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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

domingo, 30 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 37*

                                  Onde estão as asas e os passarinhos?

Existe um lugar indeterminado em cada pessoa, escondido nalgum ponto de sua periferia. Esse endereço, pela via da intencionalidade, pode ensaiar os primeiros passos, dependendo do acolhimento e espaço para experimentação.  

Tive dificuldades em me adaptar as classes normais das escolas onde tentavam ensinar o lugar onde deveria me estabelecer, isto é, buscar as melhores notas num sistema comum. A muito custo concluí o ensino médio e a graduação. Lembro, por exemplo, a dificuldade em entender a lógica formal aristotélica. Após duas reprovações na disciplina, busquei refúgio na biblioteca da universidade.

Lá encontrei um livro sobre lógica dialética de Caio Prado Junior, onde tudo começou a fazer sentido, ou seja, a lógica formal aristotélica era fácil, eu dificultava as coisas. Com a lógica dialética pude perceber a diferença entre a cristalização discursiva daquela e a plasticidade dinâmica desta. No semestre seguinte enfrentei a cadeira de lógica formal noutros termos, agora com as melhores notas. Havia compreendido uma pela outra.  

Sartre indica: “(...) os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua variedade e a sua imprevisibilidade.” (As palavras, 2000. Pág. 37).

Ao pensar a interseção das pessoas com seu devir singular, parece necessário um endereço existencial, uma linguagem que faça sentido para sua especificidade em desenvolvimento, para depois compartilhar algum conteúdo para sua realidade em processo.

Jean-Paul Sartre em sua autobiografia As Palavras, refere a importância de sua relação com a biblioteca do avô, o encontro com os livros e a ampliação de sua visão, podendo contemplar aquilo que buscava sem saber. O espanto em descobrir nas prateleiras as obras para alimentar sua singularidade de menino inconformado com os limites de uma educação rígida, formal, igual para todo mundo.

O filósofo compartilha: “(...) todas as crianças são inspiradas, nada têm a invejar aos poetas, que são pura e simplesmente crianças.” (As palavras, 2000. Pág. 50). 

Um aspecto que merece ser lembrado, é o fato de que os sonhos, as esperanças, os devaneios, embalando nossa infância, adolescência, os dias de hoje, permanecem intactos em nossa subjetividade, podendo, a qualquer momento, manifestar sua condição, até então exilada, à espera de um instante qualquer para se dizer.

A poesia existencial - em cada pessoa - desmerecida pelas ideologias de consumo, elas mesmas devorando-se para se sustentar, talvez pudesse encontrar, nas franjas exiladas de si mesma, uma reescrita para seu roteiro existencial.      

Aquele abraço,

*hs  

domingo, 23 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 36*

                                  Onde, com quem, como aprender?  

O filme “Louco para ser normal”, de 2017, com direção de Robert Mullan e roteiro de Roberto Mullan e Tracy Moreton. Produzido no Reino Unido, possui 106 min de duração.

A obra trata – numa introdução – das atividades do psiquiatra escocês R.D. Laing, o qual trabalha, nos anos 1960, uma nova abordagem clínica denominada metanóia ou autocura. Laing foi um dos precursores da filosofia de trabalho denominada antipsiquiatria.

Sua proposta causou grande controvérsia e indignação entre seus pares, pois desconstruía, sob vários aspectos, o saber-poder do psiquiatra, e sua relação com o que produzia para depois tratar: a loucura.

Ao realizar a aproximação com uma nova abordagem terapêutica, o filme destaca alguns eventos do trabalho de Laing, como: o fato de residir no mesmo espaço das pessoas com as quais mantinha relação clínica; seu cuidado em oferecer uma interseção cuidadora com o fenômeno da singularidade (sem tipologias), visitando a sintonia subjetiva de cada um sob seus cuidados; sua produção escrita acontecia em meio as múltiplas atividades na casa que mantinha (não se tratava de um hospital psiquiátrico); a forte resistência de seus contemporâneos sobre sua atividade diferenciada, com interferências com base na legislação de seu país para conter suas ações.  

Apesar de ainda utilizar alguns conceitos da psiquiatria, demonstrava uma caminhada do papel existencial em direção a uma nova expressividade. Muitos de seus contemporâneos se utilizavam como exemplo de fracasso do seu trabalho, algumas exceções, que só faziam confirmar a regra sobre a eficácia e o alcance de sua proposta clínica com a maioria das pessoas atendidas.   

Thomas Kuhn com Bernard Barber: “A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros.” (A estrutura das revoluções científicas, 2013. Pág. 89).

Um ingrediente para reconhecer um novo paradigma, é a crítica contrariada da maioria dos integrantes da ciência normal que ele supera. Com esse fato, amplia-se a defesa de interesses dos profissionais das abordagens institucionalizadas, que se veem ameaçados pelas novas práticas.

Há uma zona de conforto existencial, no que se refere ao mundo das ideias e da resposta cumulativa da ciência normal, isto é, suas atividades (universidades, institutos) desenvolvem linhas de pesquisa de mestrados, doutorados, pós-doutorados, que só fazem acrescentar conceitos e definições para justificar aquilo que já existia, raramente ocorrem desajustes nesse contexto.

Quando um membro do clã modifica seu olhar e começa a enxergar novas possibilidades para as problemáticas, até então, descartadas pela ciência conhecida, os ardis - para com ele - costumam ser de exclusão dos times oficiais de pesquisa, como: perda da cátedra, verbas de representação, demissão.

Tornar invisíveis ou dificultar o aparecimento das novas ideias, são uma característica da ciência normalizada. Por outro lado, esse fato (a invisibilidade), por si só, costuma auxiliar na implementação das novas práticas, as quais vão se estabelecendo na sociedade pelas vias da exclusão, marginais. A escassez de recursos cede lugar ao borogodó dos envolvidos, os quais se sentem atraídos pelo papel histórico precursor.  

Segue-se a busca por esses endereços existenciais, onde acontecem as construções compartilhadas no campo da ciência anormal.  

Aquele abraço,

hs

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 35*

                                                 Síndrome de vira-lata? 

É interessante notar o fato de que, no Brasil, algumas armadilhas conceituais volta e meia se reapresentam, em nova roupagem, reagendando suas máximas as novas gerações. Como a verdade enraizada de que o que é bom vem do exterior, de longe. Ou que a língua universal é o inglês, ou os estilos de escrita, pintura, teatro, a forma de compor músicas, as roupas da moda. Divulga-se (com fartura de agendamentos) o que vem de outro lugar como algo melhor.    

Foi Nelson Rodrigues que, após a derrota do Brasil para o Uruguai na final da copa do mundo de futebol em 1950, em pleno Maracanã, cunhou a expressão: complexo de vira-lata.  

Em campos de atuação como a antropologia, sociologia, filosofia clínica e outras, embora seu amplo espectro de aplicabilidade e inserção junto as pessoas de seu meio (bairro, distrito, cidade, estado), ainda padecem de ter que escutar coisas como: isso é muito bom! Só pode ter vindo da Europa, dos USA.   

Agora, então, imagine um novo paradigma como a invenção do rádio e o telefone (Pe. Landell de Moura, 1893), o avião (Santos Dumont, 1901), a radiografia (Manuel de Abreu, 1936), a máquina de escrever (Pe. João Francisco de Azevedo, 1861), a Filosofia Clínica (Lúcio Packter, 1990), sendo a maioria autodidata ou oriunda de outras áreas, com rara participação acadêmica.  

Thomas Kuhn ajuda a entender o fenômeno: “Qualquer nova interpretação da natureza, seja ela uma descoberta, seja uma teoria, aparece inicialmente na mente de um ou mais indivíduos. São eles os primeiros a aprender a ver a ciência e o mundo de uma nova maneira.” (A estrutura das revoluções científicas, 2013. Pág. 241).

No caso das ciências humanas, especificamente na área de atuação das especialidades de base Psi, o que se testemunha é uma incompetência generalizada (questão de método) em compreender o fenômeno da singularidade.

Seja qual for o motivo (limitação nos estudos, acomodação profissional, dependência econômica), esse aspecto de se rechaçar a novidade (não contemplada pela ciência normal), torna-se um empecilho para o acolhimento e desenvolvimento dos novos modelos de compreensão e intervenção na realidade.

A metodologia ensinada em escolas, universidades, institutos de formação, com suas tipologias, classificações, a dependência da psicofarmacologia, passam longe de acolher a pessoa em seu contexto de ser inédito. Um exemplo disso é a multiplicação de síndromes, distúrbios, pelo fato de não se admitir e reconhecer uma abordagem capaz de superar as verdades de pretensão científica que chegam do outro lado do Atlântico.

Arnaldo Jabor compartilha: “Fisiológicos seculares, patrimonialistas, teimosos, arrogantes, malandros, ignorantes, prepotentes, apenas nos resta pensar: o que nos falta desaprender para chegar a um ideal de país? Como faremos para chegar ao futuro de uma desilusão? Quantas décadas levaremos para desaprender toda a estupidez que cultivamos durante 400 anos?” (Jornal O Globo, 20 de janeiro de 2001).

Nos dias de hoje, é comum professores indicarem tratamento psicológico e psiquiátrico aos alunos divergentes, muitas vezes incomodados com os conteúdos distantes de sua área de interesse, turmas superlotadas, professores despreparados e desmotivados para a sala de aula. Sem contar a proliferação de questões familiares, interesses, disputas. Assim, parece cômodo diagnosticar – autismo, pânico, burnout – as doenças da moda, como justificativa ao fracasso na convivência com o fenômeno da singularidade.  

Aquele abraço,

*hs  

terça-feira, 11 de junho de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 34*

  

“Viemos do pó e ao pó retornaremos. A vida é o que fazemos no breve instante entre a poeira e a poeira”.   

                                                      Gustavo Bertoche 

Um dia desses, num texto publicado nas redes sociais, o professor Gustavo Bertoche, possivelmente um dos maiores pensadores brasileiros, destaca um papel dos pais na educação dos filhos.

Tendo como referência uma questão formulada por seu filho de 12 anos, onde este lhe pergunta: “qual o objetivo da vida?”, o filósofo encontra uma resposta em Aristóteles, ao indicar que o objetivo da vida é descobrir o que de melhor podemos fazer e fazer cada vez mais.

Ao ter um horizonte reflexivo com base na Filosofia Clínica, onde se acolhe e cuida do fenômeno da singularidade, é uma raridade encontrar alguém ocupado em desenvolver em seus filhos - desde tenra idade - um senso de autoconhecimento, reflexão, ensaio, descoberta.

Nossa sociedade de consumo, via de regra, estruturada como imitação e um olhar voltado para fora, em busca de outras línguas, onde sequer se consegue desenvolver a própria linguagem diante do espelho, estimula-se a viagem para longe, de onde se acenam joias raras, vivências extraordinárias, mundos fantásticos.

Quando se trata da educação escolar, que oferecem currículos bilingues, onde se aprende português/inglês ou português/francês ou português/alemão, parece reforçar a ideia de que algo superior vai ser encontrado sempre noutro lugar.

Desconheço um exemplo onde se ofereçam disciplinas voltadas para um processo de autoconhecimento, respeitando os trajetos da realidade em processo do aluno. Esses eventos, ao prescrever seus roteiros, agendam formas de sentir, pensar, escolher, quase sempre como algo inacessível.      

 Ao se descobrir extraordinário, único, diferente, singular, se pode ter uma tipologia como recompensa, ser portador de um distúrbio, ganhar a medalha da anormalidade, manifestar uma nova síndrome, dessas que os especialistas multiplicam para manter suas metodologias capengas.  

Maurice Blanchot recorda Artaud: “Entretanto, na época da correspondência com Jacques Riviére, enquanto ainda escrevia poemas, ele conserva claramente a esperança de se tornar igual a si mesmo” (O livro por vir, 2005. Pág. 53).

No contexto escolar é comum a oferta generosa de matérias para estimular raciocínios, construir e desconstruir coisas, elaborar maquetes, desenvolver novas tecnologias como a robótica e a IA. Assim esses estudos aliados a educação familiar, a qual é refém do que fizeram com os pais, avós, bisavós, na maioria das vezes, reproduzem com seus filhos, aquilo que fizeram com eles.  

Por outro lado, na mesma direção, existem aqueles raros, que alimentam a curiosidade na direção de um processo voltado para a autodescoberta, como uma janela que se abre para dentro, permitindo enxergar e conviver com os próprios sentimentos, sensações, ideias, desenvolvendo a pitada de infinito que lhe toca.  

Em C.S. Lewis: “A Literatura enquanto logos é uma série de janelas, ou mesmo de portas.” (Como cultivar uma vida de leitura, 2020. Pág. 16).  

A Filosofia e a Literatura poderiam ter um papel de destaque nesse processo.

Talvez, a partir de uma interseção singular da pessoa com ela mesma e seu mundo, seja possível compartilhar as novidades que vão brotando de dentro para fora, como algo inédito, a provocar espantos em forma de rascunho, estimular aptidões de invenção, criatividade, originalidade. Com isso, no tempo subjetivo do outro, em seu próprio território, seria possível conjugar ingredientes adequados aos momentos de novidade em cada instante de seus dias.

Aquele abraço,

hs

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Filosofia Clínica agridoce 33*

 

                                             A palavra reencontro 

Existem autores literários que, com sua escritura, encontram a palavra certa, para nos conduzir por seus roteiros, evidenciando refúgios nas entrelinhas de quase nada. Sua atividade criativa se realiza em interseção com sua fonte de inspiração: a vida.

Os termos agendados em seu intelecto dizem respeito aos locais por onde anda, com quem convive, as leituras de um livro que se multiplica no cotidiano. A importância da leitura para desenvolver os limites de uma estrutura de pensamento, diz respeito a possibilidade de ser plural, contida em cada um, seja como possibilidade ou como algo em processo.

Entendendo que os princípios de verdade, representados pelos caciques incensados pela mídia, os quais tratam de agendar o que deve ser valorizado, lido, apresentado, o que vestir, como e onde comer, como viver, cuidam dos deslizes da imaginação que ultrapassa os limites de suas verdades.

Nélida Pinõn contribui: “(...) encerrado na água-furtada de São Jorge, indago se teria sido no passado um navegante ou um poeta que mesmo sem o dom da escrita, semeara em torno palavras incandescentes, todas sem dono. Sob o abrigo da imaginação, que é minha morada.” (Um dia chegarei a Sagres, 2020. Pá. 133).  

Assim deveríamos ter mais cuidado ao escolher um livro, um local para morar, com quem conviver, pois as palavras com que a realidade se apresenta, tem o poder de sugerir ideias, sensações, direcionar buscas, interseções com coisas e pessoas, inclusive com a singularidade que se quer livre.  

As palavras pronunciadas, escritas, caladas, contém a magia de capturar - pela via intelectiva - a atenção e o foco, roteirizando espaços por onde se experiencia a vida num instante. Octavio Paz ao referir: ‘todos somos poetas’, parece alertar para o fato de não somente a escrita ter o dom da poesia, mas a existência de outras poéticas, como um jardineiro cuidando de um jardim como nenhum outro ou o fotógrafo que encontra um ângulo desconhecido da realidade, ou aquele texto desconsiderado, ora redescoberto por esses dias da biografia de cada um.

Nélida Piñon indica: “Havia que estudar, ter a leitura como prumo. Por meio dela saberia que o mundo ia além da nossa natureza, dos limites da aldeia.” (Um dia chegarei a Sagres, 2020. Pág. 173).

A autora destaca a importância e o significado da leitura, seja como um rumo a perseguir ou como um processo de libertação pessoal, uma aliada dos dias e noites, por onde se pode desenvolver uma autobiografia, ao se conseguir o melhor de uma condição singular em processo.    

 Governantes bem-intencionados sabem da importância em investir nas escolas, universidades, em centros de pesquisa diferenciados, na edição de bons livros, com os quais os candidatos a serem sujeitos em sua história, poderão desenvolver uma aptidão crítica e reflexiva. O contrário também é verdadeiro.   

Sartre em seu texto “O existencialismo é um humanismo” refere que a conquista de uma essência acontece a partir da existência. Noutras palavras, não se nasce pronto, mas se tem a condição - em si mesmo - de desenvolver-se na vida em direção a uma expressividade singular. Mesmo ao ter de superar condições adversas como: a educação familiar, escolar, religiosa, as verdades de seu tempo.

Nesse sentido a leitura é uma ameaça as ideologias da dominação e do controle social, uma aliada para se saber mais e melhor sobre o mundo onde se vive e convive, nesses tempos de uma tecnologia nem sempre favorável ao fenômeno humano.

Aquele abraço,

hs