Prolegômenos a uma linguagem da não-loucura
Algumas das vivências mais
incríveis - quase improváveis - que tive nesses 30 anos de atividade como
Filósofo Clínico, foram as clínicas com pessoas internadas em hospícios. Com
elas você pode ter uma infinidade de conhecimentos, vedados a burocracia de uma
sala de aula, aos melhores professores, longe das publicações acadêmicas.
Um de seus atributos é a lógica
do vice conceito (conceito substitutivo, semelhante a metáfora ou metonímia), de onde costuma partir a
fonte de inspiração do partilhante (internado) em vias de se encontrar, em meio
a tanta desilusão e propostas insidiosas - de parte do alienista e coadjuvantes
- para seu regresso a uma vida normal, distante de sua realidade em
processo.
José Paulo Paes em seus ensaios: “(...)
não seria despropositado ver também na metáfora uma forma de bricolage. À
diferença da nomeação propriamente dita, que cria novos nomes para novas coisas
(automóvel), a metaforização as designa por uma recombinação de itens lexicais
preexistentes (arranha-céu). (Armazém literário, 2008. Pág. 112).
Em Juiz de Fora/MG, por exemplo, numa
daquelas tardes de atendimento - eu e algumas alunas -, ao entrarmos na ala
feminina, testemunhamos uma cena da estatura de uma Madona de Bruges, ou
seja, encontramos duas mulheres nuas, sentadas no chão do corredor, onde uma delas,
com feições maiores, amamentava a outra, bem menor, em seus braços.
Foram instantes de uma estética
inédita, um pouco antes da enfermaria chegar e a cortina encerrar o espetáculo.
Sei que esses eventos podem ser estranhos ou incabíveis ao mundo normalizado, onde
muitos acreditam - talvez por escassez metodológica - ter de domar tais
atitudes com a lógica dos psicofármacos.
Existem tantas simbologias para a
manifestação do fenômeno humano, quantas possam ser as pessoas. O exemplo acima
trata de uma linguagem somática, silenciosa ao olho nu dos desavisados, no
entanto, a quem puder enxergar, trata-se de um discurso existencial
significativo.
José Paulo Paes indica: “Por
força do seu poder heurístico é que a metáfora deixa de ser mero ornato
para se converter em veículo fundamental da visão poética do mundo.” (Armazém
literário, 2008. Pág. 123).
As estéticas da invenção, do
descobrimento, da criação, presentes nas belas artes, literatura, música, teatro,
através do vice conceito, conseguem, com sua produção criativa, superar os
diagnósticos e prognósticos de base PSI. Ainda assim, as pessoas comumente
internadas em prisões, disfarçadas de hospital, sustentam as verdades do lucro
a qualquer preço. Um exemplo disso é o pressuposto de que, uma vez produtiva,
ainda que desajustada, uma pessoa não é considerada louca.
Em Porto Alegre/RS, outro
exemplo, numa das tardes de clínica avançada no hospício - eu e alguns alunos -
fomos convidados por um louco a visitar seu sótão em Paris.
Como já o conhecíamos, com base em
outros atendimentos e com interseção positiva, perguntamos como seria a viagem,
as acomodações na capital francesa, já que éramos muitos? Respondia que - num
lugar secreto no hospital - tinha escondido algumas vassouras voadoras e roupas
especiais para a viagem. Quanto as acomodações parisienses, elas eram espaçosas,
podiam receber todo mundo. Ele seria nosso guia por lá, iria nos apresentar
seus amigos e lugares que ninguém mais conhecia. De soslaio, mirava o grupo de
estudantes e o professor, que pareciam animados com a ideia!
Por outro lado, na mesma direção,
recordo do escrito de um professor catedrático de Filosofia, que passou a vida
toda em salas de aula na universidade federal, que dizia: “O Hélio consegue encontrar poesia na loucura”. Na época me pareceu um certo sarcasmo, no entanto, um
tempo depois, signifiquei como destaque ao meu trabalho.
Os roteiros intelectivos se
multiplicam em linguagem própria, no entanto, reivindicam uma disponibilidade de
espírito nem sempre presente no papel existencial cuidador ou na perspectiva do
partilhante, o qual detém, em sua expressividade singular, os meios para
admitir ou rechaçar quem quiser de sua presença.
Aquele abraço,
hs