Os textos a seguir constituem uma
noção e um convite à Filosofia Clínica. São constituídos de anotações e
reflexões de um consultório em seus dias de atenção à vida. Notas para
atualizar o discurso do novo método. Uma aproximação com a incompletude dos processos
existenciais em cada pessoa, num vislumbre de seu desenvolvimento na atividade
clínica.
Existem fundamentos que se
integram à terapia do filósofo, como a fenomenologia dos discursos
existenciais, pelos quais o partilhante descreve-se em versão própria, num
convívio com as rotinas do inesperado; a hermenêutica compreensiva; o exercício
da reciprocidade com os jogos de linguagem internados em cada um, permitindo acessar
a singularidade em seus dias de processo; bem como o estruturalismo, a
considerar e incluir a relação das partes com elas mesmas e o todo que a
constitui. Uma dica para acessar a chave de leitura da estrutura de pensamento
é identificar pro onde a pessoa se diz, qual sua semiose preferida.
A reconstituição de determinados
eventos passados, com base numa leitura atual, concede ao sujeito partilhante a
possibilidade de reescrever sua história. Cuida-se, entre outros aspectos, da
reconstrução de alguns momentos significativos, em que o ser filósofo clínico
se multiplica no acolhimento e na superação das contradições, tecendo seus dias
numa interseção aprendiz. Sua prática oferece uma clínica da não obviedade. Ao
acolher as vírgulas e reticências da singularidade, leva em conta as narrativas
de cada versão. Se tivesse de escolher uma proposta de trabalho, numa terapia
libertária, esta seria a busca do partilhante em recomeçar, para devolver o
protagonismo a um sujeito, até então, distante de seu melhor. As tramas
discursivas de consultório, no ir e vir das interseções, possuem a condição
para realizar inúmeros deslocamentos, oferecendo ao partilhante outras
vivências – uma estética para resgatar ângulos esquecidos, desconhecidos de si
mesmo.
Seu eixo metodológico reconhece e
acolhe as tratativas de emancipação das poéticas da singularidade, refugiadas
em cada discurso existencial. Antes de localizar alguém existencialmente, pode
ser preciso lidar com a inquietude dos momentos preliminares. São ensaios para
algo indecifrável por inteiro, em que o filósofo clínico convive com uma
estrutura de fenômenos multifacetados.
Ao filósofo compete aperfeiçoar
sua aptidão de sentir e perceber os rastros do instante precursor, nos quais se
apresentam as originalidades sob seus cuidados. Esse esboço compartilha
análises, reflexões, críticas e algo mais sobre sua atividade. Talvez um diário
de incompletudes, em que suas narrativas apresentam íntima relação com as
práticas de consultório.
Com essa abordagem, a polifonia
das crises anuncia sua transição entre um e outro padrão autogênico. Constitui
o fenômeno da desrazão em um território privilegiado ao fazer terapêutico do
filósofo. Esse estado de coisas costuma se apresentar numa dialética singular,
em que o partilhante se desloca e experimenta-se em muitas direções conhecidas
e/ou desconhecidas, num processo de reedição pessoal, conduzindo e atualizando
sua memória aos dias atuais, formando uma espécie de renascimento a cada novo
dia.
A abertura proporcionada pela via
da interseção realiza um encontro de qualidade imprevisível, em que o
vocabulário existencial pode ampliar-se. Ao decifrar a matéria-prima com a qual
irá trabalhar, o filósofo, pela via da construção compartilhada, terá a
possibilidade de localizar o território em que realidade e ficção se integram.
Seu constructo metodológico,
tendo como ponto de partida a redução fenomenológica, vislumbra uma região de
aspecto estranho. Quando um filósofo descreve essa observação investigativa, está
propondo compreender e dialogar com o contexto partilhante. Nesse sentido, a
nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as
pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem
própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da
tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao
oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de
seu ser sujeito em ação.
Este texto não é autobiográfico,
embora seja reconhecível o traço da autoria em suas crenças, buscas e
representações no curso de seu discurso. Reivindica, isso sim, oferecer uma
atualização de leituras, contribuição aos estudos e o desenvolvimento do novo
modelo terapêutico. Essa versão é a de quem teve o privilégio de conhecer e
conviver com seu nascimento, por meio dos primeiros atendimentos, das críticas,
de preconceitos, da conjugação dos sonhos e da sua proposta para oferecer algo
diferenciado: a superação do entendimento cristalizado pelas instituições
oficiais.
Talvez a dificuldade de alguns
especialistas acadêmicos de entender a abordagem da Filosofia Clínica resida no
grau do seu óculos epistemológico, o qual costuma embaçar diante de novidades
muito próximas do olhar. Ao visitar a perspectiva de alguns mestres
universitários, é possível compreender suas dificuldades com os novos
paradigmas, e isso pode ser compreendido por um exemplo: o novo método acolhe,
em sua matriz teórica e prática, filosofias tão díspares e – aparentemente –
contraditórias, como a Fenomenologia e a Analítica da Linguagem. Logo, é
impossível entender esse fundamento tendo a visão ajustada para reconhecer
sempre as mesmas verdades.
Um caminho para acessar os
universos singulares, é desenvolver a atitude de espanto diante dos fenômenos
que se apresentam, observando e investigando, para saber mais. É, também, compreendê-la
como uma abordagem clínica em deslocamento, que se move por várias etapas do
constructo metodológico, associando fundamentos que, teoricamente, seriam
irreconciliáveis, se entendidos como gavetas. Na prática da Filosofia Clínica,
se conjugam horizontes na dialética das sessões.
Fico pensando nas dificuldades
que eu teria se tivesse optado por alguma outra formação clínica, talvez
impregnada de classificações, tipologias, agendando patologias, a partir de uma
leitura predeterminada que desqualifica conteúdos inéditos, presentes nas
narrativas das pessoas, pelo foco de certo saber que, antecipadamente, já tem
seu eixo interpretativo definido, distorcendo o fenômeno humano singular.
Em Filosofia Clínica se
(re)conhece e há a prática de algo diferente, ou seja, a matéria-prima com a
qual se trabalha é encontrada no contexto partilhante, a partir das visitas
autorizadas aos seus jardins subjetivos. Um lugar inicialmente desconhecido, no
qual o filósofo precisa ajustar seu padrão autogênico e ultrapassar os limites
da primeira impressão, aguçando sua escuta, visão e percepção de base
fenomenológica para acessar os jogos de linguagem de cad partilhante,
qualificando a interseção em busca de sua originalidade e reverenciando a prosa
poética desses pretextos desmerecidos. Assim é possível constatar e compreender
o ser inacessível como uma das qualidades da subjetividade, classificada pelas
terapias da tradição nalguma forma tipológica, desvirtuando a atividade
clínica.
Nesse vislumbre da clínica do
filósofo, há a descrição de um papel existencial singular, o qual se ajusta -
caso a caso – nos eventos de consultório. Um lugar de acolhimento às pronúncias
daquilo, até então, desmerecido, que revela um protagonismo de si mesmo com os
outros e, dos outros, com outros. Através da interseção cuidadora se esboça
certa elaboração, pela qual se faz possível a ressignificação pessoal. E é
importante o preparo para uma convivência com o inesperado dos atendimentos,
semelhante a encontros em qualquer lugar, em um dia qualquer.
A proposta terapêutica esboçada
nestas páginas se traduz em um lugar de acolhimento à errância, à
desestruturação pessoal, como possibilidade de reescrever caminhos e integrar o
sujeito com o seu melhor. Significa qualificar a intervenção cuidadora, em um
chão oferecido pelo próprio partilhante. Me agrada saber que tenho meios, via
construção compartilhada, para contribuir com a caminhada existencial das
pessoas, seja pelos recursos identificados em sua estrutura de pensamento ou
elaborados para seu melhor funcionamento pessoal. Posso encontrar nas palavras
pronunciadas, caladas, uma fonte de múltiplas expressões, pela qual se
estabelece a cumplicidade aos rascunhos do partilhante. Um desses subterfúgios
em que a vida ensaia seus inéditos.
A clínica pode ser reconhecida
como um espaço para compreender uma incompletude discursiva, ou uma crise,
características importantes aos recomeços. As pessoas aprisionadas em
manicômios ou em outra forma qualquer de interdição, possuem uma estranha
habilidade para rasurar o quadro da normalidade, muitas vezes pelo simples fato
de existir. Uma nova referência e um novo contexto podem ajudar as pessoas
exiladas do convívio social, oferecendo uma zona de conforto existencial mais próxima
de si próprias, e que consiga que exercitem sua condição singular irrepetível.
Nesse sentido, o livro
reapresenta alguns fundamentos do novo paradigma, desde os primeiros anos até
hoje. Os atendimentos iniciais, as repercussões nos princípios de verdade, as
críticas e superações, os aprendizados, são essenciais para entender seu
nascimento e desenvolvimento. As páginas a seguir propõem qualificar práticas e
contribuir com a pesquisa e os processos de conhecimento. Nelas se pode, dentre
outras coisas, decifrar os fenômenos da atividade clínica, em que eu e o outro,
pela via da interseção, constituem algo mais.
É importante lembrar de que não
se aprende Filosofia Clínica com textos (de fonte duvidosa) na internet, os
quais estimulam equivocidades e desconhecimento, ou seja, um não saber. O
convívio entre professor-auno é indispensável ao processo de ensino-aprendizagem,
e as boas ferramentas da tecnologia podem ser uma base aos estudos.
A proposta, aqui, é diminuir o
número de ignorantes diplomados. Para além das aulas da especialização, após a
graduação em Filosofia, destaca-se a adição de leituras, filmes, grupos de
estudo, colóquios e cafés filosóficos clínicos, terapia pessoal e supervisão. E
esta concepção é realidade na Casa da Filosofia Clínica.
Com esses textos, são oferecidos
alguns manuscritos recuperados das múltiplas interseções entre calmaria e
tempestades. Uma descrição de nuances de acolhimento e cuidado com o ritmo das
estações de cada um, seus desdobramentos, as singularidades e a inédita
condição de redigir seus originais. Quiçá seja um convite para as pessoas
saberem mais sobre a clínica do filósofo.
Boas leituras e releituras!
*Hélio Strassburger in Introdução
a obra: “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”.
Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.
** Instagram: @helio_strassburger