Quem sou eu

Minha foto
Porto Alegre, RS, Brazil
Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 35*

                                                 Síndrome de vira-lata? 

É interessante notar o fato de que, no Brasil, algumas armadilhas conceituais volta e meia se reapresentam, em nova roupagem, reagendando suas máximas as novas gerações. Como a verdade enraizada de que o que é bom vem do exterior, de longe. Ou que a língua universal é o inglês, ou os estilos de escrita, pintura, teatro, a forma de compor músicas, as roupas da moda. Divulga-se (com fartura de agendamentos) o que vem de outro lugar como algo melhor.    

Foi Nelson Rodrigues que, após a derrota do Brasil para o Uruguai na final da copa do mundo de futebol em 1950, em pleno Maracanã, cunhou a expressão: complexo de vira-lata.  

Em campos de atuação como a antropologia, sociologia, filosofia clínica e outras, embora seu amplo espectro de aplicabilidade e inserção junto as pessoas de seu meio (bairro, distrito, cidade, estado), ainda padecem de ter que escutar coisas como: isso é muito bom! Só pode ter vindo da Europa, dos USA.   

Agora, então, imagine um novo paradigma como a invenção do rádio e o telefone (Pe. Landell de Moura, 1893), o avião (Santos Dumont, 1901), a radiografia (Manuel de Abreu, 1936), a máquina de escrever (Pe. João Francisco de Azevedo, 1861), a Filosofia Clínica (Lúcio Packter, 1990), sendo a maioria autodidata ou oriunda de outras áreas, com rara participação acadêmica.  

Thomas Kuhn ajuda a entender o fenômeno: “Qualquer nova interpretação da natureza, seja ela uma descoberta, seja uma teoria, aparece inicialmente na mente de um ou mais indivíduos. São eles os primeiros a aprender a ver a ciência e o mundo de uma nova maneira.” (A estrutura das revoluções científicas, 2013. Pág. 241).

No caso das ciências humanas, especificamente na área de atuação das especialidades de base Psi, o que se testemunha é uma incompetência generalizada (questão de método) em compreender o fenômeno da singularidade.

Seja qual for o motivo (limitação nos estudos, acomodação profissional, dependência econômica), esse aspecto de se rechaçar a novidade (não contemplada pela ciência normal), torna-se um empecilho para o acolhimento e desenvolvimento dos novos modelos de compreensão e intervenção na realidade.

A metodologia ensinada em escolas, universidades, institutos de formação, com suas tipologias, classificações, a dependência da psicofarmacologia, passam longe de acolher a pessoa em seu contexto de ser inédito. Um exemplo disso é a multiplicação de síndromes, distúrbios, pelo fato de não se admitir e reconhecer uma abordagem capaz de superar as verdades de pretensão científica que chegam do outro lado do Atlântico.

Arnaldo Jabor compartilha: “Fisiológicos seculares, patrimonialistas, teimosos, arrogantes, malandros, ignorantes, prepotentes, apenas nos resta pensar: o que nos falta desaprender para chegar a um ideal de país? Como faremos para chegar ao futuro de uma desilusão? Quantas décadas levaremos para desaprender toda a estupidez que cultivamos durante 400 anos?” (Jornal O Globo, 20 de janeiro de 2001).

Nos dias de hoje, é comum professores indicarem tratamento psicológico e psiquiátrico aos alunos divergentes, muitas vezes incomodados com os conteúdos distantes de sua área de interesse, turmas superlotadas, professores despreparados e desmotivados para a sala de aula. Sem contar a proliferação de questões familiares, interesses, disputas. Assim, parece cômodo diagnosticar – autismo, pânico, burnout – as doenças da moda, como justificativa ao fracasso na convivência com o fenômeno da singularidade.  

Aquele abraço,

*hs  

terça-feira, 11 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 34*

  

“Viemos do pó e ao pó retornaremos. A vida é o que fazemos no breve instante entre a poeira e a poeira”.   

                                                      Gustavo Bertoche 

Um dia desses, num texto publicado nas redes sociais, o professor Gustavo Bertoche, possivelmente um dos maiores pensadores brasileiros, destaca um papel dos pais na educação dos filhos.

Tendo como referência uma questão formulada por seu filho de 12 anos, onde este lhe pergunta: “qual o objetivo da vida?”, o filósofo encontra uma resposta em Aristóteles, ao indicar que o objetivo da vida é descobrir o que de melhor podemos fazer e fazer cada vez mais.

Ao ter um horizonte reflexivo com base na Filosofia Clínica, onde se acolhe e cuida do fenômeno da singularidade, é uma raridade encontrar alguém ocupado em desenvolver em seus filhos - desde tenra idade - um senso de autoconhecimento, reflexão, ensaio, descoberta.

Nossa sociedade de consumo, via de regra, estruturada como imitação e um olhar voltado para fora, em busca de outras línguas, onde sequer se consegue desenvolver a própria linguagem diante do espelho, estimula-se a viagem para longe, de onde se acenam joias raras, vivências extraordinárias, mundos fantásticos.

Quando se trata da educação escolar, que oferecem currículos bilingues, onde se aprende português/inglês ou português/francês ou português/alemão, parece reforçar a ideia de que algo superior vai ser encontrado sempre noutro lugar.

Desconheço um exemplo onde se ofereçam disciplinas voltadas para um processo de autoconhecimento, respeitando os trajetos da realidade em processo do aluno. Esses eventos, ao prescrever seus roteiros, agendam formas de sentir, pensar, escolher, quase sempre como algo inacessível.      

 Ao se descobrir extraordinário, único, diferente, singular, se pode ter uma tipologia como recompensa, ser portador de um distúrbio, ganhar a medalha da anormalidade, manifestar uma nova síndrome, dessas que os especialistas multiplicam para manter suas metodologias capengas.  

Maurice Blanchot recorda Artaud: “Entretanto, na época da correspondência com Jacques Riviére, enquanto ainda escrevia poemas, ele conserva claramente a esperança de se tornar igual a si mesmo” (O livro por vir, 2005. Pág. 53).

No contexto escolar é comum a oferta generosa de matérias para estimular raciocínios, construir e desconstruir coisas, elaborar maquetes, desenvolver novas tecnologias como a robótica e a IA. Assim esses estudos aliados a educação familiar, a qual é refém do que fizeram com os pais, avós, bisavós, na maioria das vezes, reproduzem com seus filhos, aquilo que fizeram com eles.  

Por outro lado, na mesma direção, existem aqueles raros, que alimentam a curiosidade na direção de um processo voltado para a autodescoberta, como uma janela que se abre para dentro, permitindo enxergar e conviver com os próprios sentimentos, sensações, ideias, desenvolvendo a pitada de infinito que lhe toca.  

Em C.S. Lewis: “A Literatura enquanto logos é uma série de janelas, ou mesmo de portas.” (Como cultivar uma vida de leitura, 2020. Pág. 16).  

A Filosofia e a Literatura poderiam ter um papel de destaque nesse processo.

Talvez, a partir de uma interseção singular da pessoa com ela mesma e seu mundo, seja possível compartilhar as novidades que vão brotando de dentro para fora, como algo inédito, a provocar espantos em forma de rascunho, estimular aptidões de invenção, criatividade, originalidade. Com isso, no tempo subjetivo do outro, em seu próprio território, seria possível conjugar ingredientes adequados aos momentos de novidade em cada instante de seus dias.

Aquele abraço,

hs

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Filosofia Clínica agridoce 33*

 

                                             A palavra reencontro 

Existem autores literários que, com sua escritura, encontram a palavra certa, para nos conduzir por seus roteiros, evidenciando refúgios nas entrelinhas de quase nada. Sua atividade criativa se realiza em interseção com sua fonte de inspiração: a vida.

Os termos agendados em seu intelecto dizem respeito aos locais por onde anda, com quem convive, as leituras de um livro que se multiplica no cotidiano. A importância da leitura para desenvolver os limites de uma estrutura de pensamento, diz respeito a possibilidade de ser plural, contida em cada um, seja como possibilidade ou como algo em processo.

Entendendo que os princípios de verdade, representados pelos caciques incensados pela mídia, os quais tratam de agendar o que deve ser valorizado, lido, apresentado, o que vestir, como e onde comer, como viver, cuidam dos deslizes da imaginação que ultrapassa os limites de suas verdades.

Nélida Pinõn contribui: “(...) encerrado na água-furtada de São Jorge, indago se teria sido no passado um navegante ou um poeta que mesmo sem o dom da escrita, semeara em torno palavras incandescentes, todas sem dono. Sob o abrigo da imaginação, que é minha morada.” (Um dia chegarei a Sagres, 2020. Pá. 133).  

Assim deveríamos ter mais cuidado ao escolher um livro, um local para morar, com quem conviver, pois as palavras com que a realidade se apresenta, tem o poder de sugerir ideias, sensações, direcionar buscas, interseções com coisas e pessoas, inclusive com a singularidade que se quer livre.  

As palavras pronunciadas, escritas, caladas, contém a magia de capturar - pela via intelectiva - a atenção e o foco, roteirizando espaços por onde se experiencia a vida num instante. Octavio Paz ao referir: ‘todos somos poetas’, parece alertar para o fato de não somente a escrita ter o dom da poesia, mas a existência de outras poéticas, como um jardineiro cuidando de um jardim como nenhum outro ou o fotógrafo que encontra um ângulo desconhecido da realidade, ou aquele texto desconsiderado, ora redescoberto por esses dias da biografia de cada um.

Nélida Piñon indica: “Havia que estudar, ter a leitura como prumo. Por meio dela saberia que o mundo ia além da nossa natureza, dos limites da aldeia.” (Um dia chegarei a Sagres, 2020. Pág. 173).

A autora destaca a importância e o significado da leitura, seja como um rumo a perseguir ou como um processo de libertação pessoal, uma aliada dos dias e noites, por onde se pode desenvolver uma autobiografia, ao se conseguir o melhor de uma condição singular em processo.    

 Governantes bem-intencionados sabem da importância em investir nas escolas, universidades, em centros de pesquisa diferenciados, na edição de bons livros, com os quais os candidatos a serem sujeitos em sua história, poderão desenvolver uma aptidão crítica e reflexiva. O contrário também é verdadeiro.   

Sartre em seu texto “O existencialismo é um humanismo” refere que a conquista de uma essência acontece a partir da existência. Noutras palavras, não se nasce pronto, mas se tem a condição - em si mesmo - de desenvolver-se na vida em direção a uma expressividade singular. Mesmo ao ter de superar condições adversas como: a educação familiar, escolar, religiosa, as verdades de seu tempo.

Nesse sentido a leitura é uma ameaça as ideologias da dominação e do controle social, uma aliada para se saber mais e melhor sobre o mundo onde se vive e convive, nesses tempos de uma tecnologia nem sempre favorável ao fenômeno humano.

Aquele abraço,

hs

sexta-feira, 31 de maio de 2024

De quantas mortes você já ressuscitou?*

A condição para mostrar a vida tal qual se apresenta, inclui a possibilidade de se reescrever, além do primeiro olhar, as páginas do velho diário. Um desses refúgios por onde se insinuam conteúdos desatualizados, também eles compondo essa realidade se reapresentando em múltiplas expressões. Seus apontamentos convidam a emancipar as contradições entre o que se diz e o que se faz.

O convívio com esses desdobramentos existenciais auxilia a elucidar a representação por trás dos percursos da singularidade. Sua releitura descobre espaços, até então, desconsiderados. Muitas vezes, na inquietude de uma voz silenciada, se encontra algo mais, propício aos novos tempos.

Sua redação está contida na palavra vivenciada, traduzindo fenômenos que estavam ali, como benção, estorvo, desassossego. Esses manuscritos da estrutura de pensamento instituem, na equivocidade dos paradoxos, a vida até então fora de foco. A interseção do sujeito com seus relatos pode ampliar o que já existia como promessa ou desconstrução. Nos antigos manuscritos, se pode acessar a distância percorrida e o que está por vir.

Tudo aquilo que se vê, ouve, sente, nesse mergulho da reciprocidade, acrescenta algo até então, desconhecido. O pensador de raridades estabelece uma conversação com esses territórios, até então desconsiderados. Lembrando de que a concepção de si mesmo sendo outro pode ocupar boa parte do caminho.

Ao se alterar o uso dos termos comuns, o rumo dos acontecimentos também se desloca. Na ausência de uma abordagem emancipadora, as ondas desse mar se sucedem em busca de uma terra que, de tão próxima, se distancia. Nesse sentido, um capítulo dessa história, por si só, pode conter indícios sobre o restante da obra.

As dialéticas do movimento estabelecem a contradição da palavra escrita com a palavra vivida, bem assim, um saber aprendiz para transgredir seus muros. A crônica dessas vivências se escreve vivendo, seus episódios com aspecto de coisa nenhuma, lhe permitem deslocar-se livremente. Ao percorrer os múltiplos endereços existenciais, com a alternância dos cenários, é possível decifrar seu desenvolvimento discursivo.

Sua tez de absurdidade é aliada para superar os limites da última palavra. Na convivência com as dores do parto é possível compreender a natureza e o alcance dessas metamorfoses, as quais, após o caos precursor, estruturam renascimentos, parindo outro si mesmo. A essência do visar incomum aprecia o convívio com os dialetos da vida extraordinária. Se assim não fosse, permaneceria irreconhecível, à espera de algum diagnóstico.

Os discursos existenciais pluralizam o espetáculo do mundo. Tendo como referência uma retórica protagonista, reescrevem sua história, vivenciando a parcela de infinito que lhes cabe por inteiro. Um sujeito, ao dialogar com sua condição existindo, compartilha seu selo de originalidade, apresenta a fonte de inspiração de onde partiu. Ao se reconhecer como autor da própria história, integra a estética das ruas com o sabor dos seus devaneios.

Aquele abraço,

hs

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 32*

 

                                Qual síndrome te representa?

Um dia desses, pensando em assistir um jogo do Grêmio, sentado, confortavelmente, diante da tv, vejo - quase não acredito! - uma faixa em destaque, de frente para a transmissão das imagens, que dizia assim: “Gremistas na síndrome do espectro autista”.

Outro dia uma amiga mostrou sua medalha, conquistada numa maratona, a inscrição: “corrida da síndrome do espectro autista”. Na mesma direção, nessas coisas que surgem em quase todo lugar, apareceu a foto de uma menina com a camiseta escrita: “sou autista”, ela parecia feliz, dançava... Quem postou a foto foram os pais.

Qual psicopatologia (disfarçada de qualquer outra expressão) te representa? Escolhe, manda ver, te junta a multidão de desavisados!

Nos últimos meses é possível notar uma avalanche de propaganda nas mídias sociais e antissociais, divulgando cursos, palestras, seminários das abordagens da tradição psiquiátrica, psicanalítica, psicologias... nem a filosofia clínica escapou, em suas variantes de distorção.

David Cooper alerta: “A violência da psiquiatria só pode ser compreendida com base no seu dogma fundamental: se não compreende o que outro ser humano está a fazer, diagnostique-o! Nunca deixará de encontrar vítimas coniventes que farão o jogo. Mas começamos agora a cansar-nos desse jogo.”  (A linguagem da loucura, 1978. Pág. 101).

Cada vez mais se propagam as verdades da medicina do corpo, como a única possibilidade de acolhimento e compreensão do fenômeno humano. Como se esse fosse constituído somente por ossos, músculos, nervos, mãos, pés, órgãos internos... A farmácia da esquina e suas igrejas encontram os fiéis na hóstia da alienação.      

É antiga a proposta, de setores da ciência, em querer localizar o esconderijo da alma. Qual o recanto onde o espírito se abriga, ou como traduzir adequadamente a vida em suas múltiplas facetas, modos de aparecimento, representação, sensações, ideias, buscas, de onde vem, como se desenvolvem, qual sua estrutura?

Nesse cenário multifacetado, impregnado de jogos de cena, um novo paradigma, ao ser incompreendido, poderá ser condenado as fogueiras da ciência normal. Um saber-poder se desdobra em fabricar loucuras, síndromes, doenças a qualquer preço. Um dito popular ensina: “muito cuidado ao passar em frente ao consultório do psiquiatra, pois ele vai encontrar uma doença mental em você!”.

Uma dificuldade que se apresenta, especificamente em nosso país, é a escassez (ideológica) de recursos para a educação, desde seus fundamentos até a pós-graduação. Talvez a leitura de Nicolau Maquiavel em seu texto: O príncipe, ajude a entender essa espécie de coisa. Alguns anos atrás, quando era professor de Filosofia numa escola particular, num momento do intervalo para o cafezinho, o diretor afirmou: “nossa escola tem como diferencial a preparação de líderes, empreendedores, futuros gestores da sociedade...”. Na semana seguinte, sai desse lugar sem olhar para trás!   

Com David Cooper: “Razão e Desrazão são ambas maneiras de conhecer. A loucura é uma maneira de conhecer, outro modo de exploração empírica dos mundos tanto interior como exterior. A razão para a exclusão e invalidação da loucura não é puramente médica, nem estritamente social. É, como tentarei mostrar, política.”. (A linguagem da loucura, 1978. Pág. 153).

Cooper, esse médico psiquiatra, um dos líderes do movimento conhecido como antipsiquiatria, desenvolveu um conjunto de reflexões ao longo de sua clínica, que ajudam a entender sua sintonia existencial com os desvalidos, invalidados pela chamada ciência normal de sua especialidade e seus coadjuvantes, repletos de narrativas para enquadrar o fenômeno humano numa medida incabível ao seu ser singular.

Ao encontrar a abordagem da Filosofia Clínica - em 2025 serão 30 anos de dedicação exclusiva - vislumbrei um novo paradigma, para acolher e cuidar das pessoas em seus instantes de ressignificação existencial. Naquela época, morava em Novo Hamburgo, vinha a capital gaúcha de jipe (modelo Ford 1960), para as aulas no antigo Instituto Packter. Dediquei cada momento dos encontros de estudo, seminários, para aprender os fundamentos da nova teoria, depois na clínica pessoal, e aplicados na supervisão, nos atendimentos, na formação continuada.     

A propaganda, o marketing, a divulgação de novas e velhas ideias, constituem uma ferramenta poderosa, capaz de destacar eventos importantes e significativos de nossa condição humana em processo. Seu uso, ao ter um caráter ideológico (manipulador), produz consequências que poderão ser avaliadas - crítica e reflexivamente - com um distanciamento histórico.    

Aquele abraço!

*hs

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 31*

 
                                    

                              Sintonia existencial e novos paradigmas 

Existem tantos modelos de terapia quantas são as pessoas em busca de um ponto de apoio para suas questões existenciais. Com isso é possível entender sua diversidade: xamanismos, exorcismos, aconselhamentos, danças de cura, chás milagrosos, confessionários religiosos, psicanálises, psicologias, psiquiatrias, filosofias clínicas, e tantos outros rituais como proposta ao entendimento e cuidado do fenômeno humano.

Acredito que as abordagens terapêuticas, quando ofereçam um acolhimento e bem-estar aos seus integrantes, tenham a ver com a sintonia existencial (autogenia) dos envolvidos. Ressalvadas as influências do marketing, jogo de cena.      

Nos dias de hoje, impulsionados pela ideologia da propaganda (filmes, teatro, palestras, redes sociais, cursos acadêmicos, artigos de jornal, entrevistas, publicações) a liderança parece estar com a Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, em suas diferentes formas de apresentação. A repetição - via agendamento - desses modelos de intervenção nas mídias, reafirma a ideia (equivocada) de que essas metodologias detém a melhor resposta à crise existencial de todo mundo. Afinal, todo mundo é ninguém!

O esboço de uma nova abordagem terapêutica, conhecida como Filosofia Clínica, desde os anos 1990, iniciada com o trabalho e a pesquisa do filósofo gaúcho Lúcio Packter, vem contemplando uma fatia de pessoas diferenciadas, as quais encontram na nova abordagem um acolhimento compreensivo que suspeitavam existir, mas não sabiam onde encontrar.   

Um dos aspectos dessa nova concepção clínica, é a ideia de indeterminação (Werner Heisenberg), que se oferece em contraponto as generalizações e classificações das metodologias clássicas.

Fritjof Capra ensina: “O grande feito de Heisenberg foi expressar essas limitações dos conceitos clássicos de uma forma matematicamente precisa – que hoje leva seu nome e é conhecida como princípio de indeterminação. (...) O princípio de indeterminação mede o grau em que o cientista influencia as propriedades dos objetos observados pelo próprio processo de mensuração.” (Sabedoria incomum, 1988. Pág. 15).  

Esse pressuposto ajuda a entender o fundamento da singularidade com o qual a Filosofia Clínica trabalha, ao distanciar-se das abordagens de base DSM, suas tipologias e classificações a priori.

A contradição e o distanciamento não param por aí!

Os fundamentos do novo paradigma, encontram seus subsídios na Filosofia, como: fenomenologia (Merleau-Ponty), analítica da linguagem (Wittgenstein), hermenêutica compreensiva (Gadamer), representação de mundo (Schopenhauer), dentre outros, em íntima conversação com as práticas de consultório (hoje já são 30 anos, desde os primeiros atendimentos e turmas da formação clínica).  

A nova abordagem da Filosofia Clínica encontra seu chão numa convergência de momentos diferenciados na terapia. Tendo como ponto de partida os exames categoriais, a estrutura de pensamento e submodos, a qualidade da interseção entre o filósofo clínico e seu partilhante, é possível encontrar um caminho para qualificar o alcance das construções compartilhas na hora-sessão.

Em Capra: “Bateson costumava enfatizar que para descrevermos a natureza com precisão deveríamos tentar falar a língua da natureza.” (Sabedoria incomum, 1988. Pág. 64).

O filósofo terapeuta, inicialmente, ao acolher seu partilhante, cuida de sua própria estrutura de pensamento em interseção, para interferir minimamente (redução fenomenológica) na expressividade do outro sob seus cuidados. Depois disso atua para compreender sua linguagem em modo próprio (singular), em visitas autorizadas ao seu jardim subjetivo.

A busca por reconhecer o uso que o partilhante faz das palavras, seu sentido e direção, o contexto onde se desenvolvem, bem como a identificação da relação tópica estrutural determinante, vai concedendo ao filósofo clínico um constructo de matéria-prima para qualificar sua atividade. Nessa direção, será possível encontrar os procedimentos específicos para um partilhante, os quais, elaborados para uma determinada circunstância clínica, não poderão ser utilizados com outra pessoa. 

Fritjof Capra contribui: “Heisenberg mostrou que um elétron, por exemplo, pode surgir como uma partícula ou como uma onda, dependendo de como o observamos. Se fizermos ao elétron uma pergunta no plano das partículas, ele nos dará uma resposta no plano das partículas; se lhe perguntarmos algo no plano das ondas, ele nos responderá no plano das ondas.” (Sabedoria Incomum, 1988. Pág. 116).

Talvez essa informação contribua com a razão de se ter tantas terapias quantas sejam as pessoas, uma vez que a sintonia existencial de cada uma é singular. Sob muitos aspectos, refém de sua circunstância de vida, suas relações, o período histórico, as ideias, normas e leis de seu cotidiano, as verdades hegemônicas ao seu redor.

Assim, cabe ao filósofo clínico distanciar-se desse espírito de rebanho, num acolhimento aprendiz com a pessoa sob seus cuidados - caso a caso - para decifrar seu padrão autogênico, as alternativas que sua estrutura de pensamento oferece. Nesse sentido, cada um, de acordo com suas possibilidades, vai encontrando (na vida) um caminho para algo que lhe represente, onde sua expressividade não seja tratada como doença ou anomalia.   

Aquele abraço!

*hs   

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 30*

 

                  Quem interna quem? O último apaga a luz, por favor!

A obra: Escritos de Antonin Artaud, publicada pela editora LPM de Porto Alegre/RS em 2019, com organização, tradução e notas de Claudio Willer, oferece recortes de uma hermenêutica compreensiva, sob a ótica de um pensador singular.

Incompreendido por sua época, e, sob muitos aspectos ainda hoje, internado, tratado pela psiquiatria dos psicofármacos, eletrochoques, como se fora um bicho ameaçador, por suas ideias, atitudes, registrados em textos diferenciados.

Ao não submeter sua estrutura de pensamento ao olhar medíocre de quem ousou tratá-lo, é aprisionado e torturado com experimentos vários, propondo normalizar sua condição crítica, analítica, revolucionária.

O incômodo Artaud ao mundo de sua época, lhe custou a própria liberdade, uma vez que passou a maior parte da vida entrando e saindo de manicômios, onde a psiquiatria tentava ajustá-lo.   

Artaud ensina: “Há um ponto em vocês que médico algum jamais entenderá e é este ponto, a meu ver, que os salva e torna augustos, puros e maravilhosos: vocês estão além da vida, seus males são desconhecidos pelo homem comum, vocês ultrapassaram o plano da normalidade e daí a severidade demonstrada pelos homens, vocês envenenam sua tranquilidade, corroem sua estabilidade.” (Escritos de Antonin Artaud, 2019. Pág. 29),

Até encontrar a abordagem da Filosofia Clínica (versão inicial dos anos 1990), o que se tinha, com raras exceções, era o que descreve o pensador dos escritos. Desde 1970 conheço essa realidade, primeiro como acompanhante, depois como Filósofo Clínico. Inicialmente no sanatório Kaempf, rebatizado de Vida Nova, em Santa Cruz do Sul, hoje extinto, devido a lei de reforma psiquiátrica (lei antimanicomial 10216/2001). Depois na ala psiquiátrica do hospital universitário de Santa Maria, ainda o Hospital Espírita em Porto Alegre, e outros.

Uma peregrinação infindável em busca de cura, para a loucura de um de seus integrantes. Interessante notar que o diagnóstico se iniciava dentro de casa, na própria família, seja por ignorância ou interesse, aí se encontrava um personagem ideal (meu pai) para representar o desajuste familiar. Uma pessoa sensível, generosa, alegre, animada, algumas vezes revoltada, que gostava de viver e conviver. A psiquiatria, a família, a sociedade, transformou sua singularidade em vegetal, um pouco antes de partir.  

Com Artaud: “Foi assim que uma sociedade tarada inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas (...). A sociedade mandou estrangular em seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se (...) um louco é também um homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.” (Escritos de Antonin Artaud, 2019. Págs. 162 e 164).   

Não é raro encontrar na esteticidade seletiva, um caminho de tradução aproximada, para as fases de desestruturação subjetiva, algumas vezes até um pouco antes do acolhimento compreensivo, da interseção clínica dialogada, e construções compartilhadas.   

A analítica da linguagem em Wittgenstein ensina que o sentido das palavras pertence ao sujeito que fala, escreve, silencia. Os jogos de linguagem precisam ser compreendidos em sua fonte de originalidade e não fora. Uma hermenêutica que despreze essa característica fundamental da singularidade, se associa ao rol de torturas, distorções, experimentos psiquiátricos (sonoterapia, lobotomias, choques insulínicos...) e seus coadjuvantes, tão em voga, ainda hoje na sociedade, muitas vezes travestida de boas intenções, outras disfarçadas com novas nomenclaturas.    

Nesse sentido, se associam as ideias de Michel Foucault, em sua obra: “O nascimento da clínica”, onde ensina, dentre outras coisas, que conceitos como: cura, loucura, saúde, doença, são conceitos políticos.

Por outro lado, na mesma direção, existe um clima de reflexão crítica em torno da questão, onde profissionais da nova geração e alguns veteranos, começam (no âmbito da psiquiatria) a rever pressupostos, questionar tratamentos. Em casos raros, como a antipsiquiatria e a não-psiquiatria, rasgam diplomas, reinventam práticas cuidadoras, rumos existenciais. Mas isso não é para qualquer um!

Recordo uma cantiga: um louco incomoda muita gente, dois loucos incomodam, incomodam, muito mais...

Hoje em dia, os textos de Antonin Artaud são estudados e reverenciados, no mundo do teatro, cinema, como revolucionários, libertários, expressivos, um pré-requisito a formação de novos atores e atrizes.   

Aquele abraço,

*hs  

sábado, 30 de março de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 29*


 







                     Sobre a arte de decifrar incógnitas 

O filme: Dogman, de 2023 (disponível no Prime vídeo), com roteiro e direção de Luc Besson, oferece um olhar aproximado com o fenômeno da singularidade.

Tendo como ponto de partida alguns recortes da vida do personagem Doug, a psiquiatra que o entrevista na prisão, refaz alguns aspectos de sua vida, com intervenções que acabam direcionando sua narrativa. Ainda assim, mesmo sob a égide da psicanálise - disfarçada de psiquiatria - a obra oferece rastros de algo mais, possivelmente pela interpretação magistral de Caleb Landry Jones como Doug, e coadjuvantes diferenciadas.   

A obra também se destaca por evidenciar a situação de um personagem a margem dos princípios de verdade, tendo como companhia seus cães - igualmente abandonados - os quais se associam para viver suas circunstâncias existenciais.

Doug é um cadeirante que, após uma prisão, e com a interferência de uma psiquiatra, passa a relatar alguns eventos de sua vida. Com isso nós os expectadores, somos convidados a vivenciar alguns momentos de sua trajetória de vida, pela batuta do mestre Luc Besson.   

Algo que se destaca em filmes, peças de teatro, romances com base em metodologias da área Psi, é a ilusão de que, ao efetuar recortes (agendamentos inadvertidos) na história de vida das pessoas, destacando os eventos da infância (Freud), esse viés por si só, sugere uma competência para acessar a estrutura de pensamento singular.

Sei que aquilo que não se consegue acessar, pela via discursiva de um paciente psicanalítico ou psiquiátrico, é jogado para o tal inconsciente. Também conheço a força dos agendamentos da publicidade, marketing, a mídia e suas derivações, no que diz respeito a proposta por hegemonia do seu discurso ideológico.   

No filme, a única possibilidade ao personagem principal é um caminho sem volta, traduzido nas cenas finais, bem assim o seu repúdio a condição humana, em detrimento de seu amor aos cães que o acolhem. Existe uma tendência em muitas obras de arte, para confirmar a necessidade de punição a quem vive em desacordo com sua época.   

Talvez uma referência de obra aberta (Umberto Eco), pudesse - ao menos cogitar - o que não se sabe, como cautela sobre a existência de uma microfísica de poder (Michel Foucault), onde múltiplos personagens atuam, nem sempre de acordo com uma pré-determinada vida normal.   

É o caso do filme: Anatomia de uma queda, de 2023. Direção: Justine Triet. Roteiro de Justine Triet e Arthur Harari. Onde a história nos leva, o tempo todo, em direção a incógnitas que não podem ser decifradas por inteiro, restando dúvidas, hipóteses, considerações, de acordo com as possibilidades do expectador.

Aquele abraço,

*hs