A espécie de texto que se tem em mente é uma singularidade. Sua estrutura pressupõe a conjugação, nem sempre linear, entre o horizonte discursivo do autor e sua competência em transgredir as páginas conhecidas. Um peregrino das palavras em busca da fonte onde nascem as intencionalidades.
Com o vocabulário comum, em
alguns casos, será possível realizar aproximações, noutros sequer tangenciar as
origens da expressividade: os exílios, desvãos, periferias e derivações. Ao
transcrever esses conteúdos, na parcialidade de um texto qualquer, é possível
entender a razão dos seus segredos serem indecifráveis por inteiro.
Num processo de escritura, sua
concepção descreve algo mais, tendo como ponto de partida uma mente repleta de
vírgulas, devaneios criativos, irreflexões. Esses escritos nem sempre serão
compreendidos numa só mirada. Seus deslizes, lacunas e desestruturas anunciam
algo por vir. São vestígios daquilo que não se consegue acessar num primeiro
instante. Uma estrutura assim pensada mescla sonho e realidade em inéditos
discursos existenciais. Há que se ter uma peculiaridade metodológica - borogodó
- para decifrar o chão de onde partiu e se desenvolveu.
Maurice Blanchot contribui:
“(...) Uma frase não se contenta com desenrolar-se de maneira linear; ela se
abre; por essa abertura, sobrepõem-se, soltam-se, afastam-se e juntam-se em
diferentes níveis de profundidade, outros movimentos de frases (...)”. (O livro
por vir, 2005, pág. 347).
Essa condição do autor pode
reapresentar eventos marginais, desconhecidos, esquecidos, em sua estrutura de
pensamento. Os inusitados usos da palavra ampliam as fronteiras do que se
conhece. Uma expressão utilizada num contexto, quando afastada de suas origens,
ao ser ela mesma já é outra.
Escrever é conjurar o vocabulário
conhecido noutras direções. Um saber com sabor de terra nova acolhe a mensagem
nas garrafas do náufrago. Sua condição, ao ampliar um foco de luz errante,
emancipa territórios, significa a linguagem dos recomeços. Sua alternância dos
métodos de leitura (analítica, fenomenológica, dialética...), evidencia um
conhecimento refém de suas crenças, atribuições, competências. Assim pode ser
legível esse lugar de exceção de onde o texto partiu.
Maurice Blanchot: “(...) A obra
exige que o homem que escreve se sacrifique por ela, se torne outro, se torne
não um outro com relação ao vivente que ele era, o escritor com seus deveres,
suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar vazio e
animado onde ressoa o apelo da obra.” (O livro por vir, 2005, pág. 316).
O segredo das palavras reside na
rasura da página em branco. Quando algo se escreve, atualiza o devir que o
legitima, para, logo depois, perseguir novos caminhos. Assim, a perspectiva da
literalidade como sentido único, se desconstrói. Seu saber conjuga-se em
enredos de realidade substitutiva.
Nesse sentido, os deuses da
escritura costumam ser cúmplices no desenvolvimento do espírito. Os achados nas
mais diversas fontes de inspiração e estilos literários, costumam adicionar
ingredientes à vida de cada um. A paixão dominante de ler e escrever alimenta o
fogo dos dias, aquece o frio das alturas, desaloja refúgios subjetivos. As
rotas para esse encontro, desconstroem a figura do escritor e do leitor
exilados em suas páginas.
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica e Literatura – Conversações”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2023.
**Instagram: @helio_strassburger
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