Ao filósofo clínico compete
visualizar a natureza da relação entre tópicos determinantes numa estrutura de
pensamento, bem como se apropriar dos submodos que dizem respeito ao sujeito
sob seus cuidados. Isso sem descuidar de outras possibilidades, como a elaboração
e partilha de caminhos que contribuam aos projetos da terapia.
É importante lembrar que os
mesmos tópicos significativos da estrutura de pensamento, de duas ou mais
pessoas, ainda assim preservam sua especificidade (conteúdos), devido às
circunstâncias em que foram se constituindo. Aqui se destaca a caminhada da
singularidade, ao preencher determinados tópicos com seu discurso existencial,
ou seja, um mesmo tópico, ainda quando importante numa e outra estrutura,
preserva uma característica própria quanto a sua efetividade, realizando um
movimento incomparável na interseção com os demais pressupostos da sua malha
intelectiva.
Jorge Amado diz assim: “Por onde andaria
Rosa Palmeirão? Nascera naquele cais, fora pelo mundo, que não gostava de estar
num lugar só. Ninguém sabe por onde ela anda. Onde ela estiver tem barulho.
Porque ela traz navalha na saia, punhal no peito e porque tem um corpo bem-feito
(...)” (Mar morto, 1990).
Este fragmento contribui para o
estudo da interseção entre vestígios de paixão dominante, comportamento-função,
vice-conceito, expressividade, ou seja, a atitude de se deslocar pelo mundo,
viajar, transitar, surge como uma suspeita de paixão dominante, enquanto o
vice-conceito se mostra nos termos cuja literalidade diz uma coisa e o
significado ou intenção do autor diz outra como o caso de: “ela traz navalha na
saia, punhal no peito”. Ao identificar a estrutura de pensamento, cabe ao
filósofo clínico encontrar os procedimentos clínicos com os quais poderá
melhorar a relação entra os tópicos determinantes, qualificando o discurso
existencial partilhante.
Neste trecho, pode-se vislumbrar,
ainda, rastros de uma argumentação derivada (submodo), a qual não deixa claro
se é o caso de buscar as origens do comportamento de Rosa Palmeirão ou se as
coisas estão indo bem como se encontram. Quando isso ocorrer, o filósofo
clínico deve buscar subsídios, nos exames categoriais do partilhante, com dados
divisórios, atalhos, enraizamentos. Noutro apontamento do autor: “(...) o vento
levava as palavras” (Mar morto, 1990).
Em uma análise dessa natureza, um
dado isolado vale quase nada, no entanto, quando associado ao contexto de onde surgiu,
pode constituir um indício de conjugação tópica estrutural determinante à
pessoa. O significado e o alcance de um procedimento clínico como o
vice-conceito, por exemplo, deve ser trabalhado em conformidade com os
critérios para identificação dos tópicos e submodos, os quais, além de
determinantes, devem fazer sentido ao partilhante.
Um vice-conceito pode significar
não querer dizer ou ocultar, pode tratar-se de um jeito próprio de
expressividade. Trata-se de um procedimento muito comum nas pessoas internadas
(voluntariamente ou não) em hospitais psiquiátricos embasbacados, na tentativa
de corrigir discursos, medicalizar, normalizar condutas, desmerecendo o
vocabulário subjetivo da pessoa exilada. Quando poderiam – se tivesse método e
autonomia – buscar outras formas de acolhimento, tendo como referência as
narrativas da originalidade diante de si.
No entanto, para isso se
realizar, seria necessário uma abordagem e circunstâncias propícias, de
respeito, atenção e cuidado diferenciados, os quais a maioria das instituições
desconhece, talvez pela excessiva reverência ao deus psicofármaco, ou pela base
curricular das faculdades de medicina e psicologia. Nesse sentido, seus
programas oferecem classificação, tipologia, protocolos, rigidez conceitual e
conversão à uma normalidade de rebanho, distantes do fenômeno singular em
processo.
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica – Anotações e reflexões de um consultório. Ed. Sulina/Porto
Alegre/RS, 2021.
**Instagram: @hélio_strassburger