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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Dialéticas do Inesperado*

 

“Já não é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio”

                                                              Gilles Deleuze

O pátio do hospício é um desses lugares onde o extraordinário esboça preferências. Muros, paredes e vigias atualizam a contenção do corpo, para que a alma consiga refúgio em devaneios de transgressão. Institui arranjos de novidade na arte de existir sem razão.

Na invisibilidade dos deslocamentos o compartilhar nem sempre é possível. Talvez por isso, no sujeito delirante, a realidade apareça disfarçada de irrealidade. Na estrutura inquieta, onde as visões dialogam entre si, uma vida inteira pode ser insuficiente para alguma tradução.

A desarticulação das palavras se faz cúmplice ao pensar contraditório das in-completudes. Algo mais nos anúncios desses percursos da introspecção. Talvez alguma indicação à transgressão em torno das paredes do asilo. Mirante às perspectivas fantásticas da natureza humana encarcerada pelas grades da epistemologia da tradição. 

É de saber incerto o que leva as pessoas a buscar abrigo nas lonjuras incomunicáveis dentro de si mesmas. Acaso no território livre das abstrações, onde o aprisionamento nos rituais da normalidade pode se desfazer. Prosperar das diferenças entre a experiência sensível e seus paradoxos. Os segredos indescritíveis seguem à espera de exploradores.

Quiçá a vertigem possa anteceder essas aproximações com o inexplicável da pessoa internada. Enquanto isso, as incógnitas da loucura permanecem à margem, em refúgios de aparente sem sentido. A força narrativa dessas ilegibilidades desloca-se por universos de ambiguidade.

Deleuze refere: “(...) a interioridade não para de nos escavar a nós mesmos, de nos cindir a nós mesmos, de nos duplicar, ainda que nossa unidade permaneça”. (Crítica e clínica, 2004). Perspectiva delirante a denunciar pré-tensas realidades compartilhadas. Ponto de vista onde os consensos se veem ameaçados. 

Ao transgredir o embaçamento do visar normal, surgem outras derivações: uma poética dos milagres aprecia surgir como espetáculo, onde a pluralidade dos personagens exila, momentaneamente, o sujeito originário para descortinar seus outros.

Suspeitas de múltiplas origens procuram algum sentido ao não ser elaborado nas lógicas da esquiva. Diálogos com as formas do estranho descobrem inéditos percursos por trás dos velhos mapas. Os fenômenos integrantes da singularidade se anunciam nas tramas significantes dos relatos. Ao tentar entender a origem dessas viagens, um vislumbre cosmopolita aponta indícios de terra estrangeira.

A rede de saberes incompleta-se por todo lado. Em muitos casos, a estrutura caótica, por seu desvalorizada socialmente, institui novidades, mesmo quando socializa impressões de espectador numa cena que não lhe pertence. Nos convívios de marginalidade, a expressividade decadente denuncia esconderijos onde as palavras não conseguem chegar.

O sujeito subverte as tramas e desloca forças entremeios de certeza, vigilância e domesticação. Atribui-se raridade e funda algo mais, até então calado na estrutura inconformada ao olhar de multidão. Rituais incontáveis transgridem as antinomias de lucidez e submissão.

Um rastro de saber desarrazoado sugere outras lógicas aos traços de surrealidade. Matéria-prima em delírios de re-invenção, a descontinuar-se no vocabulário errante que se faz meio de apresentação, exploração e descoberta.

Em Félix Guattari: “Os lapsos, os atos falhos, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Nas se trata de interpretá-los. Trata-se antes de detectar sua trajetória para ver se podem servir de indicadores de novos universos de referência suscetíveis de adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação.” (Caosmose - Um novo paradigma estético, 2000). 

As falas da descontinuidade parecem preferir a instabilidade dos paradoxos, para vislumbrar as quimeras da insensatez. A improvável fala de aparente sem nexo qualifica interseção com o transbordar desses instantes de perdição e encontro. Insanidade ao olhar classificador do alienista. Estética provisória a se instaurar no início sem-fim das conversações com o exagero de si mesma. Ao ensimesmar-se a singularidade se desconcerta para ser exceção.

A farmácia interior também se qualifica nos ensaios do viajante. Distorção a perder de vista na relação com suas anterioridades. Fenômenos de extravagância ao compartilhar da terapia. Pessoas atormentadas por fantasmas indescritíveis podem enfraquecer seus temores e inseguranças, na compreensão desses vislumbres de razão alterada. Propõe compartilhar o depois de amanhã ainda inexplicável ao presente. A história reescrita faz surgir atributos de profecia, até então desconhecidos para si mesma.

Labirintos excepcionais denunciam outras verdades, entrevistas na realidade delirante. Inauditos discursos assopram sentidos divergentes aos ditos de euforia.

Jacques Derrida insinua: “Como o deserto e a cidade, a floresta, onde formigam os signos amedrontados, diz sem dúvida o não-lugar e a errância, a ausência de caminhos prescritos, a ereção solitária da raiz ofuscada, fora do alcance do sol, em direção a um céu que se esconde. Mas a floresta é também, além da rigidez das linhas, das árvores em que se agarram às letras enlouquecidas, a madeira que a incisão poética fere.”  (A escritura e a diferença, 2005).

O Filósofo Clínico se faz cúmplice, em seu papel existencial, na busca de um alívio compartilhado, para o alvoroço dessas reestreias do sujeito. Embora isso tudo reivindique nomes ou apelidos, quase sempre permanece como saber obtuso. Poéticas de interrogação alternam-se na obscuridade das lacunas.

Focos de miragem na investigação das impermanências. Mutante a surgir como fragilidade bem disfarçada aos diagnósticos de objeção. A trama significante escolhe o delírio exilado nas circunstâncias para se fazer ver. Inúmeras incógnitas aguardam tradução em seus esconderijos. Fonte se originalidades a permanecer dissonância. Talvez a vida normal seja sua ilusão mais bem acabada.

Nesses percursos pela desmedida dos segredos, as intencionalidades transitam entremeios de um pretérito-futuro. Embora o deslize do traço, muitos são os inéditos à deriva. Inacreditáveis sugestões no esboço das imperfeições.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

A Formação do Filósofo Clínico*

A Filosofia Clínica possui características essenciais decorrentes da estruturação curricular e vivências no curso dos estudos e pesquisas, cumprindo papéis de ‘formação e especialização’. Fenômeno a desvendar talentos e propensões ao aluno em trajetória para o ser terapeuta. Descortinar singular em interseção através do processo em desenvolvimento às buscas do estudante.

A partir de alguns indícios em forma de padrão, inevitáveis reflexões vão surgindo. Apontamentos das percepções em aulas, clínicas didáticas e supervisão. Investigação crítica do processo de formação. Pretexto ao esboço compartilhado de algumas ideias. Elementos para qualificar aprendizagens ao exercício clínico. Atividade cúmplice com os sonhos e projetos de cada um na pós-graduação.

Um pré-requisito aos estudos é possuir um curso superior. Para ser filósofo clínico é imprescindível Filosofia. Eis aí uma referência inicial.

Como novo paradigma, a Filosofia Clínica experiencia perplexidades inevitáveis no contexto da história das terapias. Propõe ruptura e mudança ao apontar novos rumos. Um descortinar de horizontes, até então, tidos como inexistentes.

Eric Landowski refere: “(...) ao contrário do antropólogo, cujo procedimento parte do postulado de que os comportamentos dos grupos humanos, quaisquer que sejam eles - inclusive aqueles dos mais ‘selvagens’ – têm um sentido, ou, em outras palavras, obedecem a uma lógica própria que é possível descobrir e compreender, o senhor 'Todo Mundo', por sua vez, considera como adquirida a irracionalidade daqueles que pensam e agem em função de visões do mundo diferentes da sua.” (Presenças do outro, 2002).

Os pesquisadores em busca de fundamentações teórica e prática, para estudos em nova abordagem, deverão incluir, necessariamente, na sua bagagem de investigações, o convívio diário com a defesa intransigente da ciência normal. Anteriores estruturações ao redor de métodos consagrados. Muitas vezes até, tentando cooptar os novos modelos para as conformações já existentes.

As ideias e abordagens recém-descobertas não buscam justificar seus antecedentes. Apresentam-se como reflexão crítica e desconstrução. Oferecem opções ao apontar caminhos de contramão ou mão nenhuma. Propondo superação, revelam possibilidades até então desmerecidas como contradição insuperável. Uma fenomenologia em desdobramentos de originalidade descortina-se ao olhar do descobridor. Aprender com os livros e vivências constitui fundamento prático ao vir-a-ser cuidador.

Pensar em viver significa estar em conexão com o mundo real. Existência a elaborar singulares essências nas pessoas. Relação de sofisticada simplicidade na (re)invenção de cada dia. Os estudos realizados devem servir para oferecer escolhas ao estudante. Ponto de partida-chegada-partida para a matéria-prima do ser elaborar-se. Interseção afinada entre as abstrações e a vida empírica. Um referencial intuitivo-epistemológico para significar o existir.

Se as leituras se perderem na trama dos excessos conceituais, afastando a pessoa de uma ingênua sensibilidade, alma de artista, para com a alegria desses espantos diários, então é chegada a hora de fechar os livros. Ineficazes, a partir daí, para a lógica sem lógica dos cotidianos (re)começos. Muitos trazem consigo excesso de bagagem. Verdades bem arrumadas costumam não suportar os primeiros desafios da caminhada. Evidenciam problemáticas a serem trabalhadas nos encontros clínicos.

Elaborar o ser terapeuta pressupõe dedicação integral e permanente aos estudos. Uma relação afinada entre fundamentação teórica e fundamentação prática. A partir de onde as expressividades podem elaborar-se ao papel existencial de filósofo clínico.

Uma vocação autodidata é bem-vinda, assim como a produção de textos e artigos para compartilhar com colegas e professores. Percorrer clínicas, hospitais e manicômios em busca de aproximar o sonho da realização. Evidências de uma abertura interior na interseção com a vida.

A Filosofia Clínica costuma ser uma companheira ciumenta. Quer exclusividade e atenção por inteiro. Compartilhar seus estudos com a elaboração de dissertações e teses de mestrado e doutorado poderá dificultar significativamente o percurso do estudante.

O exercício de consultório se mostra como uma especialização em cada atendimento. Partindo de uma interseção em reciprocidade, a investigação dirige-se ao desconhecido das singularidades. Dedicando ao sujeito um compartilhar de alma leve para com suas autogenias.

Marie Beynon Ray escreve: “(...) ser a loucura não um episódio isolado numa vida, mas um modo de vida, que frequentemente vai desde o nascimento até a morte. Precisamos passar em revista toda a vida do doente, mesmo que se trate do ataque de uma doença infecciosa durante a infância.” (Médicos do espírito, 1965).  

A formação do filósofo clínico se inicia antes da especialização e prossegue bem depois da parte teórica. Circunstâncias únicas presentes na história de vida e estudos de graduação. Após a etapa teórica, os pré-estágios e a supervisão direcionam sua qualificação. Prosseguindo num contexto de formação continuada, os grupos de estudo se mostram eficazes. As publicações e demais espaços de interação e diálogo compõe um conjunto importante para melhorar ações clínicas.

As aulas são momentos insubstituíveis aos estudos. Possibilitam a diversidade investigativa e a troca. Olhar em perspectiva para a compreensão dos outros. Laboratório de convívio, crescimento e elaboração compartilhada ao vir-a-ser terapeuta. No entanto, as crises e obstáculos da formação parecem inevitáveis. Uma espécie de ensaio geral ao futuro exercício clínico do filósofo.  Atividade de cogestor nas crises e transformações partilhadas em consultório.

O momento de qualificação pessoal em pré-estágio constitui etapa indispensável à caminhada. Um tempo em que o estudante se experimenta conhecendo-se melhor. Transita por suas anterioridades. Investiga-se efetuando um trânsito por sua subjetividade. Qualifica-se nas clínicas didáticas. Busca familiarizar-se com sua estruturação quando em relação. Ponto de partida para aproximações em perspectiva com outros mundos.

Aprende-se com a escuta das falas e dos silêncios. Mediante olhares e percepções. Cheiros, temperos e sabores. Um indescritível que fica no ar. A energia de imprevisíveis mudanças. Uma relação em reciprocidade com as tormentas da alma. Feitiço em fase de crise na magia da terapia. Um ugar de colheita das matérias-primas para o exercício clínico do aprendiz de feiticeiro.

Jacob Bronowski ensina: “(...) o interessante é que se Erastus, com suas ideias sensatas, contrárias à mística, tivesse razão, a linguagem humana e toda comunicação entre os seres humanos, seria também impossível, porque, segundo ele, nada que sai de mim pode influenciar outra pessoa. No entanto, isso é exatamente o que faz o intercâmbio humano. O dom da imaginação é esse duplo movimento que manipula imagens na minha mente e as faz girar com uma espécie de força comunicativa que vai recriá-la na mente de outras pessoas; movimento que ocorre sempre que vemos uma obra de arte, lemos um poema ou falamos sobre um teorema.” (O olho visionário, 1978).    

Um pouco depois, a supervisão se oferece aos primeiros atendimentos. O aprendiz vai aprofundando leituras e práticas. Compartilhando dúvidas e inseguranças, fortalece e desenvolve suas expressividades e buscas. Nessa etapa já é terapeuta. A entrega do trabalho de conclusão é outro momento importante, onde as especialidades elaboram sua amarração teórica.  

Em Roberto DaMatta esse aspecto se destaca assim: “A importância do detalhe etnográfico, capaz de modificar todo um argumento verbalmente construído, e de descobrir como é fundamental o estudo consciente de certos problemas antropológicos. Descobri, então, que não bastava somente erudição (o fato de conhecer até a exaustão so autores e seus livros), mas que era preciso, antes de tudo, ‘saber’ a história do problema, como ele foi inventado como objeto de investigação, seus antecedentes e consequentes, o contexto do livro que expôs a teoria e seu autor.” (Relativizando – uma introdução á antropologia social, 2000).

Inexiste um mapa aos trajetos de crescimento pessoal em direção ao ser filósofo clínico. No entanto, algumas percepções constituem um padrão: não abreviar caminhadas, queimando etapas importantes como: leituras, aulas e estágios. Não desmerecer as crises de aprendizagem, uma companhia para a solidão compartilhada nos atendimentos. Alguns estudantes buscam através dos diplomas, registros e menções honrosas, uma autenticação para o ser terapeuta. Isso poderá valer tão pouco se a pessoa desmerecer suas circunstâncias de vida em interseção com o desenvolvimento do papel existencial. Os rituais de aprendizagem podem auxiliar. No entanto, parece inexistir legitimação longe dos singulares percursos de superação. Natureza dos talentos e aptidões em desdobrar-se no próprio sujeito.  

Tendo como ponto de partida as aulas, isso tudo prossegue bem depois do certificado “A”, através da formação continuada. Sem esquecer as pessoas! Essencial fonte de inspiração para a magia da vida acontecer.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – poéticas da singularidade”. Ed. E-Papers/RJ, 2007.

**Instagram: @helio_strassburger  

sábado, 11 de novembro de 2023

As Linguagens da Terapia*

O espaço compartilhável da clínica aprecia se constituir num acordo de singularidades. Um desses lugares onde a interseção dos personagens pode acontecer. O veículo capaz de transcrever essa objetividade fugaz é a linguagem. As palavras, ainda quando silenciadas, convidam, pela atualização discursiva, a ingressar nos inéditos cenários.  

Uma pronúncia das vontades costuma elencar o mundo como representação da pessoa. As palavras escolhidas para dizer, pensar, imaginar, constituem um aprendizado fundamental à atividade clínica do Filósofo. A aventura pessoal descrita na história de vida se utiliza de códigos linguísticos próprios.

Esta página em branco, inicialmente, rascunha-se em borrões. Seu vocabulário vai fazendo sentido na continuidade dos encontros, qualificação da relação, aprendizado da nova língua. Os deslocamentos da introspecção, compartilhados na hora-sessão, convidam a reviver eventos pelo viés atual. No entanto, ainda assim, o interior das palavras aprecia guardar um murmúrio, jamais decifrável por inteiro.

Se fôssemos utilizar a lógica das figuras de linguagem para descrever a natureza desses apontamentos discursivos, teríamos múltiplas perífrases, antíteses, metáforas, eufemismos, instâncias por onde o Filósofo Clínico busca estabelecer uma relação clínica. No entanto, cabe lembrar que um termo substitutivo, uma metáfora, por exemplo, pode ser mais do que substituição, pode se tratar do universo inteiro da pessoa. O esboço da criatividade, quando encontra um território confiável para se ensaiar, aprecia as margens da norma socialmente aceita. Essa imaterialidade costuma ser apontada e compartilhada pelo construto linguístico de cada um.

O evento terapia estabelece um território, delimita códigos de acesso, reivindica um aprendizado na perspectiva Partilhante. Nesse contexto, a nova abordagem se utiliza da matéria-prima oferecida por sua trama discursiva. Ao ser possível uma clínica para cada pessoa, tendo como ponto de partida a narrativa (bem apontada) da história de vida e o vislumbre da estrutura de pensamento, é possível antever a condição humana refugiada nos desvãos do diagnóstico, das tipologias.

Assim é possível acolher e compreender o teor dos princípios de verdade. Ao Filósofo Clínico cabe encontrar o chão onde a pessoa se desloca existencialmente, onde exercita suas circunstâncias existenciais. Um ponto de partida para acessar o dialeto recém chegando. Os episódios significativos de cada sujeito utilizam a mesma fonte estrutural para se dizer.

Nesse sentido, os desdobramentos da atividade clínica, sua sustentação e qualificação, são reféns de uma correta leitura desse dicionário muito íntimo. O dado literal, ao proteger a versão da pessoa, também oferece a intencionalidade discursiva, os tópicos determinantes, o acesso à subjetividade.

É na linguagem compartilhada nas sessões que se faz possível um vislumbre do lugar de onde se diz o que se diz. Cada um, mesmo quando não saiba, exercita seu cotidiano num contexto único. Assim, um dos primeiros indícios de ressignificação pessoal, em clínica, é a mudança na escolha e uso das palavras.

Na sutileza da frase inacabada, é possível se anunciar um rascunho da estrutura de pensamento em movimento. O ponto de vista Partilhante, ao se deixar acessar pelos termos agendados, reivindica um leitor de raridades. O fenômeno terapia aproxima os papéis existenciais da clínica com a arqueologia. Sua estética cuidadora, a descobrir e proteger inéditos, mescla saberes para acolher as linguagens da singularidade.

*Hélio Strassburger in "A Palavra Fora de Si - Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem". Ed. Multifoco. RJ. 2017

**Instagran: @helio_strassburger 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Hermenêutica compreensiva*

Quando se pensa ou busca trabalhar com hermenêutica podem surgir várias dúvidas sobre o tema. Talvez a distinção mais significativa para a Filosofia Clínica esteja entre uma hermenêutica interpretativa e uma hermenêutica compreensiva.

De forma introdutória, a hermenêutica interpretativa (também usada nas abordagens tradicionais da terapia) foca na busca por entender a mensagem com base no que já se sabe sobre o tema. Tem como ponto de partida um saber-poder estabelecido por definições bem construídas, ajustadas e fundamentadas, com base na tradição. Trata-se de um saber cristalizado, que confere ao texto existencial diante de si uma classificação previamente analisada, definida. Características reconhecidas mesmo antes de um encontro se realizar, demonstrando que a expressão do sujeito, de antemão, já está determinada.

Em outras palavras, um fundamento estabelecido para reconhecer no paciente alguma patologia, tendo como referência uma lógica de manual, destituindo a pessoa de seu devir inédito, impregnado de possibilidades, e que poderia transgredir os limites de sua condição em desenvolvimento, não fossem as interpretações do profissional (via agendamentos, distorções).

Talvez, se fosse permitido ao paciente exercitar suas lógicas desconsideradas, cogitar suas hipóteses absurdas, numa interseção libertária, não permitindo ao profissional Psi convencê-lo de que suas verdades e representações constituem alguma forma de loucura, fosse possível uma aproximação com a Filosofia Clínica.

Nesse sentido esclarece Gadamer: “A compreensão jamais é um comportamento subjetivo frente a um objeto dado, mas frente à história efeitual, e isto significa, pertence ao ser daquilo que é compreendido” (Verdade e método, 1997).  

A hermenêutica filosófica, ao contrário, possui como característica uma atitude compreensiva em vias de construção compartilhada. Seu ponto de partida é uma dialética do encontro, uma relação aprendiz. Um saber que tem um não saber como ponto de partida. Aqui precisamos de uma adequação metodológica para fundamentar essa nova abordagem: a Filosofia Clínica. Interseção em que se reivindica, pelo filósofo, um constructo de eterno recomeço, para acolher as narrativas da raridade.

Ainda Gadamer: “Somente através do esquecimento é que o espírito recebe a possibilidade de uma total renovação, a capacidade de ver tudo com os olhos recém-abertos, de maneira que o que é velho e familiar se funde com as novidades que se veem em uma unidade de várias estratificações.” (Verdade e método, 1997).

Com esse novo paradigma, especialmente em alguns trabalhos posteriores aos escritos de Lúcio Packter, é possível encontrar subsídios teóricos e práticos a sua fundamentação e desenvolvimento, como uma terapia da liberdade. Como se sabe, essa nova abordagem, como obra aberta, permanece viva e sujeita a contribuições de quem faz dessa atividade uma prioridade de vida.

É o caso, por exemplo, da importância da hermenêutica compreensiva, como fundamento teórico e prático, especificamente a partir de Hans-George Gadamer em Verdade e método. Essa diferenciação ajuda a compreender a abertura para um acolhimento do fenômeno existencial diante do clínico.

Se um profissional (psiquiatra, psicólogo) aprendeu que a pessoa diante de si é um objeto de estudo sujeito a intervenções, um ser passível de avaliação diagnóstica, prognóstica, de medicalização, então será isso que sua percepção, previamente condicionada, vai enxergar. As pessoas não vão se mostrar, a esse olhar, como algo único, uma singularidade, mas como uma tipologia ou doença, algo a ser medicado, contido pela lógica do hospício e dos psicofármacos. Questão de método em Ciências Humanas!

Gadamer ensina: cautela, respeito, proximidade para com a condição existencial alheia ao mundo como vontade e representação do filósofo. Apresenta a hermenêutica filosófica como possibilidade de se conhecer determinada pessoa em seus dias de ressignificação. Uma atitude compreensiva é qualitativamente diferente do enquadramento tipológico, sendo este a instituição de uma clausura, de uma camisa de força metodológica, que transforma uma pessoa livre e em processo de mudança num objeto, em uma peça decorativa no canto da sala.

Compreender significa estar junto, ao lado, encolher distâncias, aproximar. Entender (epistemologicamente) inclui um distanciamento, uma trama conceitual que se afasta da originalidade do partilhante, como se ele fosse o portador de uma doença contagiosa, e isso deforma sua expressividade, cria obstáculos para acessar sua originalidade. Trata-se de uma relação fria e asséptica.

Anteriormente, em Filosofia Clínica, tínhamos o texto ‘Verdade e método’, de Gadamer, para fundamentar as verdades subjetivas (pré-juízos), como se estruturam, se desenvolvem, se sustentam, delimitando o lugar subjetivo.

No entanto, aqui estamos avançando em direção a outro aspecto desta obra, ou seja, a uma hermenêutica filosófica capaz de efetivar atitudes compreensivas, de estar com o outro em seus desdobramentos existenciais, qualificando as convivências clínicas como instantes de desconstrução, reconstrução, a partir das conjugações e demais possibilidades da terapia.  

Não tomar o seu lugar, mas estar junto, na desmedida em que o partilhante permita visitas ao seu jardim existencial. Aprender a linguagem por onde se diz, seus limites e deslimites, o alcance de sua régua existencial, e tudo que for aparecendo (fenomenologicamente) na dialética dos encontros.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.

**Instagram: @helio_strassburger

sábado, 21 de outubro de 2023

O segredo das palavras*

A espécie de texto que se tem em mente é uma singularidade. Sua estrutura pressupõe a conjugação, nem sempre linear, entre o horizonte discursivo do autor e sua competência em transgredir as páginas conhecidas. Um peregrino das palavras em busca da fonte onde nascem as intencionalidades. 

Com o vocabulário comum, em alguns casos, será possível realizar aproximações, noutros sequer tangenciar as origens da expressividade: os exílios, desvãos, periferias e derivações. Ao transcrever esses conteúdos, na parcialidade de um texto qualquer, é possível entender a razão dos seus segredos serem indecifráveis por inteiro.

Num processo de escritura, sua concepção descreve algo mais, tendo como ponto de partida uma mente repleta de vírgulas, devaneios criativos, irreflexões. Esses escritos nem sempre serão compreendidos numa só mirada. Seus deslizes, lacunas e desestruturas anunciam algo por vir. São vestígios daquilo que não se consegue acessar num primeiro instante. Uma estrutura assim pensada mescla sonho e realidade em inéditos discursos existenciais. Há que se ter uma peculiaridade metodológica - borogodó - para decifrar o chão de onde partiu e se desenvolveu.

Maurice Blanchot contribui: “(...) Uma frase não se contenta com desenrolar-se de maneira linear; ela se abre; por essa abertura, sobrepõem-se, soltam-se, afastam-se e juntam-se em diferentes níveis de profundidade, outros movimentos de frases (...)”. (O livro por vir, 2005, pág. 347).

Essa condição do autor pode reapresentar eventos marginais, desconhecidos, esquecidos, em sua estrutura de pensamento. Os inusitados usos da palavra ampliam as fronteiras do que se conhece. Uma expressão utilizada num contexto, quando afastada de suas origens, ao ser ela mesma já é outra.

Escrever é conjurar o vocabulário conhecido noutras direções. Um saber com sabor de terra nova acolhe a mensagem nas garrafas do náufrago. Sua condição, ao ampliar um foco de luz errante, emancipa territórios, significa a linguagem dos recomeços. Sua alternância dos métodos de leitura (analítica, fenomenológica, dialética...), evidencia um conhecimento refém de suas crenças, atribuições, competências. Assim pode ser legível esse lugar de exceção de onde o texto partiu.

Maurice Blanchot: “(...) A obra exige que o homem que escreve se sacrifique por ela, se torne outro, se torne não um outro com relação ao vivente que ele era, o escritor com seus deveres, suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar vazio e animado onde ressoa o apelo da obra.” (O livro por vir, 2005, pág. 316).

O segredo das palavras reside na rasura da página em branco. Quando algo se escreve, atualiza o devir que o legitima, para, logo depois, perseguir novos caminhos. Assim, a perspectiva da literalidade como sentido único, se desconstrói. Seu saber conjuga-se em enredos de realidade substitutiva.

Nesse sentido, os deuses da escritura costumam ser cúmplices no desenvolvimento do espírito. Os achados nas mais diversas fontes de inspiração e estilos literários, costumam adicionar ingredientes à vida de cada um. A paixão dominante de ler e escrever alimenta o fogo dos dias, aquece o frio das alturas, desaloja refúgios subjetivos. As rotas para esse encontro, desconstroem a figura do escritor e do leitor exilados em suas páginas. 

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica e Literatura – Conversações”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2023.

**Instagram: @helio_strassburger 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A Filosofia Clínica e o robô de escuta*

O site: www.mittechreview.com.br publicou em janeiro/2022: “Terapeutas podem usar Inteligência Artificial para melhorar os resultados das terapias”. O artigo foi assinado pelo: MIT- technology review.

Inicialmente a proposta é de auxílio ao trabalho clínico do profissional da área PSI. Trata-se de uma pesquisa para saber como a terapia funciona. Uma verificação das linguagens utilizadas na hora clínica. Segundo o artigo: “busca identificar as expressões e devolutivas de resposta mais eficazes no tratamento de diferentes distúrbios”. Oferece uma “automação dos princípios ativos da terapia”.

O projeto se desenvolve em universidades como: Washington e Pensilvânia (EUA), numa parceria da IA – inteligência artificial com a psicologia. Diz assim: “Busca-se desvendar os segredos de porque alguns terapeutas obtêm melhores resultados que outros (...) a tecnologia funciona semelhante a um algoritmo de análise de sentimentos”.

Prossegue afirmando: “a IA converte a linguagem de uma sessão em código de barras (...) busca mostrar quanto tempo foi gasto em terapia construtiva versus bate-papo geral.” Na sequência: “(...) desenvolver um software de terapia para ajudar terapeutas a padronizar as melhores práticas. Propõe monitorar os atendimentos. (...) o algoritmo aprendeu a abordagem da TCC (terapia cognitivo comportamental)”. O artigo fala em: “proporções, taxas, métricas, validação... (...)” indica: “devemos seguir protocolos para evitar improvisos. (...) podemos entrar numa era de medicina de precisão em psicologia e psiquiatria (...)”. A investigação deixa escapar - nas entrelinhas - que as terapias da tradição estão despreparadas para cuidar da vida humana.

A ideia não é nova. Em meados dos anos 1990, em Porto Alegre, um mestrando em análise de sistemas ofereceu algo semelhante. Seu software prometia “diminuir o tempo gasto nos atendimentos”. Segundo ele: “aliviaria o trabalho” dos Filósofos Clínicos. Após algumas entrevistas, o jovem profissional entendeu que nosso método era diferente. Ficou contrariado pelo fato de sua ideia não dar conta da Filosofia Clínica, basicamente, por se tratar de uma abordagem singular, oferecendo uma terapia para cada pessoa, sem a camisa de força das tipologias, classificações, hermenêuticas apriorísticas.  

Nos dias de hoje, ao ver essa hipótese - em nova maquiagem - se reapresentando, com o enorme investimento para viabilizá-la, percebo - mais uma vez - o quanto a Filosofia Clínica é diferenciada. Sob muitos aspectos ininteligível - mesmo a espionagem tecnológica - ao pessoal que procura em blogs, textos da internet, palestras, subsídios para montar suas estratégias. Por outro lado, a partir de uma robotização da hora-clínica, essa iniciativa deverá acelerar a desconstrução das metodologias de base PSI. 

Um olhar atento pode pensar: como replicar eventos singulares, incomuns, como os desdobramentos da hora-sessão em Filosofia Clínica numa linguagem de algoritmos? A nova abordagem terapêutica, ao atuar com pressupostos a posteriori, reivindica um profissional que tenha borogodó (mescla de aptidão, talento, sensibilidade...) para exercitar uma clínica aprendiz. Esse conceito por si só, já interdita a possibilidade de se mapear, criar protocolos, estatísticas, métricas de validação, devido ao caráter inédito dos atendimentos.

O novo paradigma oferece múltiplos fatores que escapam a uma lógica de robôs de conversa. Seu constructo metodológico oferece atenção e cuidados singularizados aos partilhantes, encontrando em seu próprio discurso existencial, uma referência viva, única, irrepetível. Não se presta a ser refém de softwares, algoritmos, código de barras. A pesquisa americana, ao buscar um padrão nas melhores técnicas, engessa e robotiza o cuidado com humanos. Talvez essa proposta sirva a países de vocação colonial.  

A transcrição da linguagem utilizada pelo filósofo clínico com um partilhante, não irá servir para outro atendimento, pois além de cada pessoa ter um uso próprio do seu vocabulário, a qualidade da interseção não é a mesma, e o filósofo efetua ajustes singularizados de acordo com os desdobramentos da hora-sessão. Um software não consegue imitar essa modalidade terapêutica, pois teria de ser um humano com borogodó para intervir em um processo não linear.

Essa tese de padronização comportamental através de um código de barras, para acompanhar sujeitos em seus momentos de ressignificação existencial, além de desumana e perversa, visa a manipulação e o controle da vida humana. Sob muitos aspectos, expõe a fragilidade das técnicas de base PSI.

Noutras palavras, a partir dessa estratégia denominada: “robô de conversa”, as metodologias que trabalham com a bíblia DSM serão reféns da IA e sua programação para mediar atendimentos. A pesquisa americana deverá mostrar, após alguns anos ‘faturando alto’ com suas engenhocas, se tratar de mais uma investida para ‘ganhar tempo e dinheiro’, multiplicando espíritos de rebanho. No caso de bem-sucedida poderá ser o fim da raça humana como espécie.

*Hélio Strassburger

@helio_strassburger (Instagram)

**Texto publicado na edição de outono da revista da Casa da Filosofia Clínica.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Pretéritos Futuros*

"Mas a função do filósofo não será a de deformar o sentido das palavras o suficiente para extrair o abstrato do concreto, para permitir ao pensamento evadir-se das coisas?”

                                                                         Gaston Bachelard                                            

A concepção de um esboço para traduzir ideias em atitudes poderia significar a vida em retrospectiva de amanhãs. Um lugar onde se alcançaria a fonte da imaginação a inundar a vida com seus originais.

A linguagem do futuro pretérito busca superar a antítese entre o vivido e sua descrição. Existem pessoas aprisionadas nalguma página de suas vidas. Em uma dialética entre passado, presente e futuro, nem sempre conseguem realizar uma desconstrução de qualidade, capaz de alterar aquilo que já passou. Não é comum transitar com leveza, desenvoltura entre um lugar e outro de sua historicidade.

Partindo do viés singular, numa percepção reflexiva da realidade plural, é possível desconstruir as ideias conhecidas. Permitir o acesso ao novo vocabulário, dado atual sobre as antigas verdades. Nesse sentido, exercitar a flexibilidade existencial pode ajudar, deixando-se surpreender com os eventos de transgressão.

É possível desfocar a atenção, permitir outros movimentos à intencionalidade. Um ensaio para anunciar instantes de reencontro, uma nova versão existencial. Entrementes, o ponto de vista subjetivo costuma ser impactado por aquilo que vê, ouve, sente, vivencia, adaptando roteiros em uma lógica de porvir retroativo.

Talvez ao reconsiderar as miragens do instante, possa-se conceber a aproximação de um embate da ilusão de continuidade com sua ruptura pelo viés do fato novo. Na representação de cada um, a especulação sobre os novos endereços existenciais pode reajustar reminiscências.

Com as lógicas do improvável, através da palavra fora de si, é possível descrever exílios, realizar utopias, acolher singularidades. Um roteiro pela natureza incrível de todas as coisas, por onde se insinua uma arte de desvendar horizontes, resgatar dialetos marginais.

Nesse vão das idas e vindas, a conjugação revive um tempo que ainda não chegou. Uma semiose dos múltiplos jogos de linguagem. Esta aprendizagem com a voz dos rascunhos sugere um quase delírio. Numa estrutura fugaz, refugiada nas entrelinhas do cotidiano, é possível ser a incompletude a essência de viver.

*Hélio Strassburger in “A palavra fora de si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.

domingo, 1 de outubro de 2023

Introdução*

Os textos a seguir constituem uma noção e um convite à Filosofia Clínica. São constituídos de anotações e reflexões de um consultório em seus dias de atenção à vida. Notas para atualizar o discurso do novo método. Uma aproximação com a incompletude dos processos existenciais em cada pessoa, num vislumbre de seu desenvolvimento na atividade clínica.

Existem fundamentos que se integram à terapia do filósofo, como a fenomenologia dos discursos existenciais, pelos quais o partilhante descreve-se em versão própria, num convívio com as rotinas do inesperado; a hermenêutica compreensiva; o exercício da reciprocidade com os jogos de linguagem internados em cada um, permitindo acessar a singularidade em seus dias de processo; bem como o estruturalismo, a considerar e incluir a relação das partes com elas mesmas e o todo que a constitui. Uma dica para acessar a chave de leitura da estrutura de pensamento é identificar pro onde a pessoa se diz, qual sua semiose preferida.

A reconstituição de determinados eventos passados, com base numa leitura atual, concede ao sujeito partilhante a possibilidade de reescrever sua história. Cuida-se, entre outros aspectos, da reconstrução de alguns momentos significativos, em que o ser filósofo clínico se multiplica no acolhimento e na superação das contradições, tecendo seus dias numa interseção aprendiz. Sua prática oferece uma clínica da não obviedade. Ao acolher as vírgulas e reticências da singularidade, leva em conta as narrativas de cada versão. Se tivesse de escolher uma proposta de trabalho, numa terapia libertária, esta seria a busca do partilhante em recomeçar, para devolver o protagonismo a um sujeito, até então, distante de seu melhor. As tramas discursivas de consultório, no ir e vir das interseções, possuem a condição para realizar inúmeros deslocamentos, oferecendo ao partilhante outras vivências – uma estética para resgatar ângulos esquecidos, desconhecidos de si mesmo.

Seu eixo metodológico reconhece e acolhe as tratativas de emancipação das poéticas da singularidade, refugiadas em cada discurso existencial. Antes de localizar alguém existencialmente, pode ser preciso lidar com a inquietude dos momentos preliminares. São ensaios para algo indecifrável por inteiro, em que o filósofo clínico convive com uma estrutura de fenômenos multifacetados.

Ao filósofo compete aperfeiçoar sua aptidão de sentir e perceber os rastros do instante precursor, nos quais se apresentam as originalidades sob seus cuidados. Esse esboço compartilha análises, reflexões, críticas e algo mais sobre sua atividade. Talvez um diário de incompletudes, em que suas narrativas apresentam íntima relação com as práticas de consultório.

Com essa abordagem, a polifonia das crises anuncia sua transição entre um e outro padrão autogênico. Constitui o fenômeno da desrazão em um território privilegiado ao fazer terapêutico do filósofo. Esse estado de coisas costuma se apresentar numa dialética singular, em que o partilhante se desloca e experimenta-se em muitas direções conhecidas e/ou desconhecidas, num processo de reedição pessoal, conduzindo e atualizando sua memória aos dias atuais, formando uma espécie de renascimento a cada novo dia.

A abertura proporcionada pela via da interseção realiza um encontro de qualidade imprevisível, em que o vocabulário existencial pode ampliar-se. Ao decifrar a matéria-prima com a qual irá trabalhar, o filósofo, pela via da construção compartilhada, terá a possibilidade de localizar o território em que realidade e ficção se integram.

Seu constructo metodológico, tendo como ponto de partida a redução fenomenológica, vislumbra uma região de aspecto estranho. Quando um filósofo descreve essa observação investigativa, está propondo compreender e dialogar com o contexto partilhante. Nesse sentido, a nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de seu ser sujeito em ação.

Este texto não é autobiográfico, embora seja reconhecível o traço da autoria em suas crenças, buscas e representações no curso de seu discurso. Reivindica, isso sim, oferecer uma atualização de leituras, contribuição aos estudos e o desenvolvimento do novo modelo terapêutico. Essa versão é a de quem teve o privilégio de conhecer e conviver com seu nascimento, por meio dos primeiros atendimentos, das críticas, de preconceitos, da conjugação dos sonhos e da sua proposta para oferecer algo diferenciado: a superação do entendimento cristalizado pelas instituições oficiais.

Talvez a dificuldade de alguns especialistas acadêmicos de entender a abordagem da Filosofia Clínica resida no grau do seu óculos epistemológico, o qual costuma embaçar diante de novidades muito próximas do olhar. Ao visitar a perspectiva de alguns mestres universitários, é possível compreender suas dificuldades com os novos paradigmas, e isso pode ser compreendido por um exemplo: o novo método acolhe, em sua matriz teórica e prática, filosofias tão díspares e – aparentemente – contraditórias, como a Fenomenologia e a Analítica da Linguagem. Logo, é impossível entender esse fundamento tendo a visão ajustada para reconhecer sempre as mesmas verdades.

Um caminho para acessar os universos singulares, é desenvolver a atitude de espanto diante dos fenômenos que se apresentam, observando e investigando, para saber mais. É, também, compreendê-la como uma abordagem clínica em deslocamento, que se move por várias etapas do constructo metodológico, associando fundamentos que, teoricamente, seriam irreconciliáveis, se entendidos como gavetas. Na prática da Filosofia Clínica, se conjugam horizontes na dialética das sessões.

Fico pensando nas dificuldades que eu teria se tivesse optado por alguma outra formação clínica, talvez impregnada de classificações, tipologias, agendando patologias, a partir de uma leitura predeterminada que desqualifica conteúdos inéditos, presentes nas narrativas das pessoas, pelo foco de certo saber que, antecipadamente, já tem seu eixo interpretativo definido, distorcendo o fenômeno humano singular.

Em Filosofia Clínica se (re)conhece e há a prática de algo diferente, ou seja, a matéria-prima com a qual se trabalha é encontrada no contexto partilhante, a partir das visitas autorizadas aos seus jardins subjetivos. Um lugar inicialmente desconhecido, no qual o filósofo precisa ajustar seu padrão autogênico e ultrapassar os limites da primeira impressão, aguçando sua escuta, visão e percepção de base fenomenológica para acessar os jogos de linguagem de cad partilhante, qualificando a interseção em busca de sua originalidade e reverenciando a prosa poética desses pretextos desmerecidos. Assim é possível constatar e compreender o ser inacessível como uma das qualidades da subjetividade, classificada pelas terapias da tradição nalguma forma tipológica, desvirtuando a atividade clínica.  

Nesse vislumbre da clínica do filósofo, há a descrição de um papel existencial singular, o qual se ajusta - caso a caso – nos eventos de consultório. Um lugar de acolhimento às pronúncias daquilo, até então, desmerecido, que revela um protagonismo de si mesmo com os outros e, dos outros, com outros. Através da interseção cuidadora se esboça certa elaboração, pela qual se faz possível a ressignificação pessoal. E é importante o preparo para uma convivência com o inesperado dos atendimentos, semelhante a encontros em qualquer lugar, em um dia qualquer.

A proposta terapêutica esboçada nestas páginas se traduz em um lugar de acolhimento à errância, à desestruturação pessoal, como possibilidade de reescrever caminhos e integrar o sujeito com o seu melhor. Significa qualificar a intervenção cuidadora, em um chão oferecido pelo próprio partilhante. Me agrada saber que tenho meios, via construção compartilhada, para contribuir com a caminhada existencial das pessoas, seja pelos recursos identificados em sua estrutura de pensamento ou elaborados para seu melhor funcionamento pessoal. Posso encontrar nas palavras pronunciadas, caladas, uma fonte de múltiplas expressões, pela qual se estabelece a cumplicidade aos rascunhos do partilhante. Um desses subterfúgios em que a vida ensaia seus inéditos.

A clínica pode ser reconhecida como um espaço para compreender uma incompletude discursiva, ou uma crise, características importantes aos recomeços. As pessoas aprisionadas em manicômios ou em outra forma qualquer de interdição, possuem uma estranha habilidade para rasurar o quadro da normalidade, muitas vezes pelo simples fato de existir. Uma nova referência e um novo contexto podem ajudar as pessoas exiladas do convívio social, oferecendo uma zona de conforto existencial mais próxima de si próprias, e que consiga que exercitem sua condição singular irrepetível.

Nesse sentido, o livro reapresenta alguns fundamentos do novo paradigma, desde os primeiros anos até hoje. Os atendimentos iniciais, as repercussões nos princípios de verdade, as críticas e superações, os aprendizados, são essenciais para entender seu nascimento e desenvolvimento. As páginas a seguir propõem qualificar práticas e contribuir com a pesquisa e os processos de conhecimento. Nelas se pode, dentre outras coisas, decifrar os fenômenos da atividade clínica, em que eu e o outro, pela via da interseção, constituem algo mais.

É importante lembrar de que não se aprende Filosofia Clínica com textos (de fonte duvidosa) na internet, os quais estimulam equivocidades e desconhecimento, ou seja, um não saber. O convívio entre professor-auno é indispensável ao processo de ensino-aprendizagem, e as boas ferramentas da tecnologia podem ser uma base aos estudos.  

A proposta, aqui, é diminuir o número de ignorantes diplomados. Para além das aulas da especialização, após a graduação em Filosofia, destaca-se a adição de leituras, filmes, grupos de estudo, colóquios e cafés filosóficos clínicos, terapia pessoal e supervisão. E esta concepção é realidade na Casa da Filosofia Clínica.

Com esses textos, são oferecidos alguns manuscritos recuperados das múltiplas interseções entre calmaria e tempestades. Uma descrição de nuances de acolhimento e cuidado com o ritmo das estações de cada um, seus desdobramentos, as singularidades e a inédita condição de redigir seus originais. Quiçá seja um convite para as pessoas saberem mais sobre a clínica do filósofo.

Boas leituras e releituras!

*Hélio Strassburger in Introdução a obra: “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.   

** Instagram: @helio_strassburger