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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 32*

 

                                Qual síndrome te representa?

Um dia desses, pensando em assistir um jogo do Grêmio, sentado, confortavelmente, diante da tv, vejo - quase não acredito! - uma faixa em destaque, de frente para a transmissão das imagens, que dizia assim: “Gremistas na síndrome do espectro autista”.

Outro dia uma amiga mostrou sua medalha, conquistada numa maratona, a inscrição: “corrida da síndrome do espectro autista”. Na mesma direção, nessas coisas que surgem em quase todo lugar, apareceu a foto de uma menina com a camiseta escrita: “sou autista”, ela parecia feliz, dançava... Quem postou a foto foram os pais.

Qual psicopatologia (disfarçada de qualquer outra expressão) te representa? Escolhe, manda ver, te junta a multidão de desavisados!

Nos últimos meses é possível notar uma avalanche de propaganda nas mídias sociais e antissociais, divulgando cursos, palestras, seminários das abordagens da tradição psiquiátrica, psicanalítica, psicologias... nem a filosofia clínica escapou, em suas variantes de distorção.

David Cooper alerta: “A violência da psiquiatria só pode ser compreendida com base no seu dogma fundamental: se não compreende o que outro ser humano está a fazer, diagnostique-o! Nunca deixará de encontrar vítimas coniventes que farão o jogo. Mas começamos agora a cansar-nos desse jogo.”  (A linguagem da loucura, 1978. Pág. 101).

Cada vez mais se propagam as verdades da medicina do corpo, como a única possibilidade de acolhimento e compreensão do fenômeno humano. Como se esse fosse constituído somente por ossos, músculos, nervos, mãos, pés, órgãos internos... A farmácia da esquina e suas igrejas encontram os fiéis na hóstia da alienação.      

É antiga a proposta, de setores da ciência, em querer localizar o esconderijo da alma. Qual o recanto onde o espírito se abriga, ou como traduzir adequadamente a vida em suas múltiplas facetas, modos de aparecimento, representação, sensações, ideias, buscas, de onde vem, como se desenvolvem, qual sua estrutura?

Nesse cenário multifacetado, impregnado de jogos de cena, um novo paradigma, ao ser incompreendido, poderá ser condenado as fogueiras da ciência normal. Um saber-poder se desdobra em fabricar loucuras, síndromes, doenças a qualquer preço. Um dito popular ensina: “muito cuidado ao passar em frente ao consultório do psiquiatra, pois ele vai encontrar uma doença mental em você!”.

Uma dificuldade que se apresenta, especificamente em nosso país, é a escassez (ideológica) de recursos para a educação, desde seus fundamentos até a pós-graduação. Talvez a leitura de Nicolau Maquiavel em seu texto: O príncipe, ajude a entender essa espécie de coisa. Alguns anos atrás, quando era professor de Filosofia numa escola particular, num momento do intervalo para o cafezinho, o diretor afirmou: “nossa escola tem como diferencial a preparação de líderes, empreendedores, futuros gestores da sociedade...”. Na semana seguinte, sai desse lugar sem olhar para trás!   

Com David Cooper: “Razão e Desrazão são ambas maneiras de conhecer. A loucura é uma maneira de conhecer, outro modo de exploração empírica dos mundos tanto interior como exterior. A razão para a exclusão e invalidação da loucura não é puramente médica, nem estritamente social. É, como tentarei mostrar, política.”. (A linguagem da loucura, 1978. Pág. 153).

Cooper, esse médico psiquiatra, um dos líderes do movimento conhecido como antipsiquiatria, desenvolveu um conjunto de reflexões ao longo de sua clínica, que ajudam a entender sua sintonia existencial com os desvalidos, invalidados pela chamada ciência normal de sua especialidade e seus coadjuvantes, repletos de narrativas para enquadrar o fenômeno humano numa medida incabível ao seu ser singular.

Ao encontrar a abordagem da Filosofia Clínica - em 2025 serão 30 anos de dedicação exclusiva - vislumbrei um novo paradigma, para acolher e cuidar das pessoas em seus instantes de ressignificação existencial. Naquela época, morava em Novo Hamburgo, vinha a capital gaúcha de jipe (modelo Ford 1960), para as aulas no antigo Instituto Packter. Dediquei cada momento dos encontros de estudo, seminários, para aprender os fundamentos da nova teoria, depois na clínica pessoal, e aplicados na supervisão, nos atendimentos, na formação continuada.     

A propaganda, o marketing, a divulgação de novas e velhas ideias, constituem uma ferramenta poderosa, capaz de destacar eventos importantes e significativos de nossa condição humana em processo. Seu uso, ao ter um caráter ideológico (manipulador), produz consequências que poderão ser avaliadas - crítica e reflexivamente - com um distanciamento histórico.    

Aquele abraço!

*hs

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 31*

 
                                    

                              Sintonia existencial e novos paradigmas 

Existem tantos modelos de terapia quantas são as pessoas em busca de um ponto de apoio para suas questões existenciais. Com isso é possível entender sua diversidade: xamanismos, exorcismos, aconselhamentos, danças de cura, chás milagrosos, confessionários religiosos, psicanálises, psicologias, psiquiatrias, filosofias clínicas, e tantos outros rituais como proposta ao entendimento e cuidado do fenômeno humano.

Acredito que as abordagens terapêuticas, quando ofereçam um acolhimento e bem-estar aos seus integrantes, tenham a ver com a sintonia existencial (autogenia) dos envolvidos. Ressalvadas as influências do marketing, jogo de cena.      

Nos dias de hoje, impulsionados pela ideologia da propaganda (filmes, teatro, palestras, redes sociais, cursos acadêmicos, artigos de jornal, entrevistas, publicações) a liderança parece estar com a Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, em suas diferentes formas de apresentação. A repetição - via agendamento - desses modelos de intervenção nas mídias, reafirma a ideia (equivocada) de que essas metodologias detém a melhor resposta à crise existencial de todo mundo. Afinal, todo mundo é ninguém!

O esboço de uma nova abordagem terapêutica, conhecida como Filosofia Clínica, desde os anos 1990, iniciada com o trabalho e a pesquisa do filósofo gaúcho Lúcio Packter, vem contemplando uma fatia de pessoas diferenciadas, as quais encontram na nova abordagem um acolhimento compreensivo que suspeitavam existir, mas não sabiam onde encontrar.   

Um dos aspectos dessa nova concepção clínica, é a ideia de indeterminação (Werner Heisenberg), que se oferece em contraponto as generalizações e classificações das metodologias clássicas.

Fritjof Capra ensina: “O grande feito de Heisenberg foi expressar essas limitações dos conceitos clássicos de uma forma matematicamente precisa – que hoje leva seu nome e é conhecida como princípio de indeterminação. (...) O princípio de indeterminação mede o grau em que o cientista influencia as propriedades dos objetos observados pelo próprio processo de mensuração.” (Sabedoria incomum, 1988. Pág. 15).  

Esse pressuposto ajuda a entender o fundamento da singularidade com o qual a Filosofia Clínica trabalha, ao distanciar-se das abordagens de base DSM, suas tipologias e classificações a priori.

A contradição e o distanciamento não param por aí!

Os fundamentos do novo paradigma, encontram seus subsídios na Filosofia, como: fenomenologia (Merleau-Ponty), analítica da linguagem (Wittgenstein), hermenêutica compreensiva (Gadamer), representação de mundo (Schopenhauer), dentre outros, em íntima conversação com as práticas de consultório (hoje já são 30 anos, desde os primeiros atendimentos e turmas da formação clínica).  

A nova abordagem da Filosofia Clínica encontra seu chão numa convergência de momentos diferenciados na terapia. Tendo como ponto de partida os exames categoriais, a estrutura de pensamento e submodos, a qualidade da interseção entre o filósofo clínico e seu partilhante, é possível encontrar um caminho para qualificar o alcance das construções compartilhas na hora-sessão.

Em Capra: “Bateson costumava enfatizar que para descrevermos a natureza com precisão deveríamos tentar falar a língua da natureza.” (Sabedoria incomum, 1988. Pág. 64).

O filósofo terapeuta, inicialmente, ao acolher seu partilhante, cuida de sua própria estrutura de pensamento em interseção, para interferir minimamente (redução fenomenológica) na expressividade do outro sob seus cuidados. Depois disso atua para compreender sua linguagem em modo próprio (singular), em visitas autorizadas ao seu jardim subjetivo.

A busca por reconhecer o uso que o partilhante faz das palavras, seu sentido e direção, o contexto onde se desenvolvem, bem como a identificação da relação tópica estrutural determinante, vai concedendo ao filósofo clínico um constructo de matéria-prima para qualificar sua atividade. Nessa direção, será possível encontrar os procedimentos específicos para um partilhante, os quais, elaborados para uma determinada circunstância clínica, não poderão ser utilizados com outra pessoa. 

Fritjof Capra contribui: “Heisenberg mostrou que um elétron, por exemplo, pode surgir como uma partícula ou como uma onda, dependendo de como o observamos. Se fizermos ao elétron uma pergunta no plano das partículas, ele nos dará uma resposta no plano das partículas; se lhe perguntarmos algo no plano das ondas, ele nos responderá no plano das ondas.” (Sabedoria Incomum, 1988. Pág. 116).

Talvez essa informação contribua com a razão de se ter tantas terapias quantas sejam as pessoas, uma vez que a sintonia existencial de cada uma é singular. Sob muitos aspectos, refém de sua circunstância de vida, suas relações, o período histórico, as ideias, normas e leis de seu cotidiano, as verdades hegemônicas ao seu redor.

Assim, cabe ao filósofo clínico distanciar-se desse espírito de rebanho, num acolhimento aprendiz com a pessoa sob seus cuidados - caso a caso - para decifrar seu padrão autogênico, as alternativas que sua estrutura de pensamento oferece. Nesse sentido, cada um, de acordo com suas possibilidades, vai encontrando (na vida) um caminho para algo que lhe represente, onde sua expressividade não seja tratada como doença ou anomalia.   

Aquele abraço!

*hs   

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 30*

 

                  Quem interna quem? O último apaga a luz, por favor!

A obra: Escritos de Antonin Artaud, publicada pela editora LPM de Porto Alegre/RS em 2019, com organização, tradução e notas de Claudio Willer, oferece recortes de uma hermenêutica compreensiva, sob a ótica de um pensador singular.

Incompreendido por sua época, e, sob muitos aspectos ainda hoje, internado, tratado pela psiquiatria dos psicofármacos, eletrochoques, como se fora um bicho ameaçador, por suas ideias, atitudes, registrados em textos diferenciados.

Ao não submeter sua estrutura de pensamento ao olhar medíocre de quem ousou tratá-lo, é aprisionado e torturado com experimentos vários, propondo normalizar sua condição crítica, analítica, revolucionária.

O incômodo Artaud ao mundo de sua época, lhe custou a própria liberdade, uma vez que passou a maior parte da vida entrando e saindo de manicômios, onde a psiquiatria tentava ajustá-lo.   

Artaud ensina: “Há um ponto em vocês que médico algum jamais entenderá e é este ponto, a meu ver, que os salva e torna augustos, puros e maravilhosos: vocês estão além da vida, seus males são desconhecidos pelo homem comum, vocês ultrapassaram o plano da normalidade e daí a severidade demonstrada pelos homens, vocês envenenam sua tranquilidade, corroem sua estabilidade.” (Escritos de Antonin Artaud, 2019. Pág. 29),

Até encontrar a abordagem da Filosofia Clínica (versão inicial dos anos 1990), o que se tinha, com raras exceções, era o que descreve o pensador dos escritos. Desde 1970 conheço essa realidade, primeiro como acompanhante, depois como Filósofo Clínico. Inicialmente no sanatório Kaempf, rebatizado de Vida Nova, em Santa Cruz do Sul, hoje extinto, devido a lei de reforma psiquiátrica (lei antimanicomial 10216/2001). Depois na ala psiquiátrica do hospital universitário de Santa Maria, ainda o Hospital Espírita em Porto Alegre, e outros.

Uma peregrinação infindável em busca de cura, para a loucura de um de seus integrantes. Interessante notar que o diagnóstico se iniciava dentro de casa, na própria família, seja por ignorância ou interesse, aí se encontrava um personagem ideal (meu pai) para representar o desajuste familiar. Uma pessoa sensível, generosa, alegre, animada, algumas vezes revoltada, que gostava de viver e conviver. A psiquiatria, a família, a sociedade, transformou sua singularidade em vegetal, um pouco antes de partir.  

Com Artaud: “Foi assim que uma sociedade tarada inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas (...). A sociedade mandou estrangular em seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se (...) um louco é também um homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.” (Escritos de Antonin Artaud, 2019. Págs. 162 e 164).   

Não é raro encontrar na esteticidade seletiva, um caminho de tradução aproximada, para as fases de desestruturação subjetiva, algumas vezes até um pouco antes do acolhimento compreensivo, da interseção clínica dialogada, e construções compartilhadas.   

A analítica da linguagem em Wittgenstein ensina que o sentido das palavras pertence ao sujeito que fala, escreve, silencia. Os jogos de linguagem precisam ser compreendidos em sua fonte de originalidade e não fora. Uma hermenêutica que despreze essa característica fundamental da singularidade, se associa ao rol de torturas, distorções, experimentos psiquiátricos (sonoterapia, lobotomias, choques insulínicos...) e seus coadjuvantes, tão em voga, ainda hoje na sociedade, muitas vezes travestida de boas intenções, outras disfarçadas com novas nomenclaturas.    

Nesse sentido, se associam as ideias de Michel Foucault, em sua obra: “O nascimento da clínica”, onde ensina, dentre outras coisas, que conceitos como: cura, loucura, saúde, doença, são conceitos políticos.

Por outro lado, na mesma direção, existe um clima de reflexão crítica em torno da questão, onde profissionais da nova geração e alguns veteranos, começam (no âmbito da psiquiatria) a rever pressupostos, questionar tratamentos. Em casos raros, como a antipsiquiatria e a não-psiquiatria, rasgam diplomas, reinventam práticas cuidadoras, rumos existenciais. Mas isso não é para qualquer um!

Recordo uma cantiga: um louco incomoda muita gente, dois loucos incomodam, incomodam, muito mais...

Hoje em dia, os textos de Antonin Artaud são estudados e reverenciados, no mundo do teatro, cinema, como revolucionários, libertários, expressivos, um pré-requisito a formação de novos atores e atrizes.   

Aquele abraço,

*hs