo e tempo próprio, concede sinais, pistas, rascunhos do que está por vir.

Não seria exagero defender a tese da Filosofia Clínica como um desses esboços para depois de amanhã, quando a categoria tempo e a multiplicidade de traduções, deixar a surpresa e o espanto filosófico de lado, para lhe conceder um rótulo ou distinção acadêmica. A partir daí, com definições acessíveis a uma sintonia de senso comum. 

Aquele abraço,

hs   

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 39*









    

                                  Quem fala naquilo que se diz?

Os relatos sobre um encontro consigo mesmo, em meio a uma floresta de distorções, freios existenciais, podem estar refugiados no lugar algum de nenhum lugar, ou seja, nas páginas amarrotadas e desprezadas dos seus devaneios, projetos, onde as memórias ficaram cristalizadas pela desconsideração dos princípios de verdade.

Veja-se um caso em recíproca de inversão: “Num dia a dia de múltiplos envolvimentos, aquilo que só você poderia ser e fazer, foi se apagando, esquecido de si na distorção de papéis existenciais.  

Ainda quando buscava ajuda nesse meio, encontrava conselhos e direcionamentos para se adaptar a lugares de onde procurava partir. Ao insistir nessa desarmonia no mundo do trabalho, na família, com os amigos, a desestruturação atingia seu grau máximo, necessitando de especialistas em desvios comportamentais e seus tratamentos de choque de realidade.    

Seu cotidiano assim descrito, se traduzia numa rotina sem sentido, para sustentar algo distante do seu melhor, isso você sabia, o que não sabia era a existência de uma abordagem que poderia auxiliar, em seu processo de reencontro consigo mesmo. Uma metodologia sem aconselhamentos, interpretações diagnósticas, prognósticas e o diabo a quatro sobre quem você deve ser, como deve se portar, o que deve comprar, quais remédios tomar, em quem acreditar.  

Num final de semana, ao encontrar - num lugar estranho - uma palestra sobre Filosofia Clínica e Literatura, você pôde experienciar algo novo, um acolhimento naquelas palavras estranhas, que pareciam fazer sentido, dialogando com partes esquecidas de sua própria estrutura de pensamento.

Aquelas expressões ativavam memórias distantes, do que um dia imaginava ser, fazer, acontecer, ora refugiadas em algum ponto das suas desconsiderações. Pareciam coisas que haviam ficado pelo caminho...”

A clínica do filósofo, por ter essa essência libertária - que muitos tentam aprisionar nos moldes de uma só versão - se aproxima desses instantes de crise para um decifrar compartilhado sobre os rituais de inquietude em vias de se tornar. Um aspecto é sua tez de acolhimento fenomenológico, hermenêutica compreensiva, analítica da linguagem - fundamentos filosóficos - ingredientes onde o espanto com algo inédito (a representação de mundo da pessoa), ao se descrever em linguagem própria, não é rechaçado como uma patologia, síndrome, desvio comportamental, mas um evento a reivindicar uma aproximação com sua lógica singular.

Cláudia Lage diz assim: “Máscaras, simulacros, onde forjamos uma realidade que nos diz mais do que a nossa. Disfarçados de outros, alcançamos a nós mesmos.” (Labirinto da palavra, 2013. Pág. 9).

Procedimentos como o vice conceito, a esteticidade seletiva, um roteirizar, podem ajudar esses ensaios de vida nova, por onde alguém se exercita, com a ajuda de subterfúgios contraditórios com seu cotidiano, em ensaios para reencontrar-se com suas possibilidades existenciais.  

Talvez assim, no tempo que ainda resta, com a força dos desajustados, se possa reencontrar os sonhos nas noites sem lua, nas páginas da literatura incompreendida, na vertigem de uma vida que não se vê, mas suspeita existir. Quem sabe até melhorar as coisas ao redor, amar como se não houvesse amanhãs. As poéticas da singularidade, quando encontram sua melhor versão, apreciam saborear uma porção improvável de paraíso.    

Cláudia Lage lembra Cortázar: “(...) nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas sim em estar de acordo com a sua visão literária.” (Labirinto da palavra, 2013. Pág. 64). 

Ao ser levado pelas propostas de ser bem-sucedido, na ótica dos princípios de verdade, uma pessoa pode desviar-se de sua condição de maior intimidade, passando a desempenhar atividades que possam lhe alcançar alguma recompensa na comunidade dos desavisados. Sendo reféns das mesmas verdades, seguem multiplicando velhos ensinamentos sem pensar.   

Para ser inteiro consigo mesmo, em meio a tanta distorção de sua expressividade, pode ser preciso navegar por águas desconhecidas, localizar e aprender a ler a geografia subjetiva de sua singularidade. Vivenciar as rotas de autodescoberta para um endereço existencial incomparável, onde ser sujeito de sua história não seja um crime ou pecado, punido com o fogo das classificações ideológicas.  

Aquele abraço,

hs

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 38*

                  Prolegômenos a uma linguagem da não-loucura 

Algumas das vivências mais incríveis - quase improváveis - que tive nesses 30 anos de atividade como Filósofo Clínico, foram as clínicas com pessoas internadas em hospícios. Com elas você pode ter uma infinidade de conhecimentos, vedados a burocracia de uma sala de aula, aos melhores professores, longe das publicações acadêmicas.

Um de seus atributos é a lógica do vice conceito (conceito substitutivo, semelhante a metáfora ou metonímia), de onde costuma partir a fonte de inspiração do partilhante (internado) em vias de se encontrar, em meio a tanta desilusão e propostas insidiosas - de parte do alienista e coadjuvantes - para seu regresso a uma vida normal, distante de sua realidade em processo.

José Paulo Paes em seus ensaios: “(...) não seria despropositado ver também na metáfora uma forma de bricolage. À diferença da nomeação propriamente dita, que cria novos nomes para novas coisas (automóvel), a metaforização as designa por uma recombinação de itens lexicais preexistentes (arranha-céu). (Armazém literário, 2008. Pág. 112).

Em Juiz de Fora/MG, por exemplo, numa daquelas tardes de atendimento - eu e algumas alunas -, ao entrarmos na ala feminina, testemunhamos uma cena da estatura de uma Madona de Bruges, ou seja, encontramos duas mulheres nuas, sentadas no chão do corredor, onde uma delas, com feições maiores, amamentava a outra, bem menor, em seus braços.

Foram instantes de uma estética inédita, um pouco antes da enfermaria chegar e a cortina encerrar o espetáculo. Sei que esses eventos podem ser estranhos ou incabíveis ao mundo normalizado, onde muitos acreditam - talvez por escassez metodológica - ter de domar tais atitudes com a lógica dos psicofármacos.      

Existem tantas simbologias para a manifestação do fenômeno humano, quantas possam ser as pessoas. O exemplo acima trata de uma linguagem somática, silenciosa ao olho nu dos desavisados, no entanto, a quem puder enxergar, trata-se de um discurso existencial significativo.

José Paulo Paes indica: “Por força do seu poder heurístico é que a metáfora deixa de ser mero ornato para se converter em veículo fundamental da visão poética do mundo.” (Armazém literário, 2008. Pág. 123).

As estéticas da invenção, do descobrimento, da criação, presentes nas belas artes, literatura, música, teatro, através do vice conceito, conseguem, com sua produção criativa, superar os diagnósticos e prognósticos de base PSI. Ainda assim, as pessoas comumente internadas em prisões, disfarçadas de hospital, sustentam as verdades do lucro a qualquer preço. Um exemplo disso é o pressuposto de que, uma vez produtiva, ainda que desajustada, uma pessoa não é considerada louca.

Em Porto Alegre/RS, outro exemplo, numa das tardes de clínica avançada no hospício - eu e alguns alunos - fomos convidados por um louco a visitar seu sótão em Paris.

Como já o conhecíamos, com base em outros atendimentos e com interseção positiva, perguntamos como seria a viagem, as acomodações na capital francesa, já que éramos muitos? Respondia que - num lugar secreto no hospital - tinha escondido algumas vassouras voadoras e roupas especiais para a viagem. Quanto as acomodações parisienses, elas eram espaçosas, podiam receber todo mundo. Ele seria nosso guia por lá, iria nos apresentar seus amigos e lugares que ninguém mais conhecia. De soslaio, mirava o grupo de estudantes e o professor, que pareciam animados com a ideia!  

Por outro lado, na mesma direção, recordo do escrito de um professor catedrático de Filosofia, que passou a vida toda em salas de aula na universidade federal, que dizia: “O Hélio consegue encontrar poesia na loucura”. Na época me pareceu um certo sarcasmo, no entanto, um tempo depois, signifiquei como destaque ao meu trabalho.      

Os roteiros intelectivos se multiplicam em linguagem própria, no entanto, reivindicam uma disponibilidade de espírito nem sempre presente no papel existencial cuidador ou na perspectiva do partilhante, o qual detém, em sua expressividade singular, os meios para admitir ou rechaçar quem quiser de sua presença.  

Aquele abraço,

hs

domingo, 30 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 37*

                                  Onde estão as asas e os passarinhos?

Existe um lugar indeterminado em cada pessoa, escondido nalgum ponto de sua periferia. Esse endereço, pela via da intencionalidade, pode ensaiar os primeiros passos, dependendo do acolhimento e espaço para experimentação.  

Tive dificuldades em me adaptar as classes normais das escolas onde tentavam ensinar o lugar onde deveria me estabelecer, isto é, buscar as melhores notas num sistema comum. A muito custo concluí o ensino médio e a graduação. Lembro, por exemplo, a dificuldade em entender a lógica formal aristotélica. Após duas reprovações na disciplina, busquei refúgio na biblioteca da universidade.

Lá encontrei um livro sobre lógica dialética de Caio Prado Junior, onde tudo começou a fazer sentido, ou seja, a lógica formal aristotélica era fácil, eu dificultava as coisas. Com a lógica dialética pude perceber a diferença entre a cristalização discursiva daquela e a plasticidade dinâmica desta. No semestre seguinte enfrentei a cadeira de lógica formal noutros termos, agora com as melhores notas. Havia compreendido uma pela outra.  

Sartre indica: “(...) os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua variedade e a sua imprevisibilidade.” (As palavras, 2000. Pág. 37).

Ao pensar a interseção das pessoas com seu devir singular, parece necessário um endereço existencial, uma linguagem que faça sentido para sua especificidade em desenvolvimento, para depois compartilhar algum conteúdo para sua realidade em processo.

Jean-Paul Sartre em sua autobiografia As Palavras, refere a importância de sua relação com a biblioteca do avô, o encontro com os livros e a ampliação de sua visão, podendo contemplar aquilo que buscava sem saber. O espanto em descobrir nas prateleiras as obras para alimentar sua singularidade de menino inconformado com os limites de uma educação rígida, formal, igual para todo mundo.

O filósofo compartilha: “(...) todas as crianças são inspiradas, nada têm a invejar aos poetas, que são pura e simplesmente crianças.” (As palavras, 2000. Pág. 50). 

Um aspecto que merece ser lembrado, é o fato de que os sonhos, as esperanças, os devaneios, embalando nossa infância, adolescência, os dias de hoje, permanecem intactos em nossa subjetividade, podendo, a qualquer momento, manifestar sua condição, até então exilada, à espera de um instante qualquer para se dizer.

A poesia existencial - em cada pessoa - desmerecida pelas ideologias de consumo, elas mesmas devorando-se para se sustentar, talvez pudesse encontrar, nas franjas exiladas de si mesma, uma reescrita para seu roteiro existencial.      

Aquele abraço,

*hs  

domingo, 23 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 36*

                                  Onde, com quem, como aprender?  

O filme “Louco para ser normal”, de 2017, com direção de Robert Mullan e roteiro de Roberto Mullan e Tracy Moreton. Produzido no Reino Unido, possui 106 min de duração.

A obra trata – numa introdução – das atividades do psiquiatra escocês R.D. Laing, o qual trabalha, nos anos 1960, uma nova abordagem clínica denominada metanóia ou autocura. Laing foi um dos precursores da filosofia de trabalho denominada antipsiquiatria.

Sua proposta causou grande controvérsia e indignação entre seus pares, pois desconstruía, sob vários aspectos, o saber-poder do psiquiatra, e sua relação com o que produzia para depois tratar: a loucura.

Ao realizar a aproximação com uma nova abordagem terapêutica, o filme destaca alguns eventos do trabalho de Laing, como: o fato de residir no mesmo espaço das pessoas com as quais mantinha relação clínica; seu cuidado em oferecer uma interseção cuidadora com o fenômeno da singularidade (sem tipologias), visitando a sintonia subjetiva de cada um sob seus cuidados; sua produção escrita acontecia em meio as múltiplas atividades na casa que mantinha (não se tratava de um hospital psiquiátrico); a forte resistência de seus contemporâneos sobre sua atividade diferenciada, com interferências com base na legislação de seu país para conter suas ações.  

Apesar de ainda utilizar alguns conceitos da psiquiatria, demonstrava uma caminhada do papel existencial em direção a uma nova expressividade. Muitos de seus contemporâneos se utilizavam como exemplo de fracasso do seu trabalho, algumas exceções, que só faziam confirmar a regra sobre a eficácia e o alcance de sua proposta clínica com a maioria das pessoas atendidas.   

Thomas Kuhn com Bernard Barber: “A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros.” (A estrutura das revoluções científicas, 2013. Pág. 89).

Um ingrediente para reconhecer um novo paradigma, é a crítica contrariada da maioria dos integrantes da ciência normal que ele supera. Com esse fato, amplia-se a defesa de interesses dos profissionais das abordagens institucionalizadas, que se veem ameaçados pelas novas práticas.

Há uma zona de conforto existencial, no que se refere ao mundo das ideias e da resposta cumulativa da ciência normal, isto é, suas atividades (universidades, institutos) desenvolvem linhas de pesquisa de mestrados, doutorados, pós-doutorados, que só fazem acrescentar conceitos e definições para justificar aquilo que já existia, raramente ocorrem desajustes nesse contexto.

Quando um membro do clã modifica seu olhar e começa a enxergar novas possibilidades para as problemáticas, até então, descartadas pela ciência conhecida, os ardis - para com ele - costumam ser de exclusão dos times oficiais de pesquisa, como: perda da cátedra, verbas de representação, demissão.

Tornar invisíveis ou dificultar o aparecimento das novas ideias, são uma característica da ciência normalizada. Por outro lado, esse fato (a invisibilidade), por si só, costuma auxiliar na implementação das novas práticas, as quais vão se estabelecendo na sociedade pelas vias da exclusão, marginais. A escassez de recursos cede lugar ao borogodó dos envolvidos, os quais se sentem atraídos pelo papel histórico precursor.  

Segue-se a busca por esses endereços existenciais, onde acontecem as construções compartilhadas no campo da ciência anormal.  

Aquele abraço,

hs

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 35*

                                                 Síndrome de vira-lata? 

É interessante notar o fato de que, no Brasil, algumas armadilhas conceituais volta e meia se reapresentam, em nova roupagem, reagendando suas máximas as novas gerações. Como a verdade enraizada de que o que é bom vem do exterior, de longe. Ou que a língua universal é o inglês, ou os estilos de escrita, pintura, teatro, a forma de compor músicas, as roupas da moda. Divulga-se (com fartura de agendamentos) o que vem de outro lugar como algo melhor.    

Foi Nelson Rodrigues que, após a derrota do Brasil para o Uruguai na final da copa do mundo de futebol em 1950, em pleno Maracanã, cunhou a expressão: complexo de vira-lata.  

Em campos de atuação como a antropologia, sociologia, filosofia clínica e outras, embora seu amplo espectro de aplicabilidade e inserção junto as pessoas de seu meio (bairro, distrito, cidade, estado), ainda padecem de ter que escutar coisas como: isso é muito bom! Só pode ter vindo da Europa, dos USA.   

Agora, então, imagine um novo paradigma como a invenção do rádio e o telefone (Pe. Landell de Moura, 1893), o avião (Santos Dumont, 1901), a radiografia (Manuel de Abreu, 1936), a máquina de escrever (Pe. João Francisco de Azevedo, 1861), a Filosofia Clínica (Lúcio Packter, 1990), sendo a maioria autodidata ou oriunda de outras áreas, com rara participação acadêmica.  

Thomas Kuhn ajuda a entender o fenômeno: “Qualquer nova interpretação da natureza, seja ela uma descoberta, seja uma teoria, aparece inicialmente na mente de um ou mais indivíduos. São eles os primeiros a aprender a ver a ciência e o mundo de uma nova maneira.” (A estrutura das revoluções científicas, 2013. Pág. 241).

No caso das ciências humanas, especificamente na área de atuação das especialidades de base Psi, o que se testemunha é uma incompetência generalizada (questão de método) em compreender o fenômeno da singularidade.

Seja qual for o motivo (limitação nos estudos, acomodação profissional, dependência econômica), esse aspecto de se rechaçar a novidade (não contemplada pela ciência normal), torna-se um empecilho para o acolhimento e desenvolvimento dos novos modelos de compreensão e intervenção na realidade.

A metodologia ensinada em escolas, universidades, institutos de formação, com suas tipologias, classificações, a dependência da psicofarmacologia, passam longe de acolher a pessoa em seu contexto de ser inédito. Um exemplo disso é a multiplicação de síndromes, distúrbios, pelo fato de não se admitir e reconhecer uma abordagem capaz de superar as verdades de pretensão científica que chegam do outro lado do Atlântico.

Arnaldo Jabor compartilha: “Fisiológicos seculares, patrimonialistas, teimosos, arrogantes, malandros, ignorantes, prepotentes, apenas nos resta pensar: o que nos falta desaprender para chegar a um ideal de país? Como faremos para chegar ao futuro de uma desilusão? Quantas décadas levaremos para desaprender toda a estupidez que cultivamos durante 400 anos?” (Jornal O Globo, 20 de janeiro de 2001).

Nos dias de hoje, é comum professores indicarem tratamento psicológico e psiquiátrico aos alunos divergentes, muitas vezes incomodados com os conteúdos distantes de sua área de interesse, turmas superlotadas, professores despreparados e desmotivados para a sala de aula. Sem contar a proliferação de questões familiares, interesses, disputas. Assim, parece cômodo diagnosticar – autismo, pânico, burnout – as doenças da moda, como justificativa ao fracasso na convivência com o fenômeno da singularidade.  

Aquele abraço,

*hs