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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

A Formação do Filósofo Clínico*

A Filosofia Clínica possui características essenciais decorrentes da estruturação curricular e vivências no curso dos estudos e pesquisas, cumprindo papéis de ‘formação e especialização’. Fenômeno a desvendar talentos e propensões ao aluno em trajetória para o ser terapeuta. Descortinar singular em interseção através do processo em desenvolvimento às buscas do estudante.

A partir de alguns indícios em forma de padrão, inevitáveis reflexões vão surgindo. Apontamentos das percepções em aulas, clínicas didáticas e supervisão. Investigação crítica do processo de formação. Pretexto ao esboço compartilhado de algumas ideias. Elementos para qualificar aprendizagens ao exercício clínico. Atividade cúmplice com os sonhos e projetos de cada um na pós-graduação.

Um pré-requisito aos estudos é possuir um curso superior. Para ser filósofo clínico é imprescindível Filosofia. Eis aí uma referência inicial.

Como novo paradigma, a Filosofia Clínica experiencia perplexidades inevitáveis no contexto da história das terapias. Propõe ruptura e mudança ao apontar novos rumos. Um descortinar de horizontes, até então, tidos como inexistentes.

Eric Landowski refere: “(...) ao contrário do antropólogo, cujo procedimento parte do postulado de que os comportamentos dos grupos humanos, quaisquer que sejam eles - inclusive aqueles dos mais ‘selvagens’ – têm um sentido, ou, em outras palavras, obedecem a uma lógica própria que é possível descobrir e compreender, o senhor 'Todo Mundo', por sua vez, considera como adquirida a irracionalidade daqueles que pensam e agem em função de visões do mundo diferentes da sua.” (Presenças do outro, 2002).

Os pesquisadores em busca de fundamentações teórica e prática, para estudos em nova abordagem, deverão incluir, necessariamente, na sua bagagem de investigações, o convívio diário com a defesa intransigente da ciência normal. Anteriores estruturações ao redor de métodos consagrados. Muitas vezes até, tentando cooptar os novos modelos para as conformações já existentes.

As ideias e abordagens recém-descobertas não buscam justificar seus antecedentes. Apresentam-se como reflexão crítica e desconstrução. Oferecem opções ao apontar caminhos de contramão ou mão nenhuma. Propondo superação, revelam possibilidades até então desmerecidas como contradição insuperável. Uma fenomenologia em desdobramentos de originalidade descortina-se ao olhar do descobridor. Aprender com os livros e vivências constitui fundamento prático ao vir-a-ser cuidador.

Pensar em viver significa estar em conexão com o mundo real. Existência a elaborar singulares essências nas pessoas. Relação de sofisticada simplicidade na (re)invenção de cada dia. Os estudos realizados devem servir para oferecer escolhas ao estudante. Ponto de partida-chegada-partida para a matéria-prima do ser elaborar-se. Interseção afinada entre as abstrações e a vida empírica. Um referencial intuitivo-epistemológico para significar o existir.

Se as leituras se perderem na trama dos excessos conceituais, afastando a pessoa de uma ingênua sensibilidade, alma de artista, para com a alegria desses espantos diários, então é chegada a hora de fechar os livros. Ineficazes, a partir daí, para a lógica sem lógica dos cotidianos (re)começos. Muitos trazem consigo excesso de bagagem. Verdades bem arrumadas costumam não suportar os primeiros desafios da caminhada. Evidenciam problemáticas a serem trabalhadas nos encontros clínicos.

Elaborar o ser terapeuta pressupõe dedicação integral e permanente aos estudos. Uma relação afinada entre fundamentação teórica e fundamentação prática. A partir de onde as expressividades podem elaborar-se ao papel existencial de filósofo clínico.

Uma vocação autodidata é bem-vinda, assim como a produção de textos e artigos para compartilhar com colegas e professores. Percorrer clínicas, hospitais e manicômios em busca de aproximar o sonho da realização. Evidências de uma abertura interior na interseção com a vida.

A Filosofia Clínica costuma ser uma companheira ciumenta. Quer exclusividade e atenção por inteiro. Compartilhar seus estudos com a elaboração de dissertações e teses de mestrado e doutorado poderá dificultar significativamente o percurso do estudante.

O exercício de consultório se mostra como uma especialização em cada atendimento. Partindo de uma interseção em reciprocidade, a investigação dirige-se ao desconhecido das singularidades. Dedicando ao sujeito um compartilhar de alma leve para com suas autogenias.

Marie Beynon Ray escreve: “(...) ser a loucura não um episódio isolado numa vida, mas um modo de vida, que frequentemente vai desde o nascimento até a morte. Precisamos passar em revista toda a vida do doente, mesmo que se trate do ataque de uma doença infecciosa durante a infância.” (Médicos do espírito, 1965).  

A formação do filósofo clínico se inicia antes da especialização e prossegue bem depois da parte teórica. Circunstâncias únicas presentes na história de vida e estudos de graduação. Após a etapa teórica, os pré-estágios e a supervisão direcionam sua qualificação. Prosseguindo num contexto de formação continuada, os grupos de estudo se mostram eficazes. As publicações e demais espaços de interação e diálogo compõe um conjunto importante para melhorar ações clínicas.

As aulas são momentos insubstituíveis aos estudos. Possibilitam a diversidade investigativa e a troca. Olhar em perspectiva para a compreensão dos outros. Laboratório de convívio, crescimento e elaboração compartilhada ao vir-a-ser terapeuta. No entanto, as crises e obstáculos da formação parecem inevitáveis. Uma espécie de ensaio geral ao futuro exercício clínico do filósofo.  Atividade de cogestor nas crises e transformações partilhadas em consultório.

O momento de qualificação pessoal em pré-estágio constitui etapa indispensável à caminhada. Um tempo em que o estudante se experimenta conhecendo-se melhor. Transita por suas anterioridades. Investiga-se efetuando um trânsito por sua subjetividade. Qualifica-se nas clínicas didáticas. Busca familiarizar-se com sua estruturação quando em relação. Ponto de partida para aproximações em perspectiva com outros mundos.

Aprende-se com a escuta das falas e dos silêncios. Mediante olhares e percepções. Cheiros, temperos e sabores. Um indescritível que fica no ar. A energia de imprevisíveis mudanças. Uma relação em reciprocidade com as tormentas da alma. Feitiço em fase de crise na magia da terapia. Um ugar de colheita das matérias-primas para o exercício clínico do aprendiz de feiticeiro.

Jacob Bronowski ensina: “(...) o interessante é que se Erastus, com suas ideias sensatas, contrárias à mística, tivesse razão, a linguagem humana e toda comunicação entre os seres humanos, seria também impossível, porque, segundo ele, nada que sai de mim pode influenciar outra pessoa. No entanto, isso é exatamente o que faz o intercâmbio humano. O dom da imaginação é esse duplo movimento que manipula imagens na minha mente e as faz girar com uma espécie de força comunicativa que vai recriá-la na mente de outras pessoas; movimento que ocorre sempre que vemos uma obra de arte, lemos um poema ou falamos sobre um teorema.” (O olho visionário, 1978).    

Um pouco depois, a supervisão se oferece aos primeiros atendimentos. O aprendiz vai aprofundando leituras e práticas. Compartilhando dúvidas e inseguranças, fortalece e desenvolve suas expressividades e buscas. Nessa etapa já é terapeuta. A entrega do trabalho de conclusão é outro momento importante, onde as especialidades elaboram sua amarração teórica.  

Em Roberto DaMatta esse aspecto se destaca assim: “A importância do detalhe etnográfico, capaz de modificar todo um argumento verbalmente construído, e de descobrir como é fundamental o estudo consciente de certos problemas antropológicos. Descobri, então, que não bastava somente erudição (o fato de conhecer até a exaustão so autores e seus livros), mas que era preciso, antes de tudo, ‘saber’ a história do problema, como ele foi inventado como objeto de investigação, seus antecedentes e consequentes, o contexto do livro que expôs a teoria e seu autor.” (Relativizando – uma introdução á antropologia social, 2000).

Inexiste um mapa aos trajetos de crescimento pessoal em direção ao ser filósofo clínico. No entanto, algumas percepções constituem um padrão: não abreviar caminhadas, queimando etapas importantes como: leituras, aulas e estágios. Não desmerecer as crises de aprendizagem, uma companhia para a solidão compartilhada nos atendimentos. Alguns estudantes buscam através dos diplomas, registros e menções honrosas, uma autenticação para o ser terapeuta. Isso poderá valer tão pouco se a pessoa desmerecer suas circunstâncias de vida em interseção com o desenvolvimento do papel existencial. Os rituais de aprendizagem podem auxiliar. No entanto, parece inexistir legitimação longe dos singulares percursos de superação. Natureza dos talentos e aptidões em desdobrar-se no próprio sujeito.  

Tendo como ponto de partida as aulas, isso tudo prossegue bem depois do certificado “A”, através da formação continuada. Sem esquecer as pessoas! Essencial fonte de inspiração para a magia da vida acontecer.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – poéticas da singularidade”. Ed. E-Papers/RJ, 2007.

**Instagram: @helio_strassburger  

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