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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Um território subjetivo com linguagem própria*

 

Ao filósofo clínico compete visualizar a natureza da relação entre tópicos determinantes numa estrutura de pensamento, bem como se apropriar dos submodos que dizem respeito ao sujeito sob seus cuidados. Isso sem descuidar de outras possibilidades, como a elaboração e partilha de caminhos que contribuam aos projetos da terapia.

É importante lembrar que os mesmos tópicos significativos da estrutura de pensamento, de duas ou mais pessoas, ainda assim preservam sua especificidade (conteúdos), devido às circunstâncias em que foram se constituindo. Aqui se destaca a caminhada da singularidade, ao preencher determinados tópicos com seu discurso existencial, ou seja, um mesmo tópico, ainda quando importante numa e outra estrutura, preserva uma característica própria quanto a sua efetividade, realizando um movimento incomparável na interseção com os demais pressupostos da sua malha intelectiva.

Jorge Amado diz assim: “Por onde andaria Rosa Palmeirão? Nascera naquele cais, fora pelo mundo, que não gostava de estar num lugar só. Ninguém sabe por onde ela anda. Onde ela estiver tem barulho. Porque ela traz navalha na saia, punhal no peito e porque tem um corpo bem-feito (...)” (Mar morto, 1990).

Este fragmento contribui para o estudo da interseção entre vestígios de paixão dominante, comportamento-função, vice-conceito, expressividade, ou seja, a atitude de se deslocar pelo mundo, viajar, transitar, surge como uma suspeita de paixão dominante, enquanto o vice-conceito se mostra nos termos cuja literalidade diz uma coisa e o significado ou intenção do autor diz outra como o caso de: “ela traz navalha na saia, punhal no peito”. Ao identificar a estrutura de pensamento, cabe ao filósofo clínico encontrar os procedimentos clínicos com os quais poderá melhorar a relação entra os tópicos determinantes, qualificando o discurso existencial partilhante.

Neste trecho, pode-se vislumbrar, ainda, rastros de uma argumentação derivada (submodo), a qual não deixa claro se é o caso de buscar as origens do comportamento de Rosa Palmeirão ou se as coisas estão indo bem como se encontram. Quando isso ocorrer, o filósofo clínico deve buscar subsídios, nos exames categoriais do partilhante, com dados divisórios, atalhos, enraizamentos. Noutro apontamento do autor: “(...) o vento levava as palavras” (Mar morto, 1990).

Em uma análise dessa natureza, um dado isolado vale quase nada, no entanto, quando associado ao contexto de onde surgiu, pode constituir um indício de conjugação tópica estrutural determinante à pessoa. O significado e o alcance de um procedimento clínico como o vice-conceito, por exemplo, deve ser trabalhado em conformidade com os critérios para identificação dos tópicos e submodos, os quais, além de determinantes, devem fazer sentido ao partilhante.

Um vice-conceito pode significar não querer dizer ou ocultar, pode tratar-se de um jeito próprio de expressividade. Trata-se de um procedimento muito comum nas pessoas internadas (voluntariamente ou não) em hospitais psiquiátricos embasbacados, na tentativa de corrigir discursos, medicalizar, normalizar condutas, desmerecendo o vocabulário subjetivo da pessoa exilada. Quando poderiam – se tivesse método e autonomia – buscar outras formas de acolhimento, tendo como referência as narrativas da originalidade diante de si.

No entanto, para isso se realizar, seria necessário uma abordagem e circunstâncias propícias, de respeito, atenção e cuidado diferenciados, os quais a maioria das instituições desconhece, talvez pela excessiva reverência ao deus psicofármaco, ou pela base curricular das faculdades de medicina e psicologia. Nesse sentido, seus programas oferecem classificação, tipologia, protocolos, rigidez conceitual e conversão à uma normalidade de rebanho, distantes do fenômeno singular em processo.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS, 2021.

**Instagram: @hélio_strassburger  

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