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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

domingo, 1 de outubro de 2023

Introdução*

Os textos a seguir constituem uma noção e um convite à Filosofia Clínica. São constituídos de anotações e reflexões de um consultório em seus dias de atenção à vida. Notas para atualizar o discurso do novo método. Uma aproximação com a incompletude dos processos existenciais em cada pessoa, num vislumbre de seu desenvolvimento na atividade clínica.

Existem fundamentos que se integram à terapia do filósofo, como a fenomenologia dos discursos existenciais, pelos quais o partilhante descreve-se em versão própria, num convívio com as rotinas do inesperado; a hermenêutica compreensiva; o exercício da reciprocidade com os jogos de linguagem internados em cada um, permitindo acessar a singularidade em seus dias de processo; bem como o estruturalismo, a considerar e incluir a relação das partes com elas mesmas e o todo que a constitui. Uma dica para acessar a chave de leitura da estrutura de pensamento é identificar pro onde a pessoa se diz, qual sua semiose preferida.

A reconstituição de determinados eventos passados, com base numa leitura atual, concede ao sujeito partilhante a possibilidade de reescrever sua história. Cuida-se, entre outros aspectos, da reconstrução de alguns momentos significativos, em que o ser filósofo clínico se multiplica no acolhimento e na superação das contradições, tecendo seus dias numa interseção aprendiz. Sua prática oferece uma clínica da não obviedade. Ao acolher as vírgulas e reticências da singularidade, leva em conta as narrativas de cada versão. Se tivesse de escolher uma proposta de trabalho, numa terapia libertária, esta seria a busca do partilhante em recomeçar, para devolver o protagonismo a um sujeito, até então, distante de seu melhor. As tramas discursivas de consultório, no ir e vir das interseções, possuem a condição para realizar inúmeros deslocamentos, oferecendo ao partilhante outras vivências – uma estética para resgatar ângulos esquecidos, desconhecidos de si mesmo.

Seu eixo metodológico reconhece e acolhe as tratativas de emancipação das poéticas da singularidade, refugiadas em cada discurso existencial. Antes de localizar alguém existencialmente, pode ser preciso lidar com a inquietude dos momentos preliminares. São ensaios para algo indecifrável por inteiro, em que o filósofo clínico convive com uma estrutura de fenômenos multifacetados.

Ao filósofo compete aperfeiçoar sua aptidão de sentir e perceber os rastros do instante precursor, nos quais se apresentam as originalidades sob seus cuidados. Esse esboço compartilha análises, reflexões, críticas e algo mais sobre sua atividade. Talvez um diário de incompletudes, em que suas narrativas apresentam íntima relação com as práticas de consultório.

Com essa abordagem, a polifonia das crises anuncia sua transição entre um e outro padrão autogênico. Constitui o fenômeno da desrazão em um território privilegiado ao fazer terapêutico do filósofo. Esse estado de coisas costuma se apresentar numa dialética singular, em que o partilhante se desloca e experimenta-se em muitas direções conhecidas e/ou desconhecidas, num processo de reedição pessoal, conduzindo e atualizando sua memória aos dias atuais, formando uma espécie de renascimento a cada novo dia.

A abertura proporcionada pela via da interseção realiza um encontro de qualidade imprevisível, em que o vocabulário existencial pode ampliar-se. Ao decifrar a matéria-prima com a qual irá trabalhar, o filósofo, pela via da construção compartilhada, terá a possibilidade de localizar o território em que realidade e ficção se integram.

Seu constructo metodológico, tendo como ponto de partida a redução fenomenológica, vislumbra uma região de aspecto estranho. Quando um filósofo descreve essa observação investigativa, está propondo compreender e dialogar com o contexto partilhante. Nesse sentido, a nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de seu ser sujeito em ação.

Este texto não é autobiográfico, embora seja reconhecível o traço da autoria em suas crenças, buscas e representações no curso de seu discurso. Reivindica, isso sim, oferecer uma atualização de leituras, contribuição aos estudos e o desenvolvimento do novo modelo terapêutico. Essa versão é a de quem teve o privilégio de conhecer e conviver com seu nascimento, por meio dos primeiros atendimentos, das críticas, de preconceitos, da conjugação dos sonhos e da sua proposta para oferecer algo diferenciado: a superação do entendimento cristalizado pelas instituições oficiais.

Talvez a dificuldade de alguns especialistas acadêmicos de entender a abordagem da Filosofia Clínica resida no grau do seu óculos epistemológico, o qual costuma embaçar diante de novidades muito próximas do olhar. Ao visitar a perspectiva de alguns mestres universitários, é possível compreender suas dificuldades com os novos paradigmas, e isso pode ser compreendido por um exemplo: o novo método acolhe, em sua matriz teórica e prática, filosofias tão díspares e – aparentemente – contraditórias, como a Fenomenologia e a Analítica da Linguagem. Logo, é impossível entender esse fundamento tendo a visão ajustada para reconhecer sempre as mesmas verdades.

Um caminho para acessar os universos singulares, é desenvolver a atitude de espanto diante dos fenômenos que se apresentam, observando e investigando, para saber mais. É, também, compreendê-la como uma abordagem clínica em deslocamento, que se move por várias etapas do constructo metodológico, associando fundamentos que, teoricamente, seriam irreconciliáveis, se entendidos como gavetas. Na prática da Filosofia Clínica, se conjugam horizontes na dialética das sessões.

Fico pensando nas dificuldades que eu teria se tivesse optado por alguma outra formação clínica, talvez impregnada de classificações, tipologias, agendando patologias, a partir de uma leitura predeterminada que desqualifica conteúdos inéditos, presentes nas narrativas das pessoas, pelo foco de certo saber que, antecipadamente, já tem seu eixo interpretativo definido, distorcendo o fenômeno humano singular.

Em Filosofia Clínica se (re)conhece e há a prática de algo diferente, ou seja, a matéria-prima com a qual se trabalha é encontrada no contexto partilhante, a partir das visitas autorizadas aos seus jardins subjetivos. Um lugar inicialmente desconhecido, no qual o filósofo precisa ajustar seu padrão autogênico e ultrapassar os limites da primeira impressão, aguçando sua escuta, visão e percepção de base fenomenológica para acessar os jogos de linguagem de cad partilhante, qualificando a interseção em busca de sua originalidade e reverenciando a prosa poética desses pretextos desmerecidos. Assim é possível constatar e compreender o ser inacessível como uma das qualidades da subjetividade, classificada pelas terapias da tradição nalguma forma tipológica, desvirtuando a atividade clínica.  

Nesse vislumbre da clínica do filósofo, há a descrição de um papel existencial singular, o qual se ajusta - caso a caso – nos eventos de consultório. Um lugar de acolhimento às pronúncias daquilo, até então, desmerecido, que revela um protagonismo de si mesmo com os outros e, dos outros, com outros. Através da interseção cuidadora se esboça certa elaboração, pela qual se faz possível a ressignificação pessoal. E é importante o preparo para uma convivência com o inesperado dos atendimentos, semelhante a encontros em qualquer lugar, em um dia qualquer.

A proposta terapêutica esboçada nestas páginas se traduz em um lugar de acolhimento à errância, à desestruturação pessoal, como possibilidade de reescrever caminhos e integrar o sujeito com o seu melhor. Significa qualificar a intervenção cuidadora, em um chão oferecido pelo próprio partilhante. Me agrada saber que tenho meios, via construção compartilhada, para contribuir com a caminhada existencial das pessoas, seja pelos recursos identificados em sua estrutura de pensamento ou elaborados para seu melhor funcionamento pessoal. Posso encontrar nas palavras pronunciadas, caladas, uma fonte de múltiplas expressões, pela qual se estabelece a cumplicidade aos rascunhos do partilhante. Um desses subterfúgios em que a vida ensaia seus inéditos.

A clínica pode ser reconhecida como um espaço para compreender uma incompletude discursiva, ou uma crise, características importantes aos recomeços. As pessoas aprisionadas em manicômios ou em outra forma qualquer de interdição, possuem uma estranha habilidade para rasurar o quadro da normalidade, muitas vezes pelo simples fato de existir. Uma nova referência e um novo contexto podem ajudar as pessoas exiladas do convívio social, oferecendo uma zona de conforto existencial mais próxima de si próprias, e que consiga que exercitem sua condição singular irrepetível.

Nesse sentido, o livro reapresenta alguns fundamentos do novo paradigma, desde os primeiros anos até hoje. Os atendimentos iniciais, as repercussões nos princípios de verdade, as críticas e superações, os aprendizados, são essenciais para entender seu nascimento e desenvolvimento. As páginas a seguir propõem qualificar práticas e contribuir com a pesquisa e os processos de conhecimento. Nelas se pode, dentre outras coisas, decifrar os fenômenos da atividade clínica, em que eu e o outro, pela via da interseção, constituem algo mais.

É importante lembrar de que não se aprende Filosofia Clínica com textos (de fonte duvidosa) na internet, os quais estimulam equivocidades e desconhecimento, ou seja, um não saber. O convívio entre professor-auno é indispensável ao processo de ensino-aprendizagem, e as boas ferramentas da tecnologia podem ser uma base aos estudos.  

A proposta, aqui, é diminuir o número de ignorantes diplomados. Para além das aulas da especialização, após a graduação em Filosofia, destaca-se a adição de leituras, filmes, grupos de estudo, colóquios e cafés filosóficos clínicos, terapia pessoal e supervisão. E esta concepção é realidade na Casa da Filosofia Clínica.

Com esses textos, são oferecidos alguns manuscritos recuperados das múltiplas interseções entre calmaria e tempestades. Uma descrição de nuances de acolhimento e cuidado com o ritmo das estações de cada um, seus desdobramentos, as singularidades e a inédita condição de redigir seus originais. Quiçá seja um convite para as pessoas saberem mais sobre a clínica do filósofo.

Boas leituras e releituras!

*Hélio Strassburger in Introdução a obra: “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.   

** Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Para saber aquilo que se conhece*

  

“Se duvido, penso. Penso logo existo”

                   René Descartes 

Um dos aspectos mais importantes da epistemologia são as derivações, contornos e sua aptidão de inventar e manter interseção com o mundo ao seu redor. Com eficácia de multiplicar desenlaces e engendrar novas formas de racionalidade, destaca-se ao descrever e analisar os eventos que a integram.

Sua investigação analítica transita entre a matéria-prima da experiência compartilhável e a organização interna de cada pessoa. Para entendê-la melhor a introspecção e as vivências podem ajudar. Nesse tópico é possível entender o pensar sobre as coisas a partir dos desdobramentos da estrutura do próprio pensar. Uma reflexão a descobrir algo mais sobre si mesma.

Até os simulacros da realidade podem ser desvendados por essa via precursora do conhecimento. Sua expansão acontece na relação entre atitudes especulativas, dúvidas e as provisórias certezas.

No esboço sobre si, o viés racional desliza para contornos desconhecidos. Muitas vezes as restrições são oferecidas pela própria subjetividade em busca de saber mais. Essa atitude, quando determinante, elabora âncoras para se deslocar com alguma segurança pelo universo ao seu redor.

Seu enfoque, embora possua um caráter de maior abstração, revela um observador atento às tratativas de discriminar com objetividade os fenômenos do viver. Sua atenção evidencia perspectivas inusitadas ao próprio olhar.

No entanto, suas conjecturas podem restringir os esforços para descortinar o que lhe ofusca a visão. Kant na “Crítica da razão pura” compartilha essa faceta do humano: “não possuo nenhum conhecimento de mim como sou, mas apenas de como apareço a mim mesmo”. (Crítica da razão pura, 1983, pág. 95).

O pensamento possui arquiteturas por onde a singularidade se objetiva para se familiarizar consigo mesma, encontra subsídios na linguagem cotidiana e propõe capturar as múltiplas facetas, para reconhecer o mutante da janela em frente.

Nas hermenêuticas para identificar e registrar as tramas discursivas, sua natureza se refugia entre devaneios de segurança, comprovação, onde uma lógica de ver para crer costuma valer mais. Uma vida inteira pode ser vivida na predominância desse tópico estrutural. Sua disposição atenta, embora parcial, sobre o próprio funcionamento, lhe atribui uma perspicácia de ser provável.

Ainda quando inexplicável ao próprio olhar, refere dúvidas, elenca hipóteses e ensaia experimentações. Rituais em conformidade com a matriz determinante do entendimento e sensibilidade. Necessita realizar escolhas e explicar o mundo com a régua sagrada dos próprios juízos. Aproxima-se com reverência dos fatos inexplicáveis.

Para Schopenhauer essa questão assim aparece: “(...) o conhecimento, em geral, faz ele mesmo parte da objetivação da vontade considerada nos seus graus superiores, que, aliás, a sensibilidade, os nervos, o cérebro são, do mesmo modo que nas outras partes do ser orgânico, a expressão da vontade considerada nesse grau de objetividade. (...) a representação que daí resulta é igualmente destinada ao serviço da vontade como meio para chegar a um fim (...)”. (O mundo como vontade e representação, 2001. Pág. 185).

É vastíssimo e nem sempre possível averiguar corretamente o território da Filosofia. Mesmo com algumas igrejas a reivindicar para si a fé cega na razão discursiva, àquela parece se divertir aod escortinar sempre novos pontos de vista.

Assim a brisa agradável não seria uma complexidade difícil de entender, mas aproximaria ideia e sensação, para conceder sabor e cor às coisas ao redor. Nesse sentido, seu devir também aponta uma interminável combinação das incógnitas e esconderijos exilados em cada um. O ar distante da postura ensimesmada parece desconhecer as armadilhas da própria certeza. Acaba encontrando aquilo que já sabia existir.

Ernst Cassirer sustenta: “A tarefa do conhecimento consiste em refletir e reproduzir a essência das coisas”. (A filosofia das formas simbólicas, 2001. Pág. 188).

Sei viés de cegueira, muitas vezes, não consegue ver diante de si mesma. Aprecia destacar a contradição e os erros das outras verdades e, ao inspecionar o próprio aparato, pode não reconhecer as diferenças entre os imbróglios subjetivos e a vida lá fora. Sua análise costuma incorporar protocolos de repetição para discriminar e orientar seu mundo. As leituras e releituras devem ter coerência, sensatez e método.

Sua teia argumentativa se expõe para anunciar e corrigir desacordos. Essas influências costumam surgir em tópicos como: raciocínio, discurso, termos agendados e pré-juízos. Em Merleau-Ponty é possível outro olhar: “O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente, que esteja contido em meu contato com ele”. (O visível e o invisível, 1999. Pág. 41).

O esclarecimento contido nessa forma de pensar aprecia descrições minuciosas, fundamentação e coerência retórica. Ao observar p funcionamento e o resultado de seus registros, é possível interpretar melhor a própria estrutura.

A racionalidade embriagada pelo excesso de si mesma pode se desconcertar exatamente por ter razão. Uma espécie de cegueira tópica a se estruturar nos desatinos da própria visão, a qual descobre aquilo que já suspeitava existir.

A consciência das coisas pode elaborar múltiplos disfarces. Quase sempre constitui um vocabulário próprio, nem sempre possível de traduzir. Ao estar à deriva de si mesma sua coerência e sensatez podem explodir em mil pedaços, esparramando indícios para outros caminhos.

O discurso ideologizado aprecia destituir a singularidade do sujeito para aprisioná-lo na incabível universalidade. Ao tentar incluir tudo na ótica de regra e exceção, comprova o desconhecimento sobre seus limites estruturais.  

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Editora Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.

**Instagram: @helio_strassburger

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Literatura e singularidade***

Ao tecer algumas considerações sobre o fenômeno da leitura, se destaca a interseção entre autor, leitor. A natureza desse envolvimento se apresenta na especificidade de um encontro, inédito a cada página. Os desdobramentos desses achados, prosseguem no cotidiano leitor, o qual, regressando de suas visitas ao enredo da obra, sendo o mesmo já é outro.   

Escrever sobre uma fonte de originais e a diversidade de leituras, propõe uma reflexão sobre a vida de cada um, o que permanece e aquilo que se modifica, no contato com um livro. Que estranha sintonia faz o leitor escolher um texto?  Quando alguém o destaca numa biblioteca ou livraria, a partir de uma indicação, prefácio ou orelhas, delimita, sob muitos aspectos, o que poderá encontrar.   

Em Rubem Alves: “Tinha de ser uma palavra mágica, pois ela tinha de ter o poder de trazer à existência aquilo que não existia.” (Lições de Feitiçaria, 2003).   

Uma obra literária, pode oferecer conteúdo para elaborações de longo alcance. As cenas de um livro, costumam invadir o dia a dia de seus leitores. A literatura oferece uma via de acesso a existência incomum. Numa exploração compartilhada entre autor e leitor, é possível vislumbrar uma singularidade em vias de reescrita. 

As tramas da narrativa convidam a uma percepção de si para si mesmo. Acolhendo ou refutando ideias, um texto instiga a pluralidade de movimentos intelectivos. A experiência da leitura, oferece uma integração entre real e irreal, destacando aquilo que já existia como possibilidade.   

Ricardo Piglia recorda Borges: “Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê”. (O último leitor, 2017). 

A interseção da literatura com a singularidade, retira sua matéria-prima do encontro do leitor com o texto. A leitura, na vida de cada pessoa, se apresenta como opção as lógicas de contenção da expressividade. Em Filosofia Clínica, contraditória com a ditadura das tipologias, a camisa de força dos psicofármacos, a caneta alienista; o conceito de singularidade encontra um método para sua abordagem, tendo como referência a noção de que cada pessoa é um ser único, irrepetível. 

As narrativas de um texto oferecem ao leitor, rotas de acesso a sua farmácia interior. Nesse sentido, as práticas literárias podem significar uma terapia da libertação. Um desacordo com o olhar pré-determinado a enxergar delírio e loucura, onde se ensaiam projetos existenciais incompreendidos. 

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica e Literatura – Conversações”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2023. 

**No Prelo.


sábado, 9 de setembro de 2023

O Texto e a Vida*

Em uma obra de essência inacabada, a pluralidade discursiva, nem sempre coerente e recheada com algum tipo de fundamentação, exibe capítulos de uma subjetividade em vias de acontecer.

Nessa arquitetura de palavras, a versão dos rascunhos se inicia na multidão improvável dos sentidos sem tradução. Por esse não-lugar se alternam pronúncias da voz na palavra escrita. Um apurado senso de irrealidade parecer tomar conta da estrutura narrativa.

Ao (re)nascer de cada pessoa uma nova obra se inicia. As lógicas da incompletude ampliam as chances para descrever o infindável movimento da vida. Sua eficácia institui novos parágrafos existenciais e se oferece como possibilidade inadiável de reescritas.

A autoria, em sua singularidade, esboça um cotidiano de páginas inéditas. A letra parece querer anunciar, desvendar, transgredir cotidianos em roteiros de inconclusão. Uma estranha alquimia ressoa no desajuste das entrelinhas. Como uma literatura que se esboça aos sons do silêncio, das dúvidas sobre a expressividade dos eus possíveis.

O paraíso onde a linguagem se desenvolve é um imenso território que aguarda. Seu dicionário de páginas em branco é um chão para compor o que vier. Nessa arquitetura de alegorias se insinuam outras paragens, como a ilusão das noites a brincar os dias.

Uma poesia interminável se esparrama nas páginas vividas em porvir. A reflexão especulativa tenta imaginar os dialetos impronunciáveis. O sobressalto do texto refugiado no cotidiano se esboça numa estética quase ilegível. Seus manuscritos apontam vestígios de algo mais ao integrar sim e não. A literalidade, embora não diga tudo, realiza uma aproximação com a perspectiva das fontes. As derivações ampliam versões subentendidas para visualizar utopias.

A textura desses testemunhos se oferece ao nascer sem palavras. Em dialeto próprio refere seus exílios num presente difuso. O percurso assim mencionado aprecia descrever, em termos de intimidade, a paisagem desmedida pelos deslocamentos. A interseção entre o texto e a vida acena novos refúgios ao teor discursivo. Nessa página impregnada de originais, autores e leitores reescrevem sua história.

*Hélio Strassburger in “A Palavra Fora de Si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.   

**Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Prefácio

Esta obra é uma descontinuidade das ‘poéticas da singularidade’. Busca tecer críticas, provocar reflexões e insinua caminhos para a desconstrução das práticas ideologizadas a partir das tipologias do desatino. Compartilhar vivências de atendimentos, impressões e pesquisas sobre a raridade existencial da pessoa em refúgios de internação, sejam eles dentro ou fora dos muros do manicômio. Lugar onde a palavra usual encontra dificuldades para chegar a manter interseção com a epistemologia da loucura.

A singularidade desfigurada pelas intervenções da tradição mostra, antes de mais nada, a aptidão de exclusão das analíticas da correção discursiva. Ao se levar em consideração a distorção, o erro e as contradições do sujeito, reivindica-se o estudo do entorno da pessoa em crise: o contexto, família e o psiquiatra, que são coadjuvantes com poder (jurídico) para transformá-lo em paciente, ao prescrever suas drogas de lógica normal.  

No saber desajustado dos delírios, algo mais de anuncia entrevistas de tradução. Sua fonte de inspiração ao permanecer incógnita, também se anuncia nas tramas de excesso.

O éthos da loucura encena múltiplos personagens, entremeios de rasuras da normalidade. Diante das pretensões da razão classificatória um viés excepcional assume papéis intermináveis. A internação contrariada, a distorção das originalidades, o saber farmacológico e o alienista fundamentam a exclusão representada pela instituição sanatório.

Ao expor, com sua grande sensibilidade, os absurdos da sociedade que produz sua loucura, o louco a supera outra vez. Seu discurso de transbordamento possui encantos de língua marginal. Aprecia o não-ser como ponto de partida aos esconderijos, até então desmerecidos dentro de si.

A indústria da loucura encontra apoio significativo nas práticas de alienação, onde o consumo a qualquer preço impõe suas regras. As relações passam a ser mediadas pelas bugigangas ao redor. Aptidão de esquiva à introspecção e ao autoconhecimento. Sua característica principal é a insinuação, constantemente remarcada, de alguma forma de ganho, sucesso ou desempenho diferenciado.  

Como a maioria das pessoas pode passar uma vida inteira na periferia de si mesma e a conviver com um ilustre desconhecido, fica relativamente fácil cooptá-las para as verdades ocultas nas relações sociais de objeto para objeto.

No entanto, os rastros da palavra maldita atualizam silêncios, lacunas e transgressões de paradoxo. Devir descontinuado a ensaiar rotas ao ser extraordinário. A imprecisão dessas teias discursivas realiza um trânsito aprendiz pelos ditos exóticos da razão delirante.

Para permanecer como subjetividade indecifrável, o sujeito muitas vezes, desloca-se nalguma forma de silenciar. Um território novo e sem vocabulário conhecido esparrama vestígios de multidão. Antecipa uma epistemologia dos excessos. As coreografias desdobram-se no intermédio invisível da sanha diagnóstica.

Ao lugar inacessível para a sintaxe conhecida, uma incompletude discursiva refere indícios de profecia. Fonte de inspiração desmedida aos esconderijos distantes da normalidade.

A folia do fenômeno carnaval pode desfazer vertentes de uma só verdade. Ensaios de natureza mutante desdobram-se na imensidão dos exageros. O ser errático dos devaneios revela interstícios sem correspondência na realidade conhecida. Saber absurdo nas evasivas de introspecção. Aparente desconexão entre nada e tudo de qualquer coisa. Suas exceções convidam para enxergar através dos escombros da historicidade.

Episódios inesperados apreciam o esboço em caricaturas de aparência incrível. Um querer dizer nem sempre é capaz de transgredir os dialetos conhecidos. Ao visar exaltado da atitude delirante o mundo pode se mostrar alterado.

Uma vasta região segue indescritível, em uma zona de sombra e luz. A lógica das diferenças, ao tentar descrever as desconhecidas rotas, prenuncia disparates de invenção.

Assim, é impreciso resgatar o louco de seu exílio, pois não se trata de considerá-lo a partir do ponto de vista normal, mas de respeitar seu viés existencial em uma busca onde todos se encontram. O fato de não compreender sua língua, rituais ou desvario não justifica sua prisão e tratamentos de reconversão.

A natureza absurda desses abismos sugere outras fontes de razão, mesmo quando desmerecida pela medicina conhecida. A internação involuntária, a camisa-de-força do preconceito e as práticas com base no DSM-IV (manual psiquiátrico americano) encontram ecos de evasiva ao desconsiderar segredos encobertos na desrazão.   

Assim, o caótico instante, as alucinações ou a falta de jeito podem ter diagnóstico de alguma patologia. Sempre que isso ocorre, o discurso estrangeiro do alienista procura traduzir o mundo incompreensível do outro sujeito em linguagem própria. Ao classificar como insanidade seu deslumbramento com a vida, institui refúgios em caricaturas de coisa nenhuma.

Aos desatinos contidos na racionalidade, nem sempre basta seguir suas prescrições. Para ela, os extraordinários presentes da vida singular surgem como confusão, desajuste ou dúvida. Talvez a interseção positiva consiga ressignificar esses instantes de improvável recomeço.

A pessoa exilada em si mesma pode restar a expressão dos monólogos com suas paredes. Em meio ao denso labirinto ampliado pela farmácia do hospital, as vozes e visões atualizam a sobrenatural descontinuidade dos dias. Na aproximação com os outros de sua aldeia, o devir da loucura pode surgir como genialidade, desajuste ou simulacro.

A Filosofia Clínica, como paradigma de obra aberta, aprecia a conversação aprendiz, com a trama maldita nas subjetividades. Quem sabe a compreensão dos excepcionais discursos possa revelar outras verdades?

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – diálogos com a lógica dos excessos”. Editora E-Papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Um território subjetivo com linguagem própria*

 

Ao filósofo clínico compete visualizar a natureza da relação entre tópicos determinantes numa estrutura de pensamento, bem como se apropriar dos submodos que dizem respeito ao sujeito sob seus cuidados. Isso sem descuidar de outras possibilidades, como a elaboração e partilha de caminhos que contribuam aos projetos da terapia.

É importante lembrar que os mesmos tópicos significativos da estrutura de pensamento, de duas ou mais pessoas, ainda assim preservam sua especificidade (conteúdos), devido às circunstâncias em que foram se constituindo. Aqui se destaca a caminhada da singularidade, ao preencher determinados tópicos com seu discurso existencial, ou seja, um mesmo tópico, ainda quando importante numa e outra estrutura, preserva uma característica própria quanto a sua efetividade, realizando um movimento incomparável na interseção com os demais pressupostos da sua malha intelectiva.

Jorge Amado diz assim: “Por onde andaria Rosa Palmeirão? Nascera naquele cais, fora pelo mundo, que não gostava de estar num lugar só. Ninguém sabe por onde ela anda. Onde ela estiver tem barulho. Porque ela traz navalha na saia, punhal no peito e porque tem um corpo bem-feito (...)” (Mar morto, 1990).

Este fragmento contribui para o estudo da interseção entre vestígios de paixão dominante, comportamento-função, vice-conceito, expressividade, ou seja, a atitude de se deslocar pelo mundo, viajar, transitar, surge como uma suspeita de paixão dominante, enquanto o vice-conceito se mostra nos termos cuja literalidade diz uma coisa e o significado ou intenção do autor diz outra como o caso de: “ela traz navalha na saia, punhal no peito”. Ao identificar a estrutura de pensamento, cabe ao filósofo clínico encontrar os procedimentos clínicos com os quais poderá melhorar a relação entra os tópicos determinantes, qualificando o discurso existencial partilhante.

Neste trecho, pode-se vislumbrar, ainda, rastros de uma argumentação derivada (submodo), a qual não deixa claro se é o caso de buscar as origens do comportamento de Rosa Palmeirão ou se as coisas estão indo bem como se encontram. Quando isso ocorrer, o filósofo clínico deve buscar subsídios, nos exames categoriais do partilhante, com dados divisórios, atalhos, enraizamentos. Noutro apontamento do autor: “(...) o vento levava as palavras” (Mar morto, 1990).

Em uma análise dessa natureza, um dado isolado vale quase nada, no entanto, quando associado ao contexto de onde surgiu, pode constituir um indício de conjugação tópica estrutural determinante à pessoa. O significado e o alcance de um procedimento clínico como o vice-conceito, por exemplo, deve ser trabalhado em conformidade com os critérios para identificação dos tópicos e submodos, os quais, além de determinantes, devem fazer sentido ao partilhante.

Um vice-conceito pode significar não querer dizer ou ocultar, pode tratar-se de um jeito próprio de expressividade. Trata-se de um procedimento muito comum nas pessoas internadas (voluntariamente ou não) em hospitais psiquiátricos embasbacados, na tentativa de corrigir discursos, medicalizar, normalizar condutas, desmerecendo o vocabulário subjetivo da pessoa exilada. Quando poderiam – se tivesse método e autonomia – buscar outras formas de acolhimento, tendo como referência as narrativas da originalidade diante de si.

No entanto, para isso se realizar, seria necessário uma abordagem e circunstâncias propícias, de respeito, atenção e cuidado diferenciados, os quais a maioria das instituições desconhece, talvez pela excessiva reverência ao deus psicofármaco, ou pela base curricular das faculdades de medicina e psicologia. Nesse sentido, seus programas oferecem classificação, tipologia, protocolos, rigidez conceitual e conversão à uma normalidade de rebanho, distantes do fenômeno singular em processo.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS, 2021.

**Instagram: @hélio_strassburger  

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Refúgios na estrutura do tempo***

  

Quem instaura vigor, o criador que alcança o não-dito, que irrompe no não-pensado, que conquista o não acontecido e faz aparecer o não-visto, um tal instaurador de vigor está sempre em risco.”

                                                                                          Martim Heidegger 

Recomeço entremeios de subterfúgios na estrutura do tempo. Revelação sutil das (im)permanências. Situação qualquer na interseção com olhares da diversidade perspectiva. Um estrangeiro constitui-se em território próprio, descortinando-se absurdos de tudo u nada. Tratativas em decifrar os segredos nos percursos de brevíssimo existir. Um depois de amanhã articula-se na conversação com o pretérito imperfeito das (des)continuidades. Insinuação em aparência (doxa) pela antes e depois de qualquer coisa.

Enredos de múltiplas faces divertem-se em achados e perdidos contornos. Disposição pelo indizível em natureza de efêmeras memórias. Um começo sem fim em quase-tudo efetiva o ímpeto das raras fontes. Descobertas de saber impreciso num mundo sempre outro. Provisórios acordos com as químicas do sono podem deixar uma sensação de incompletude nas retrospectivas de aspecto indecifrável.

Umberto Eco sobre a multiplicidade hermenêutica: “Das estruturas que se movem àquelas em que nós nos movemos, as poéticas contemporâneas nos propõem uma gama de formas, que apelam à  mobilidade das perspectivas, à multíplice variedade das interpretações. Mas vimos também que nenhuma obra de arte é realmente “fechada”, pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de “leituras” possíveis.” (A Obra Aberta, 2005).

Uma espécie de feitiço do tempo institui suas leis em recordações de permanecer modificando-se. Agora sempre outro no ir e vir da história de cada um. Matéria-prima para um aproximar reflexivo (techne) com o incomum dessas travessias. Estranhos fenômenos apreciam o refúgio no todavia-contudo (aporia) das ocasiões. Aguardam um flagrante no cotidiano decifrar dos novos endereços, investigação corrente por entremeios de lugar incerto. Metafísica das contínuas manifestações elabora desígnios de reciprocidade com os mutantes contextos. Primitivas representações em novidade de não-ser um tempo qualquer.  

Especulação das possibilidades na intimidade de Chronos. Elaboração em linguagem própria a buscar refúgio no incomunicável devir. Nesses esconderijos articulam-se conjecturas em desdobramentos de entretanto. Singular preparação na híbrida relatividade dos contextos. Categoria presente na descontinuidade de cada instante revela-se nas miragens de (quase) perder de vista. Horizontes por onde aprecia (des)aparecer. Um viver contido re-inaugura-se na insanidade normalizada dos dias.

Michel Foucault no recordar Paracelso: “Não é vontade de Deus, que o que ele cria para o benefício do homem e o que lhe deu permaneça escondido (...). E ainda que ele tenha escondido certas coisas, nada deixou sem sinais exteriores e visíveis com marcas especiais – assim como um homem que enterrou um tesouro marca a sua localização a fim de que possa reencontrá-lo.” (História da loucura, 2000).

Uma reflexão contínua persegue o invisível andarilho por seus inúmeros disfarces. A ilusão de perceber-se sempre o mesmo pode antecipar uma concepção de expressividade sem medida. Múltiplas investigações procuram manter interseção com a natureza fugidia desse absurdo (logos) presente nos fenômenos. Vereda de extraordinários achados sugere estar sempre em outro lugar.

A saudade de um tempo que se foi (re)-significa sua permanência na memória do coração. Assim, ao vislumbrar as páginas do velho álbum, a recordação atualiza aquilo tudo que vivia muito bem sendo esquecido. No entanto, costumam ser as novas vivências a medicação mais poderosa. A interseção com inéditos amanhãs antecipa-se em promessas de ser real.

Nietzsche em busca de descrever esse estranho espécime – o filósofo: “O filósofo é uma das maneiras pela qual se manifesta a oficina da natureza – o filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza. (...) Eles e a arte ocupam o lugar do mito que está desaparecendo. Contudo, eles surgem muito adiantados, já que a atenção de seus contemporâneos só muito lentamente se volta para eles.” (O livro do filósofo, 2001)   

Talvez o diálogo com esses imediatos vestígios, possa (des)ocultar um agora em desdobramentos de pouco antes ou logo depois. Magia a esconder-revelar indícios de algo mais por entre lacunas de estranhas conexões. Irrealidade dos acordos no ugar nenhum de todo lugar. Imprevistos eventos em ponto de partida, ao deixar para trás os velhos mapas.

Interrogação mediada no intercurso dinâmico como viver. Entremeios de quase-nada, onde uma vida inteira pode acontecer! Um inesquecível presente sucede-se em memórias de amanhã. Quem sabe o abismo permita realizar a solidão compartilhada no superlativo voo, no qual chegadas e partidas venham a ser uma coisa só. O fim reencontrando seu (...).  

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da Singularidade”. Ed. E-papers/RJ. 2007.  

**Instagram: @helio_strassburger                                                                                 

sábado, 12 de agosto de 2023

Na invisibilidade de um triz***

"A vida segura o espelho para a arte, e reproduz ou algum tipo estranho imaginado por um pintor ou por um escultor, ou então concretiza no fato aquilo que havia sido sonhado na ficção”

                                                                        Oscar Wilde 

Existem refúgios por onde as raridades ensaiam incompletudes. Uma zona distante dos consensos e de onde nada se espera. Discurso das lacunas, falhas e sentidos obsoletos, seu sussurro descreve frestas e faz referência à palavra que escapa. Um quase ao sobressalto criativo desconsiderado. Atiçar especulativo no esboço por um triz de duração imediata.

Na expressividade ainda não cooptada pelos rituais conhecidos, suas deixas, sobras ou deslizes incitam a interrogação para outras verdades. Fonte de matéria-prima às incertezas recém-decaídas das convicções. Seu anúncio de nitidez inesperada se oferece na escassez de um porém. Sua irrealidade ainda sem fundamentação não desmerece paradoxos, ao contrário, os fortalece com sua existência sutil.

Um ser de aspecto difuso se oferece ao olhar de escuta não contaminado. Seus caminhos possuem a invisibilidade dos seres livres. A ciência conformada não possui meios para vislumbrar um mundo repleto de extraordinários. Segue a reproduzir justificativas contra suas dobras e contornos. Ao descrever erros e distorções, agracia com títulos e honrarias as melhores cópias. Mesmo assim, as certezas de espelho se agitam, como se fora outro eu mesmo do lado de lá.

Na virada de página os trechos incompreensíveis possuem a chave da interseção com o ângulo desconhecido. Ao olhar assim constituído, as coisas parecem surgir com ênfase conhecível. Sua desenvoltura se anuncia na peregrina busca a se alternar nas ventanias.

Em Merleau-Ponty: “Jamais veríamos uma paisagem nova se não tivéssemos, com nossos olhos, o meio de surpreender, de interrogar e de dar forma a configurações de espaço e de cor jamais vistas até então.” (A Prosa do Mundo, 2002).  

Seus apontamentos deixam vidências numa moldura que aguarda. Sua lucidez de pensar delirante ampara exílios na palavra sem sentido. Os tropeços da estrada servem para deixar rastros, muitas vezes sobreposição aos pergaminhos bem redigidos.

A perplexidade dos novos conteúdos prolifera significados para além da estrutura de onde surgiu. Ao transformá-la nalguma forma de saber, destitui sua força subversiva e criadora. A partir de então será tipologia ou especialidade bem arrumada.

Em tempos de preparação e anúncio, a velha janela aponta novidades através das coisas sem sentido. Distorções ao consentimento de uma só realidade. Ao não ter um território único, percorre todos com uma ingenuidade de primeira vez. Sua referência ao ser descontínuo atualiza um caminho por seguir. Quando se trata de recarregar forças, se abriga nalgum ponto de seu vasto universo.

À primeira vista há os limites da interseção conhecida. A rasura ou distorção apreciam insinuar outros acessos ao não lugar. Sinal de alerta aos ângulos de um real improvável. Dialética dos assédios com a existência de onde nada se espera.

Oscila de um ponto a outro num espaço de tempo despreocupado em se mostrar. Nesse sentido recria estruturas significantes e significativas, realiza fissuras entre real e irreal e desconstrói a ilusão de ser a única verdade.

Sua relação com o lugar comum do bom-senso é um contrassenso. Contradição irreverente com a certeza de nada ser nada. Uma brecha para as invenções e descobertas expandirem os limites do que deu certo. Momentos de aproximação com a estrutura de um caos em busca de tradução.

Donaldo Schuler poetiza essa percepção: “O homem define-se nas suas muitas relações. Define-se ao se definir. Onde procurar o homem se a cada instante quebra grilhões?” (Heráclito e seu (dis)curso, 2004).  

Seus recantos desmerecidos gostam de se anunciar em vocabulários desconhecidos. Os manuscritos julgados como língua morta apreciam transgredir a lógica normalizada.

No seu instável equilíbrio os fenômenos rascunham a apresentação que acolhe a razão de toda loucura. Capaz de vislumbrar essa zona desmerecida e condenada à ficção do real, seu visar não pode encarcerar-se nalguma definição. O outro daquilo que se vê se encontra no mesmo, e sua eficácia pode ser vista atuando na antítese do que se sabe.

Seus rastros instituem uma instabilidade interpretativa eficaz, ao oferecer uma multiplicidade de sobressaltos ao entendimento tido como verdade única. Sua singularidade se ampara nas entrelinhas dos acordos. Essa espécie incomum em seu jeito híbrido de tornar-se se faz notar pela ausência.

Uma estranha invisibilidade se alterna nos episódios em que sua realidade fugaz persegue a denúncia aos novos territórios. Assim o acaso, as incertezas e a dúvida podem significar a incursão para algo que se encontra onde não se procura. A sensação de estar sobrando anuncia rumores de contrarregra e aponta exceções.

Ernst Cassirer desvenda ao problematizar: “A linguagem encerra um sentido oculto a ela própria, que ela somente pode decifrar por conjecturas, através da imagem e da metáfora.” (A Filosofia das Formas Simbólicas – a linguagem, 2001).

Mesmo a singularidade por de se tornar refém dos princípios de verdade. Assim destituída de forças para desbravar, pode assumir as mordaças provisoriamente. A palavra sussurrada pela errância dos poetas transcreve os devaneios da vontade aprisionada.

À vertigem cúmplice das transgressões, raramente é permitido esboçar projetos sem alguma forma de solidão. Sua aptidão de prefácio mal compreendido costuma engendrar inseguranças e medos. Assim, essas habilidades encontram na pluralidade da arte um acolhimento em que as raridades consigam integrar os ânimos conhecidos com as novas ideias.

As dobras e contornos de um tópico de singularidade podem conter essa realidade multifacetada a se perder nas lonjuras de si mesma. Assim as reminiscências apontam algo mais que um porto seguro e já superado. O espanto aprecia desagregar certezas ao oferecer descobertas e invenções na face calma de um dia qualquer.

Quando você se move com o corpo ou se deixa levar pelo curso do pensamento, o mundo inteiro se desloca ao seu redor. Os lugares por onde o espírito transita e se alimenta possui estoques generosas de não saber. Suas revisitas evidenciam rastros, um pouco antes de ser narrativa.

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.

**Instagram: @helio_strassburger