Quem fala naquilo que se diz?
Os relatos sobre um encontro
consigo mesmo, em meio a uma floresta de distorções, freios existenciais, podem
estar refugiados no lugar algum de nenhum lugar, ou seja, nas páginas amarrotadas
e desprezadas dos seus devaneios, projetos, onde as memórias ficaram
cristalizadas pela desconsideração dos princípios de verdade.
Veja-se um caso em recíproca de
inversão: “Num dia a dia de múltiplos envolvimentos, aquilo que só você poderia
ser e fazer, foi se apagando, esquecido de si na distorção de papéis
existenciais.
Ainda quando buscava ajuda nesse
meio, encontrava conselhos e direcionamentos para se adaptar a lugares de onde
procurava partir. Ao insistir nessa desarmonia no mundo do trabalho, na
família, com os amigos, a desestruturação atingia seu grau máximo, necessitando
de especialistas em desvios comportamentais e seus tratamentos de choque de
realidade.
Seu cotidiano assim descrito, se
traduzia numa rotina sem sentido, para sustentar algo distante do seu melhor,
isso você sabia, o que não sabia era a existência de uma abordagem que poderia
auxiliar, em seu processo de reencontro consigo mesmo. Uma metodologia sem
aconselhamentos, interpretações diagnósticas, prognósticas e o diabo a quatro
sobre quem você deve ser, como deve se portar, o que deve comprar, quais
remédios tomar, em quem acreditar.
Num final de semana, ao encontrar
- num lugar estranho - uma palestra sobre Filosofia Clínica e Literatura, você pôde
experienciar algo novo, um acolhimento naquelas palavras estranhas, que
pareciam fazer sentido, dialogando com partes esquecidas de sua própria
estrutura de pensamento.
Aquelas expressões ativavam memórias
distantes, do que um dia imaginava ser, fazer, acontecer, ora refugiadas em
algum ponto das suas desconsiderações. Pareciam coisas que haviam ficado pelo
caminho...”
A clínica do filósofo, por ter
essa essência libertária - que muitos tentam aprisionar nos moldes de uma só
versão - se aproxima desses instantes de crise para um decifrar compartilhado
sobre os rituais de inquietude em vias de se tornar. Um aspecto é sua tez de
acolhimento fenomenológico, hermenêutica compreensiva, analítica da linguagem -
fundamentos filosóficos - ingredientes onde o espanto com algo inédito (a
representação de mundo da pessoa), ao se descrever em linguagem própria, não é rechaçado
como uma patologia, síndrome, desvio comportamental, mas um evento a
reivindicar uma aproximação com sua lógica singular.
Cláudia Lage diz assim:
“Máscaras, simulacros, onde forjamos uma realidade que nos diz mais do que a
nossa. Disfarçados de outros, alcançamos a nós mesmos.” (Labirinto da palavra,
2013. Pág. 9).
Procedimentos como o vice
conceito, a esteticidade seletiva, um roteirizar, podem ajudar esses ensaios de
vida nova, por onde alguém se exercita, com a ajuda de subterfúgios contraditórios
com seu cotidiano, em ensaios para reencontrar-se com suas possibilidades
existenciais.
Talvez assim, no tempo que ainda
resta, com a força dos desajustados, se possa reencontrar os sonhos nas noites
sem lua, nas páginas da literatura incompreendida, na vertigem de uma vida que
não se vê, mas suspeita existir. Quem sabe até melhorar as coisas ao redor,
amar como se não houvesse amanhãs. As poéticas da singularidade, quando
encontram sua melhor versão, apreciam saborear uma porção improvável de paraíso.
Cláudia Lage lembra Cortázar:
“(...) nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas sim em estar de acordo
com a sua visão literária.” (Labirinto da palavra, 2013. Pág. 64).
Ao ser levado pelas propostas de
ser bem-sucedido, na ótica dos princípios de verdade, uma pessoa pode
desviar-se de sua condição de maior intimidade, passando a desempenhar
atividades que possam lhe alcançar alguma recompensa na comunidade dos
desavisados. Sendo reféns das mesmas verdades, seguem multiplicando velhos
ensinamentos sem pensar.
Para ser inteiro consigo mesmo,
em meio a tanta distorção de sua expressividade, pode ser preciso navegar por
águas desconhecidas, localizar e aprender a ler a geografia subjetiva de sua
singularidade. Vivenciar as rotas de autodescoberta para um endereço
existencial incomparável, onde ser sujeito de sua história não seja um crime ou
pecado, punido com o fogo das classificações ideológicas.
Aquele abraço,
hs