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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Prefácio

Esta obra é uma descontinuidade das ‘poéticas da singularidade’. Busca tecer críticas, provocar reflexões e insinua caminhos para a desconstrução das práticas ideologizadas a partir das tipologias do desatino. Compartilhar vivências de atendimentos, impressões e pesquisas sobre a raridade existencial da pessoa em refúgios de internação, sejam eles dentro ou fora dos muros do manicômio. Lugar onde a palavra usual encontra dificuldades para chegar a manter interseção com a epistemologia da loucura.

A singularidade desfigurada pelas intervenções da tradição mostra, antes de mais nada, a aptidão de exclusão das analíticas da correção discursiva. Ao se levar em consideração a distorção, o erro e as contradições do sujeito, reivindica-se o estudo do entorno da pessoa em crise: o contexto, família e o psiquiatra, que são coadjuvantes com poder (jurídico) para transformá-lo em paciente, ao prescrever suas drogas de lógica normal.  

No saber desajustado dos delírios, algo mais de anuncia entrevistas de tradução. Sua fonte de inspiração ao permanecer incógnita, também se anuncia nas tramas de excesso.

O éthos da loucura encena múltiplos personagens, entremeios de rasuras da normalidade. Diante das pretensões da razão classificatória um viés excepcional assume papéis intermináveis. A internação contrariada, a distorção das originalidades, o saber farmacológico e o alienista fundamentam a exclusão representada pela instituição sanatório.

Ao expor, com sua grande sensibilidade, os absurdos da sociedade que produz sua loucura, o louco a supera outra vez. Seu discurso de transbordamento possui encantos de língua marginal. Aprecia o não-ser como ponto de partida aos esconderijos, até então desmerecidos dentro de si.

A indústria da loucura encontra apoio significativo nas práticas de alienação, onde o consumo a qualquer preço impõe suas regras. As relações passam a ser mediadas pelas bugigangas ao redor. Aptidão de esquiva à introspecção e ao autoconhecimento. Sua característica principal é a insinuação, constantemente remarcada, de alguma forma de ganho, sucesso ou desempenho diferenciado.  

Como a maioria das pessoas pode passar uma vida inteira na periferia de si mesma e a conviver com um ilustre desconhecido, fica relativamente fácil cooptá-las para as verdades ocultas nas relações sociais de objeto para objeto.

No entanto, os rastros da palavra maldita atualizam silêncios, lacunas e transgressões de paradoxo. Devir descontinuado a ensaiar rotas ao ser extraordinário. A imprecisão dessas teias discursivas realiza um trânsito aprendiz pelos ditos exóticos da razão delirante.

Para permanecer como subjetividade indecifrável, o sujeito muitas vezes, desloca-se nalguma forma de silenciar. Um território novo e sem vocabulário conhecido esparrama vestígios de multidão. Antecipa uma epistemologia dos excessos. As coreografias desdobram-se no intermédio invisível da sanha diagnóstica.

Ao lugar inacessível para a sintaxe conhecida, uma incompletude discursiva refere indícios de profecia. Fonte de inspiração desmedida aos esconderijos distantes da normalidade.

A folia do fenômeno carnaval pode desfazer vertentes de uma só verdade. Ensaios de natureza mutante desdobram-se na imensidão dos exageros. O ser errático dos devaneios revela interstícios sem correspondência na realidade conhecida. Saber absurdo nas evasivas de introspecção. Aparente desconexão entre nada e tudo de qualquer coisa. Suas exceções convidam para enxergar através dos escombros da historicidade.

Episódios inesperados apreciam o esboço em caricaturas de aparência incrível. Um querer dizer nem sempre é capaz de transgredir os dialetos conhecidos. Ao visar exaltado da atitude delirante o mundo pode se mostrar alterado.

Uma vasta região segue indescritível, em uma zona de sombra e luz. A lógica das diferenças, ao tentar descrever as desconhecidas rotas, prenuncia disparates de invenção.

Assim, é impreciso resgatar o louco de seu exílio, pois não se trata de considerá-lo a partir do ponto de vista normal, mas de respeitar seu viés existencial em uma busca onde todos se encontram. O fato de não compreender sua língua, rituais ou desvario não justifica sua prisão e tratamentos de reconversão.

A natureza absurda desses abismos sugere outras fontes de razão, mesmo quando desmerecida pela medicina conhecida. A internação involuntária, a camisa-de-força do preconceito e as práticas com base no DSM-IV (manual psiquiátrico americano) encontram ecos de evasiva ao desconsiderar segredos encobertos na desrazão.   

Assim, o caótico instante, as alucinações ou a falta de jeito podem ter diagnóstico de alguma patologia. Sempre que isso ocorre, o discurso estrangeiro do alienista procura traduzir o mundo incompreensível do outro sujeito em linguagem própria. Ao classificar como insanidade seu deslumbramento com a vida, institui refúgios em caricaturas de coisa nenhuma.

Aos desatinos contidos na racionalidade, nem sempre basta seguir suas prescrições. Para ela, os extraordinários presentes da vida singular surgem como confusão, desajuste ou dúvida. Talvez a interseção positiva consiga ressignificar esses instantes de improvável recomeço.

A pessoa exilada em si mesma pode restar a expressão dos monólogos com suas paredes. Em meio ao denso labirinto ampliado pela farmácia do hospital, as vozes e visões atualizam a sobrenatural descontinuidade dos dias. Na aproximação com os outros de sua aldeia, o devir da loucura pode surgir como genialidade, desajuste ou simulacro.

A Filosofia Clínica, como paradigma de obra aberta, aprecia a conversação aprendiz, com a trama maldita nas subjetividades. Quem sabe a compreensão dos excepcionais discursos possa revelar outras verdades?

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – diálogos com a lógica dos excessos”. Editora E-Papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Um território subjetivo com linguagem própria*

 

Ao filósofo clínico compete visualizar a natureza da relação entre tópicos determinantes numa estrutura de pensamento, bem como se apropriar dos submodos que dizem respeito ao sujeito sob seus cuidados. Isso sem descuidar de outras possibilidades, como a elaboração e partilha de caminhos que contribuam aos projetos da terapia.

É importante lembrar que os mesmos tópicos significativos da estrutura de pensamento, de duas ou mais pessoas, ainda assim preservam sua especificidade (conteúdos), devido às circunstâncias em que foram se constituindo. Aqui se destaca a caminhada da singularidade, ao preencher determinados tópicos com seu discurso existencial, ou seja, um mesmo tópico, ainda quando importante numa e outra estrutura, preserva uma característica própria quanto a sua efetividade, realizando um movimento incomparável na interseção com os demais pressupostos da sua malha intelectiva.

Jorge Amado diz assim: “Por onde andaria Rosa Palmeirão? Nascera naquele cais, fora pelo mundo, que não gostava de estar num lugar só. Ninguém sabe por onde ela anda. Onde ela estiver tem barulho. Porque ela traz navalha na saia, punhal no peito e porque tem um corpo bem-feito (...)” (Mar morto, 1990).

Este fragmento contribui para o estudo da interseção entre vestígios de paixão dominante, comportamento-função, vice-conceito, expressividade, ou seja, a atitude de se deslocar pelo mundo, viajar, transitar, surge como uma suspeita de paixão dominante, enquanto o vice-conceito se mostra nos termos cuja literalidade diz uma coisa e o significado ou intenção do autor diz outra como o caso de: “ela traz navalha na saia, punhal no peito”. Ao identificar a estrutura de pensamento, cabe ao filósofo clínico encontrar os procedimentos clínicos com os quais poderá melhorar a relação entra os tópicos determinantes, qualificando o discurso existencial partilhante.

Neste trecho, pode-se vislumbrar, ainda, rastros de uma argumentação derivada (submodo), a qual não deixa claro se é o caso de buscar as origens do comportamento de Rosa Palmeirão ou se as coisas estão indo bem como se encontram. Quando isso ocorrer, o filósofo clínico deve buscar subsídios, nos exames categoriais do partilhante, com dados divisórios, atalhos, enraizamentos. Noutro apontamento do autor: “(...) o vento levava as palavras” (Mar morto, 1990).

Em uma análise dessa natureza, um dado isolado vale quase nada, no entanto, quando associado ao contexto de onde surgiu, pode constituir um indício de conjugação tópica estrutural determinante à pessoa. O significado e o alcance de um procedimento clínico como o vice-conceito, por exemplo, deve ser trabalhado em conformidade com os critérios para identificação dos tópicos e submodos, os quais, além de determinantes, devem fazer sentido ao partilhante.

Um vice-conceito pode significar não querer dizer ou ocultar, pode tratar-se de um jeito próprio de expressividade. Trata-se de um procedimento muito comum nas pessoas internadas (voluntariamente ou não) em hospitais psiquiátricos embasbacados, na tentativa de corrigir discursos, medicalizar, normalizar condutas, desmerecendo o vocabulário subjetivo da pessoa exilada. Quando poderiam – se tivesse método e autonomia – buscar outras formas de acolhimento, tendo como referência as narrativas da originalidade diante de si.

No entanto, para isso se realizar, seria necessário uma abordagem e circunstâncias propícias, de respeito, atenção e cuidado diferenciados, os quais a maioria das instituições desconhece, talvez pela excessiva reverência ao deus psicofármaco, ou pela base curricular das faculdades de medicina e psicologia. Nesse sentido, seus programas oferecem classificação, tipologia, protocolos, rigidez conceitual e conversão à uma normalidade de rebanho, distantes do fenômeno singular em processo.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS, 2021.

**Instagram: @hélio_strassburger  

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Refúgios na estrutura do tempo***

  

Quem instaura vigor, o criador que alcança o não-dito, que irrompe no não-pensado, que conquista o não acontecido e faz aparecer o não-visto, um tal instaurador de vigor está sempre em risco.”

                                                                                          Martim Heidegger 

Recomeço entremeios de subterfúgios na estrutura do tempo. Revelação sutil das (im)permanências. Situação qualquer na interseção com olhares da diversidade perspectiva. Um estrangeiro constitui-se em território próprio, descortinando-se absurdos de tudo u nada. Tratativas em decifrar os segredos nos percursos de brevíssimo existir. Um depois de amanhã articula-se na conversação com o pretérito imperfeito das (des)continuidades. Insinuação em aparência (doxa) pela antes e depois de qualquer coisa.

Enredos de múltiplas faces divertem-se em achados e perdidos contornos. Disposição pelo indizível em natureza de efêmeras memórias. Um começo sem fim em quase-tudo efetiva o ímpeto das raras fontes. Descobertas de saber impreciso num mundo sempre outro. Provisórios acordos com as químicas do sono podem deixar uma sensação de incompletude nas retrospectivas de aspecto indecifrável.

Umberto Eco sobre a multiplicidade hermenêutica: “Das estruturas que se movem àquelas em que nós nos movemos, as poéticas contemporâneas nos propõem uma gama de formas, que apelam à  mobilidade das perspectivas, à multíplice variedade das interpretações. Mas vimos também que nenhuma obra de arte é realmente “fechada”, pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de “leituras” possíveis.” (A Obra Aberta, 2005).

Uma espécie de feitiço do tempo institui suas leis em recordações de permanecer modificando-se. Agora sempre outro no ir e vir da história de cada um. Matéria-prima para um aproximar reflexivo (techne) com o incomum dessas travessias. Estranhos fenômenos apreciam o refúgio no todavia-contudo (aporia) das ocasiões. Aguardam um flagrante no cotidiano decifrar dos novos endereços, investigação corrente por entremeios de lugar incerto. Metafísica das contínuas manifestações elabora desígnios de reciprocidade com os mutantes contextos. Primitivas representações em novidade de não-ser um tempo qualquer.  

Especulação das possibilidades na intimidade de Chronos. Elaboração em linguagem própria a buscar refúgio no incomunicável devir. Nesses esconderijos articulam-se conjecturas em desdobramentos de entretanto. Singular preparação na híbrida relatividade dos contextos. Categoria presente na descontinuidade de cada instante revela-se nas miragens de (quase) perder de vista. Horizontes por onde aprecia (des)aparecer. Um viver contido re-inaugura-se na insanidade normalizada dos dias.

Michel Foucault no recordar Paracelso: “Não é vontade de Deus, que o que ele cria para o benefício do homem e o que lhe deu permaneça escondido (...). E ainda que ele tenha escondido certas coisas, nada deixou sem sinais exteriores e visíveis com marcas especiais – assim como um homem que enterrou um tesouro marca a sua localização a fim de que possa reencontrá-lo.” (História da loucura, 2000).

Uma reflexão contínua persegue o invisível andarilho por seus inúmeros disfarces. A ilusão de perceber-se sempre o mesmo pode antecipar uma concepção de expressividade sem medida. Múltiplas investigações procuram manter interseção com a natureza fugidia desse absurdo (logos) presente nos fenômenos. Vereda de extraordinários achados sugere estar sempre em outro lugar.

A saudade de um tempo que se foi (re)-significa sua permanência na memória do coração. Assim, ao vislumbrar as páginas do velho álbum, a recordação atualiza aquilo tudo que vivia muito bem sendo esquecido. No entanto, costumam ser as novas vivências a medicação mais poderosa. A interseção com inéditos amanhãs antecipa-se em promessas de ser real.

Nietzsche em busca de descrever esse estranho espécime – o filósofo: “O filósofo é uma das maneiras pela qual se manifesta a oficina da natureza – o filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza. (...) Eles e a arte ocupam o lugar do mito que está desaparecendo. Contudo, eles surgem muito adiantados, já que a atenção de seus contemporâneos só muito lentamente se volta para eles.” (O livro do filósofo, 2001)   

Talvez o diálogo com esses imediatos vestígios, possa (des)ocultar um agora em desdobramentos de pouco antes ou logo depois. Magia a esconder-revelar indícios de algo mais por entre lacunas de estranhas conexões. Irrealidade dos acordos no ugar nenhum de todo lugar. Imprevistos eventos em ponto de partida, ao deixar para trás os velhos mapas.

Interrogação mediada no intercurso dinâmico como viver. Entremeios de quase-nada, onde uma vida inteira pode acontecer! Um inesquecível presente sucede-se em memórias de amanhã. Quem sabe o abismo permita realizar a solidão compartilhada no superlativo voo, no qual chegadas e partidas venham a ser uma coisa só. O fim reencontrando seu (...).  

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da Singularidade”. Ed. E-papers/RJ. 2007.  

**Instagram: @helio_strassburger                                                                                 

sábado, 12 de agosto de 2023

Na invisibilidade de um triz***

"A vida segura o espelho para a arte, e reproduz ou algum tipo estranho imaginado por um pintor ou por um escultor, ou então concretiza no fato aquilo que havia sido sonhado na ficção”

                                                                        Oscar Wilde 

Existem refúgios por onde as raridades ensaiam incompletudes. Uma zona distante dos consensos e de onde nada se espera. Discurso das lacunas, falhas e sentidos obsoletos, seu sussurro descreve frestas e faz referência à palavra que escapa. Um quase ao sobressalto criativo desconsiderado. Atiçar especulativo no esboço por um triz de duração imediata.

Na expressividade ainda não cooptada pelos rituais conhecidos, suas deixas, sobras ou deslizes incitam a interrogação para outras verdades. Fonte de matéria-prima às incertezas recém-decaídas das convicções. Seu anúncio de nitidez inesperada se oferece na escassez de um porém. Sua irrealidade ainda sem fundamentação não desmerece paradoxos, ao contrário, os fortalece com sua existência sutil.

Um ser de aspecto difuso se oferece ao olhar de escuta não contaminado. Seus caminhos possuem a invisibilidade dos seres livres. A ciência conformada não possui meios para vislumbrar um mundo repleto de extraordinários. Segue a reproduzir justificativas contra suas dobras e contornos. Ao descrever erros e distorções, agracia com títulos e honrarias as melhores cópias. Mesmo assim, as certezas de espelho se agitam, como se fora outro eu mesmo do lado de lá.

Na virada de página os trechos incompreensíveis possuem a chave da interseção com o ângulo desconhecido. Ao olhar assim constituído, as coisas parecem surgir com ênfase conhecível. Sua desenvoltura se anuncia na peregrina busca a se alternar nas ventanias.

Em Merleau-Ponty: “Jamais veríamos uma paisagem nova se não tivéssemos, com nossos olhos, o meio de surpreender, de interrogar e de dar forma a configurações de espaço e de cor jamais vistas até então.” (A Prosa do Mundo, 2002).  

Seus apontamentos deixam vidências numa moldura que aguarda. Sua lucidez de pensar delirante ampara exílios na palavra sem sentido. Os tropeços da estrada servem para deixar rastros, muitas vezes sobreposição aos pergaminhos bem redigidos.

A perplexidade dos novos conteúdos prolifera significados para além da estrutura de onde surgiu. Ao transformá-la nalguma forma de saber, destitui sua força subversiva e criadora. A partir de então será tipologia ou especialidade bem arrumada.

Em tempos de preparação e anúncio, a velha janela aponta novidades através das coisas sem sentido. Distorções ao consentimento de uma só realidade. Ao não ter um território único, percorre todos com uma ingenuidade de primeira vez. Sua referência ao ser descontínuo atualiza um caminho por seguir. Quando se trata de recarregar forças, se abriga nalgum ponto de seu vasto universo.

À primeira vista há os limites da interseção conhecida. A rasura ou distorção apreciam insinuar outros acessos ao não lugar. Sinal de alerta aos ângulos de um real improvável. Dialética dos assédios com a existência de onde nada se espera.

Oscila de um ponto a outro num espaço de tempo despreocupado em se mostrar. Nesse sentido recria estruturas significantes e significativas, realiza fissuras entre real e irreal e desconstrói a ilusão de ser a única verdade.

Sua relação com o lugar comum do bom-senso é um contrassenso. Contradição irreverente com a certeza de nada ser nada. Uma brecha para as invenções e descobertas expandirem os limites do que deu certo. Momentos de aproximação com a estrutura de um caos em busca de tradução.

Donaldo Schuler poetiza essa percepção: “O homem define-se nas suas muitas relações. Define-se ao se definir. Onde procurar o homem se a cada instante quebra grilhões?” (Heráclito e seu (dis)curso, 2004).  

Seus recantos desmerecidos gostam de se anunciar em vocabulários desconhecidos. Os manuscritos julgados como língua morta apreciam transgredir a lógica normalizada.

No seu instável equilíbrio os fenômenos rascunham a apresentação que acolhe a razão de toda loucura. Capaz de vislumbrar essa zona desmerecida e condenada à ficção do real, seu visar não pode encarcerar-se nalguma definição. O outro daquilo que se vê se encontra no mesmo, e sua eficácia pode ser vista atuando na antítese do que se sabe.

Seus rastros instituem uma instabilidade interpretativa eficaz, ao oferecer uma multiplicidade de sobressaltos ao entendimento tido como verdade única. Sua singularidade se ampara nas entrelinhas dos acordos. Essa espécie incomum em seu jeito híbrido de tornar-se se faz notar pela ausência.

Uma estranha invisibilidade se alterna nos episódios em que sua realidade fugaz persegue a denúncia aos novos territórios. Assim o acaso, as incertezas e a dúvida podem significar a incursão para algo que se encontra onde não se procura. A sensação de estar sobrando anuncia rumores de contrarregra e aponta exceções.

Ernst Cassirer desvenda ao problematizar: “A linguagem encerra um sentido oculto a ela própria, que ela somente pode decifrar por conjecturas, através da imagem e da metáfora.” (A Filosofia das Formas Simbólicas – a linguagem, 2001).

Mesmo a singularidade por de se tornar refém dos princípios de verdade. Assim destituída de forças para desbravar, pode assumir as mordaças provisoriamente. A palavra sussurrada pela errância dos poetas transcreve os devaneios da vontade aprisionada.

À vertigem cúmplice das transgressões, raramente é permitido esboçar projetos sem alguma forma de solidão. Sua aptidão de prefácio mal compreendido costuma engendrar inseguranças e medos. Assim, essas habilidades encontram na pluralidade da arte um acolhimento em que as raridades consigam integrar os ânimos conhecidos com as novas ideias.

As dobras e contornos de um tópico de singularidade podem conter essa realidade multifacetada a se perder nas lonjuras de si mesma. Assim as reminiscências apontam algo mais que um porto seguro e já superado. O espanto aprecia desagregar certezas ao oferecer descobertas e invenções na face calma de um dia qualquer.

Quando você se move com o corpo ou se deixa levar pelo curso do pensamento, o mundo inteiro se desloca ao seu redor. Os lugares por onde o espírito transita e se alimenta possui estoques generosas de não saber. Suas revisitas evidenciam rastros, um pouco antes de ser narrativa.

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.

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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Clarividências*

                          

Existem eventos onde é possível se antever o que ainda não é. Em uma atividade a priori de caráter instintivo, nem sempre cabível nalguma racionalidade, atuam como uma premonição ou mediação sem palavras. Seu teor de caráter difuso ultrapassa o aqui-agora conhecido. Um futuro imperfeito se antecipa num viés instintivo singular.

Seu teor de anúncio esparrama-se com os termos agendados no intelecto. O rumor clarividente desorganiza hábitos enraizados, desestrutura a vida mecânica do dia a dia. Os vestígios dessa visão inesperada suspeitam de algo por vir. Perplexidade diante de uma integração entre passado, presente, futuro.

A maioria desses fenômenos se dá numa interseção distorcida com suas circunstâncias existenciais. Sua tez se aproxima de algo a preencher lacunas, até então imperceptíveis. Uma atenção sensitiva pode significar esses instantes como pressentimentos. Nesses casos, a epistemologia se parece com um microscópio ao contrário.

Nessa matriz subjetiva é possível encontrar rastros de porvir. Aquilo que ainda vai chegar pode se insinuar em sonhos, devaneios, novas ideias. Esses pretextos de consciência alterada escolhem a singularidade capaz de um acolhimento.

Ao mencionar essas nuances, a natureza compartilha um dialeto próprio. Essa lógica fora de si pode emancipar aspectos desconsiderados. No entanto, quando for plenamente visível ao olhar das palavras bem resolvidas, já será outra coisa.

Assim, pode-se arriscar uma sensação preliminar sobre essa novidade. Um lugar de encontro entre saber e não-saber. Nessa conversação de essência ainda sem existência, parece avistar-se uma mescla de um aqui-agora com seu amanhã. Sua menção, um pouco antes de ter visibilidade, inaugura uma quase verdade, um resquício de algo mais.

O evento clarividência não cabe numa ótica habitual. Sua originalidade se abriga no silêncio das coisas esquecidas. Talvez sua maior ameaça seja a capacidade de rasurar fronteiras, desajustar certezas, apontar novos espetáculos existenciais.

*Hélio Strassburger in “A Palavra Fora de Si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.  

**Instagram: @helio_strassburger 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Uma fonte de inspiração*

Um filme pode conjugar diversão e inspiração em um só momento. É o caso da obra: “Já fui famoso”. Direção de Eddie Sternberg. Netflix. 2022. 

O roteiro trata da relação de Vince, um músico de grande sucesso há 20 anos atrás, hoje desempregado, com Stevie um jovem baterista de talento incomum. Esse encontro acontece numa praça, momento em que Vince ensaia em seu teclado, inesperadamente o menino se senta ao seu lado em silêncio, e o acompanha com suas baquetas, usando a lixeira e o banco como bateria. Um espanto inicial sede lugar a uma sintonia pela música. A obra sugere uma interseção peculiar, ao apresentar dois personagens (estigmatizados) à margem da sociedade, um por estar desempregado e outro classificado como autista.  

A sinopse do filme reforça o agendamento de Stevie como autista. Aqui, outra vez, uma visão pré-concebida distorce o fenômeno da originalidade. O olhar da crítica, com base nas tipologias, cristaliza um discurso existencial em desenvolvimento aos limites de uma interpretação.     

Pode-se perceber e sentir (a obra permite esse desdobramento) que o encontro desses dois personagens singulares, acontece pelo fato de que um é incompreendido por não fazer mais sucesso e buscar um lugar para ganhar alguns trocados, e o outro por se refugiar num mundo só seu, onde somente se ingressa através da música. Enquanto um procura se abrir para fora, em busca de um lugar para se apresentar (tocar na noite), o outro se desloca para um ponto dentro de si mesmo.

Em determinado momento, caminhando pelos bairros da cidade, Vince encontra uma clínica de grupo (musicoterapia), coordenada por um terapeuta de rara sensibilidade (personagem de Kurt Egyiawan). Ao se inserir nesse espaço de partilha, desenvolve um papel existencial que nem sabia existir: uma habilidade de acolhimento e compreensão.

O grupo de convivência trabalha com pessoas excluídas socialmente. Nesse lugar reencontra Stevie que o acompanhou com suas baquetas na praça. Amber, a mãe de Stevie, que participa das reuniões, explica a Vince que seu filho não gosta de multidões e imprevistos. Revela que as crises do menino são superadas pela música, uma forma de lidar com suas dificuldades.

Noutro segmento do filme Vince, sem nenhuma chance de mostrar seu talento, vai em busca de um emprego formal numa agência. A pessoa encarregada pergunta se ele tem uma formação musical. Em que escola/faculdade estudou, quais suas referências. Como não frequentou nenhuma escola, ficou sem a vaga.

Mais adiante o roteiro revela que Vince - há mais de 20 anos - teve problemas familiares. A relação com Stevie se mostra como uma chance para reconciliar-se consigo mesmo, quase ao mesmo tempo em que contribui com a expressividade de seu parceiro baterista.  

Ao visitar a casa de Stevie, o músico encontra um quadro de Bach na parede, quando lhe pergunta: você gostaria de ser Bach? O menino responde: por que eu iria querer ser Bach? Eu quero ser eu.  Eu gostaria de ir à uma escola de música. O acolhimento de Vince e a qualidade da interseção oferecem algo mais.   

Na sequência, com um afastamento involuntário entre os dois, Stevie supera suas dificuldades pessoais, confecciona cartazes e sai em busca de um lugar para se apresentar com Vince. No mesmo período, o coordenador da musicoterapia convida o músico para substituí-lo na liderança do grupo. Noutro segmento um empresário diz a Vince, tentando recontratá-lo: você será bem-vindo, mas seu amigo baterista não, pois é uma pessoa esquisita e oferece risco aos nossos projetos. Depois disso, ocorrem algumas autogenias nos personagens.  

Em determinado momento, pela via da interseção, os personagens conseguem romper com suas armadilhas conceituais e reencontrar um lugar melhor para viver. O filme, além da diversão numa obra de rara beleza, também oferece uma atividade aprendiz sobre a sintonia entre as pessoas, as possibilidades do papel existencial cuidador, os desdobramentos das construções compartilhadas. Lembrando que a realidade, antes de ser realidade, rascunha seus originais nos territórios da irrealidade.        

O mundo dos excluídos constitui um desafio e uma referência ao exercício do novo paradigma. Talvez por seu caráter de invisibilidade, consiga transitar por caminhos à margem do saber instituído. Nesse sentido, a esteticidade seletiva contribui, encontrando na literatura, cinema, música, teatro, belas artes, uma fonte de inspiração ao ser terapeuta. 

A filosofia em sua versão clínica, acolhe o discurso existencial partilhante para encontrar a matéria-prima a sua atividade cuidadora. Os remédios existenciais, inicialmente, se esboçam nesse convívio com os dados da originalidade. Depois disso, o sujeito partilhante pode acessar sua própria farmácia subjetiva para viver melhor.  

*Hélio Strassburger in Revista da Casa da Filosofia Clínica. Edição Verão/2022.

**Instagram: @helio_strassburger 

terça-feira, 25 de julho de 2023

Papel existencial cuidador*

Um aspecto significativo do papel existencial cuidador, ao acolher o partilhante, diz respeito ao padrão autogênico em que esse se encontra, ou seja, qual a língua por onde se expressa, sua semiose preferencial, seus deslocamentos internos, sua circunstância pessoal.

A observação cuidadosa dessa referência inicial costuma conceder, ao filósofo clínico, uma via de acesso aos ingredientes subjetivos, para que ele possa elaborar os exames categoriais e constituir a base da terapia. Nessa prática aprendiz destacam-se os termos agendados no intelecto, a estruturação de raciocínio, o discurso completo ou incompleto, a semiose, a interseção; assim é possível acessar indícios preliminares da malha intelectiva do partilhante, em busca de qualificar a compreensão das suas narrativas.

Fernando Pessoa diz assim: “(...) ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam a língua em que fala. (...) os gênios inovadores foram sempre, quando não tratados como doidos (Verlaine, Mallarmé), tratados como parvos (Wordsworth, Keats, Rossetti) ou como, além de parvos, inimigos da pátria, da religião e da moralidade como aconteceu com Antero de Quental.” (Alguma Prosa, 1990).  

Estabelecer contato com outra pessoa em clínica reivindica um pressuposto fundamental: a competência do filósofo em realizar uma recíproca de inversão de qualidade, ou seja, visitar o mundo do partilhante com um misto de redução fenomenológica, de analítica da linguagem, de hermenêutica compreensiva, de epistemologia, do papel existencial, comprometido com a aprendizagem dessa singularidade se apresentando numa versão singular.

Veja-se o caso dos hospitais psiquiátricos, onde a regra é a internação e medicação de pessoas, por não conseguirem se fazer entender ao olhar desprovido de método para acolher suas crises de ressignificação. Assim se apresenta uma lacuna na formação psiquiátrica, em que os alunos são ensinados a reverenciar o deus farmácia, apresentado com pompa e circunstância como o recurso dos recursos.

Nesses casos existe uma incapacidade familiar, de amigos e médicos de compreender os deslocamentos que a pessoa vivencia, muitas vezes modificando a forma e o conteúdo de sua expressividade, com desdobramentos incompreendidos em seu cotidiano. Questão de método!

Fernando Pessoa contribui: “Como pode uma época compreender ou apreciar aquilo que, por definição, a supera?” (Alguma Prosa, 1990).

Sob muitos aspectos essas lógicas propõem tratar e normalizar o desconhecido, reafirmando a manutenção de suas referências. Nesse sentido, tudo aquilo que se apresenta numa língua diferente costuma ser desmerecido ou catalogado em alguma patologia. Aqui se oferece, como contraveneno, uma hermenêutica filosófica, por onde o filósofo clínico apresenta critérios para compreender o outro, a partir de seu jardim existencial.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.  

**Instagram: @helio_strassburger

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Mozarts e Saliéris*

 

Existe um tema quase invisível, talvez por seu teor ideológico: o convívio professor-aluno (destaque), sobre o qual ofereço algumas reflexões.  

Numa relação conturbada, muitos mestres, no convívio com seus alunos de maior competência, buscam desmerecê-los. Em uma sucessão de atitudes contraditórias: algumas vezes hostis, outras elogiosas, propõe alijar o aluno de algo que lhe pertence.

O crime deste? Ter habilidades e talentos singulares na disciplina do professor, muitas vezes até ultrapassando os limites dos seus ensinamentos.

A história nos ajuda a recordar o teor clássico do tema. Na premiada peça de teatro Amadeus de Peter Shaffer (1979), inspiradora do filme Amadeus de Milos Forman (1984), ganhador de vários prêmios, vê-se retratado um período da vida e a convivência de Antonio Saliéri e Wolfgang Amadeus Mozart.

No filme, aparece um Saliéri, compositor italiano integrante da corte de José II da Áustria, retratado como um mestre competente. Professor de gênios como: Beethoven, Hummel, Liszt, Schubert. No entanto, existe ao menos uma coincidência nas versões do teatro e cinema: ambos revelam um professor Saliéri ressentido pela obra de Mozart. Um homem ao mesmo tempo invejoso e apreciador de sua genialidade.

O roteiro faz referência ao Saliéri copista de Mozart, algo que conseguia com escasso sucesso. Mozart parecia despreocupar-se com a triste, sorrateira e decadente figura de seu mestre, o qual vivia à sua sombra, como um arremedo das obras daquele. Há notícias de que Saliéri teria envenenado Mozart.

Nos dias de hoje, o fenômeno se repete em muitas escolas, faculdades, institutos, onde professores, ao constatar o aparecimento de algum virtuose em sua área, tratam sutilmente de sufocá-lo, desviar seus interesses à guisa de orientação, sujeitá-lo aos objetivos da instituição a qual representa ou usar o trabalho do ex-aluno sem qualquer menção às fontes.

Até quando faz algum elogio, o professor deixar entrever, a quem tiver olhos para enxergar, sua mágoa a transbordar nas entrelinhas, o sorriso torcido, as palavras escolhidas para colocar o desafeto no padrão dos seus horizontes. Nesse sentido, a adição de pequenas maldades em meio a uma conversa ou a humilhação em reuniões particularíssimas, longe dos holofotes e sem testemunhas, tende a funcionar.  

Esse antagonismo costuma ter origem num cotidiano de interseção mista, onde amor-ódio-inveja se mesclam. O mestre, ao nutrir sentimentos de menos valia em relação ao extraordinário pupilo, passa a escamotear mágoas e ressentimentos com falsos elogios, os quais deixam entrever ao olhar apurado, seus dissabores.

Na contramão dessas evidências, existe o educador inspirado em seu papel existencial. Numa atitude de ensinar compartilhado, socializa ensaios, descobertas, realiza-se numa arte pedagógica em busca de superação e êxito de seus alunos.  

*Hélio Strassburger in “A Palavra Fora de Si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.

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