“Já não é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio”
Gilles Deleuze
O pátio do hospício é um desses
lugares onde o extraordinário esboça preferências. Muros, paredes e vigias
atualizam a contenção do corpo, para que a alma consiga refúgio em devaneios de
transgressão. Institui arranjos de novidade na arte de existir sem razão.
Na invisibilidade dos
deslocamentos o compartilhar nem sempre é possível. Talvez por isso, no sujeito
delirante, a realidade apareça disfarçada de irrealidade. Na estrutura
inquieta, onde as visões dialogam entre si, uma vida inteira pode ser
insuficiente para alguma tradução.
A desarticulação das palavras se
faz cúmplice ao pensar contraditório das in-completudes. Algo mais nos anúncios
desses percursos da introspecção. Talvez alguma indicação à transgressão em
torno das paredes do asilo. Mirante às perspectivas fantásticas da natureza
humana encarcerada pelas grades da epistemologia da tradição.
É de saber incerto o que leva as
pessoas a buscar abrigo nas lonjuras incomunicáveis dentro de si mesmas. Acaso
no território livre das abstrações, onde o aprisionamento nos rituais da
normalidade pode se desfazer. Prosperar das diferenças entre a experiência
sensível e seus paradoxos. Os segredos indescritíveis seguem à espera de
exploradores.
Quiçá a vertigem possa anteceder
essas aproximações com o inexplicável da pessoa internada. Enquanto isso, as
incógnitas da loucura permanecem à margem, em refúgios de aparente sem sentido.
A força narrativa dessas ilegibilidades desloca-se por universos de
ambiguidade.
Deleuze refere: “(...) a
interioridade não para de nos escavar a nós mesmos, de nos cindir a nós mesmos,
de nos duplicar, ainda que nossa unidade permaneça”. (Crítica e clínica, 2004).
Perspectiva delirante a denunciar pré-tensas realidades compartilhadas. Ponto
de vista onde os consensos se veem ameaçados.
Ao transgredir o embaçamento do
visar normal, surgem outras derivações: uma poética dos milagres aprecia surgir
como espetáculo, onde a pluralidade dos personagens exila, momentaneamente, o
sujeito originário para descortinar seus outros.
Suspeitas de múltiplas origens
procuram algum sentido ao não ser elaborado nas lógicas da esquiva. Diálogos
com as formas do estranho descobrem inéditos percursos por trás dos velhos
mapas. Os fenômenos integrantes da singularidade se anunciam nas tramas
significantes dos relatos. Ao tentar entender a origem dessas viagens, um
vislumbre cosmopolita aponta indícios de terra estrangeira.
A rede de saberes incompleta-se
por todo lado. Em muitos casos, a estrutura caótica, por seu desvalorizada
socialmente, institui novidades, mesmo quando socializa impressões de
espectador numa cena que não lhe pertence. Nos convívios de marginalidade, a expressividade
decadente denuncia esconderijos onde as palavras não conseguem chegar.
O sujeito subverte as tramas e
desloca forças entremeios de certeza, vigilância e domesticação. Atribui-se
raridade e funda algo mais, até então calado na estrutura inconformada ao olhar
de multidão. Rituais incontáveis transgridem as antinomias de lucidez e
submissão.
Um rastro de saber desarrazoado
sugere outras lógicas aos traços de surrealidade. Matéria-prima em delírios de
re-invenção, a descontinuar-se no vocabulário errante que se faz meio de
apresentação, exploração e descoberta.
Em Félix Guattari: “Os lapsos, os
atos falhos, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Nas
se trata de interpretá-los. Trata-se antes de detectar sua trajetória para ver
se podem servir de indicadores de novos universos de referência suscetíveis de
adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação.” (Caosmose -
Um novo paradigma estético, 2000).
As falas da descontinuidade
parecem preferir a instabilidade dos paradoxos, para vislumbrar as quimeras da
insensatez. A improvável fala de aparente sem nexo qualifica interseção com o
transbordar desses instantes de perdição e encontro. Insanidade ao olhar
classificador do alienista. Estética provisória a se instaurar no início
sem-fim das conversações com o exagero de si mesma. Ao ensimesmar-se a
singularidade se desconcerta para ser exceção.
A farmácia interior também se
qualifica nos ensaios do viajante. Distorção a perder de vista na relação com
suas anterioridades. Fenômenos de extravagância ao compartilhar da terapia.
Pessoas atormentadas por fantasmas indescritíveis podem enfraquecer seus
temores e inseguranças, na compreensão desses vislumbres de razão alterada.
Propõe compartilhar o depois de amanhã ainda inexplicável ao presente. A
história reescrita faz surgir atributos de profecia, até então desconhecidos
para si mesma.
Labirintos excepcionais denunciam
outras verdades, entrevistas na realidade delirante. Inauditos discursos
assopram sentidos divergentes aos ditos de euforia.
Jacques Derrida insinua: “Como o
deserto e a cidade, a floresta, onde formigam os signos amedrontados, diz sem
dúvida o não-lugar e a errância, a ausência de caminhos prescritos, a ereção
solitária da raiz ofuscada, fora do alcance do sol, em direção a um céu que se
esconde. Mas a floresta é também, além da rigidez das linhas, das árvores em
que se agarram às letras enlouquecidas, a madeira que a incisão poética
fere.” (A escritura e a diferença,
2005).
O Filósofo Clínico se faz
cúmplice, em seu papel existencial, na busca de um alívio compartilhado, para o
alvoroço dessas reestreias do sujeito. Embora isso tudo reivindique nomes ou
apelidos, quase sempre permanece como saber obtuso. Poéticas de interrogação
alternam-se na obscuridade das lacunas.
Focos de miragem na investigação
das impermanências. Mutante a surgir como fragilidade bem disfarçada aos
diagnósticos de objeção. A trama significante escolhe o delírio exilado nas
circunstâncias para se fazer ver. Inúmeras incógnitas aguardam tradução em seus
esconderijos. Fonte se originalidades a permanecer dissonância. Talvez a vida
normal seja sua ilusão mais bem acabada.
Nesses percursos pela desmedida
dos segredos, as intencionalidades transitam entremeios de um pretérito-futuro.
Embora o deslize do traço, muitos são os inéditos à deriva. Inacreditáveis
sugestões no esboço das imperfeições.
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-papers/RJ. 2009.
**Instagram: @helio_strassburger