Esta obra é uma descontinuidade
das ‘poéticas da singularidade’. Busca tecer críticas, provocar reflexões e
insinua caminhos para a desconstrução das práticas ideologizadas a partir das
tipologias do desatino. Compartilhar vivências de atendimentos, impressões e
pesquisas sobre a raridade existencial da pessoa em refúgios de internação,
sejam eles dentro ou fora dos muros do manicômio. Lugar onde a palavra usual
encontra dificuldades para chegar a manter interseção com a epistemologia da
loucura.
A singularidade desfigurada pelas
intervenções da tradição mostra, antes de mais nada, a aptidão de exclusão das
analíticas da correção discursiva. Ao se levar em consideração a distorção, o
erro e as contradições do sujeito, reivindica-se o estudo do entorno da pessoa
em crise: o contexto, família e o psiquiatra, que são coadjuvantes com poder
(jurídico) para transformá-lo em paciente, ao prescrever suas drogas de lógica
normal.
No saber desajustado dos
delírios, algo mais de anuncia entrevistas de tradução. Sua fonte de inspiração
ao permanecer incógnita, também se anuncia nas tramas de excesso.
O éthos da loucura encena
múltiplos personagens, entremeios de rasuras da normalidade. Diante das
pretensões da razão classificatória um viés excepcional assume papéis
intermináveis. A internação contrariada, a distorção das originalidades, o
saber farmacológico e o alienista fundamentam a exclusão representada pela
instituição sanatório.
Ao expor, com sua grande
sensibilidade, os absurdos da sociedade que produz sua loucura, o louco a
supera outra vez. Seu discurso de transbordamento possui encantos de língua
marginal. Aprecia o não-ser como ponto de partida aos esconderijos, até então
desmerecidos dentro de si.
A indústria da loucura encontra
apoio significativo nas práticas de alienação, onde o consumo a qualquer preço impõe
suas regras. As relações passam a ser mediadas pelas bugigangas ao redor. Aptidão
de esquiva à introspecção e ao autoconhecimento. Sua característica principal é
a insinuação, constantemente remarcada, de alguma forma de ganho, sucesso ou
desempenho diferenciado.
Como a maioria das pessoas pode
passar uma vida inteira na periferia de si mesma e a conviver com um ilustre
desconhecido, fica relativamente fácil cooptá-las para as verdades ocultas nas
relações sociais de objeto para objeto.
No entanto, os rastros da palavra
maldita atualizam silêncios, lacunas e transgressões de paradoxo. Devir
descontinuado a ensaiar rotas ao ser extraordinário. A imprecisão dessas teias
discursivas realiza um trânsito aprendiz pelos ditos exóticos da razão
delirante.
Para permanecer como
subjetividade indecifrável, o sujeito muitas vezes, desloca-se nalguma forma de
silenciar. Um território novo e sem vocabulário conhecido esparrama vestígios
de multidão. Antecipa uma epistemologia dos excessos. As coreografias
desdobram-se no intermédio invisível da sanha diagnóstica.
Ao lugar inacessível para a
sintaxe conhecida, uma incompletude discursiva refere indícios de profecia.
Fonte de inspiração desmedida aos esconderijos distantes da normalidade.
A folia do fenômeno carnaval pode
desfazer vertentes de uma só verdade. Ensaios de natureza mutante desdobram-se
na imensidão dos exageros. O ser errático dos devaneios revela interstícios sem
correspondência na realidade conhecida. Saber absurdo nas evasivas de
introspecção. Aparente desconexão entre nada e tudo de qualquer coisa. Suas
exceções convidam para enxergar através dos escombros da historicidade.
Episódios inesperados apreciam o
esboço em caricaturas de aparência incrível. Um querer dizer nem sempre é capaz
de transgredir os dialetos conhecidos. Ao visar exaltado da atitude delirante o
mundo pode se mostrar alterado.
Uma vasta região segue
indescritível, em uma zona de sombra e luz. A lógica das diferenças, ao tentar
descrever as desconhecidas rotas, prenuncia disparates de invenção.
Assim, é impreciso resgatar o
louco de seu exílio, pois não se trata de considerá-lo a partir do ponto de
vista normal, mas de respeitar seu viés existencial em uma busca onde todos se
encontram. O fato de não compreender sua língua, rituais ou desvario não
justifica sua prisão e tratamentos de reconversão.
A natureza absurda desses abismos
sugere outras fontes de razão, mesmo quando desmerecida pela medicina
conhecida. A internação involuntária, a camisa-de-força do preconceito e as
práticas com base no DSM-IV (manual psiquiátrico americano) encontram ecos de
evasiva ao desconsiderar segredos encobertos na desrazão.
Assim, o caótico instante, as
alucinações ou a falta de jeito podem ter diagnóstico de alguma patologia. Sempre
que isso ocorre, o discurso estrangeiro do alienista procura traduzir o mundo
incompreensível do outro sujeito em linguagem própria. Ao classificar como
insanidade seu deslumbramento com a vida, institui refúgios em caricaturas de
coisa nenhuma.
Aos desatinos contidos na
racionalidade, nem sempre basta seguir suas prescrições. Para ela, os extraordinários
presentes da vida singular surgem como confusão, desajuste ou dúvida. Talvez a
interseção positiva consiga ressignificar esses instantes de improvável
recomeço.
A pessoa exilada em si mesma pode
restar a expressão dos monólogos com suas paredes. Em meio ao denso labirinto
ampliado pela farmácia do hospital, as vozes e visões atualizam a sobrenatural
descontinuidade dos dias. Na aproximação com os outros de sua aldeia, o devir
da loucura pode surgir como genialidade, desajuste ou simulacro.
A Filosofia Clínica, como
paradigma de obra aberta, aprecia a conversação aprendiz, com a trama maldita nas
subjetividades. Quem sabe a compreensão dos excepcionais discursos possa
revelar outras verdades?
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica – diálogos com a lógica dos excessos”. Editora E-Papers/RJ. 2009.
**Instagram: @helio_strassburger