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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 40*

 

                                   Onde você está quando se encontra? 

Das possibilidades para uma aproximação com o fenômeno da singularidade, se destaca a linguagem na qual o partilhante se expressa, por onde se diz, como e quando se rascunha existencialmente em relação aos princípios de verdade, com as pessoas de seu meio, consigo mesmo.

Em Filosofia Clínica, mais que usar a palavra singular de forma equívoca, distorcida, generalista, se oferece uma abordagem para acolher e compreender os meios por onde a pessoa tenta existir. Quais as origens, os deslocamentos de sua representação. De onde vem, para onde vai, onde se encontra, desencontra, reencontra, em outro lugar da mesma estrutura, a qual, sendo a mesma, já é outra. É possível a investigação aprendiz para uma tradução compartilhada desses instantes de vir a ser.   

À primeira vista, em busca de um entendimento de sua desestrutura, a pessoa costuma procurar amigos, familiares, os quais, na maioria das vezes, não conseguem entender o que se passa, qual o sentido das suas expressões, qual língua está falando. É comum, como proposta de algum controle e manutenção, qualificar a pessoa como descontrolada, desmiolada.

O referencial para uma condição aprendiz, tendo em vista o novo paradigma da Filosofia Clínica, é uma aproximação de cuidado e atenção a isso que se apresenta como um movimento precursor, de mudança de rota, inicialmente desencontrado de si para consigo mesmo. Um desses lugares onde o filósofo clínico atua para acolher, transitar, aprender os rituais dessa expressividade, tendo como mapa a estrutura de pensamento do partilhante.

Não é raro acontecer revisitas ao passado ou a um futuro incerto, ambos movimentos intelectivos em deslocamento longo, para tentar acessar o que se passa ou buscar um refúgio nalgum lugar seguro, longe dessas vertigens para fora de si.  

Heidegger compartilha: “Queremos ao menos uma vez chegar no lugar em que já estamos”. (A caminho da linguagem, 2004. Pág. 8).

No entanto, pode ser um sofrimento adicional encarar o dia a dia em um processo de não-ser, onde as crenças, companhias, lugares, cotidianos, multiplicam a sensação de desamparo, em meio as inéditas percepções, sensações, como algo novo ao próprio vocabulário em processo de reescrita.   

Um dos problemas de maior impacto, nesses momentos, é a internação involuntária, onde o alienista encharca seu paciente com psicofármacos (sossega leão), para conter essa dialética em busca de superar velhos endereços existenciais. Essa primeira consulta, a internação, a medicalização, costumam ser decisivos para o futuro da condição da pessoa, a partir de agora, um paciente psiquiátrico.

Existem muitas maneiras de se encontrar com esses instantes de caos precursor, talvez a mais significativa, seja o estudo preliminar de sua semiose, ou seja, por onde a pessoa se comunica consigo mesma e com seu entorno existencial. Aprender ou não aprender sua língua pode significar intervenções para distorcer sua singularidade em processo, mudando radicalmente o rumo dos atendimentos, significando a pessoa como partilhante ou em prognósticos de ser paciente.

Em Heidegger: “O estranho está em travessia. Sua errância não é porém de qualquer jeito, sem determinação, para lá e para cá. O estranho caminha em busca do lugar em que pode permanecer em travessia. ‘O estranho’ segue, sem quase dar-se conta, um apelo, o apelo de se encaminhar e pôr-se a caminho do que lhe é próprio.” (A caminho da linguagem, 2044. Pág. 31).

Outra vez recordo as lições de Parmênides e Heráclito, quando - há mais de 2000 anos atrás - defendiam suas teses sobre a permanência e a impermanência. Pelo menos duas grandes escolas disputam, ainda hoje, a posição de como abordar e cuidar do fenômeno humano em seus dias de crise de ressignificação pessoal, isto é, aquela que defende diagnósticos precisos, cristalizados, com base em definições bem ajustadas (psiquiatria e coadjuvantes) e aquelas abordagens com fundamentos de obra aberta, atuando de acordo com o fenômeno da singularidade (Filosofia Clínica e algumas Terapias Alternativas).

Nesse sentido, o discurso existencial do sujeito em vias de não-ser, pode ser freado ou trabalhado para ser aquilo que sua condição pessoal reivindica. Por aí, a vida persegue seus rituais, como se fôssemos os primeiros habitantes desse indecifrável (por inteiro) planeta em formas de existir. A ciência segue estudando, analisando, refletindo, a estrutura significativa desses eventos de transgressão, por onde a natureza - em ritmo e tempo próprio, concede sinais, pistas, rascunhos do que está por vir.

Não seria exagero defender a tese da Filosofia Clínica como um desses esboços para depois de amanhã, quando a categoria tempo e a multiplicidade de traduções, deixar a surpresa e o espanto filosófico de lado, para lhe conceder um rótulo ou distinção acadêmica. A partir daí, com definições acessíveis a uma sintonia de senso comum. 

Aquele abraço,

hs   

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Filosofia Clínica Agridoce 39*









    

                                  Quem fala naquilo que se diz?

Os relatos sobre um encontro consigo mesmo, em meio a uma floresta de distorções, freios existenciais, podem estar refugiados no lugar algum de nenhum lugar, ou seja, nas páginas amarrotadas e desprezadas dos seus devaneios, projetos, onde as memórias ficaram cristalizadas pela desconsideração dos princípios de verdade.

Veja-se um caso em recíproca de inversão: “Num dia a dia de múltiplos envolvimentos, aquilo que só você poderia ser e fazer, foi se apagando, esquecido de si na distorção de papéis existenciais.  

Ainda quando buscava ajuda nesse meio, encontrava conselhos e direcionamentos para se adaptar a lugares de onde procurava partir. Ao insistir nessa desarmonia no mundo do trabalho, na família, com os amigos, a desestruturação atingia seu grau máximo, necessitando de especialistas em desvios comportamentais e seus tratamentos de choque de realidade.    

Seu cotidiano assim descrito, se traduzia numa rotina sem sentido, para sustentar algo distante do seu melhor, isso você sabia, o que não sabia era a existência de uma abordagem que poderia auxiliar, em seu processo de reencontro consigo mesmo. Uma metodologia sem aconselhamentos, interpretações diagnósticas, prognósticas e o diabo a quatro sobre quem você deve ser, como deve se portar, o que deve comprar, quais remédios tomar, em quem acreditar.  

Num final de semana, ao encontrar - num lugar estranho - uma palestra sobre Filosofia Clínica e Literatura, você pôde experienciar algo novo, um acolhimento naquelas palavras estranhas, que pareciam fazer sentido, dialogando com partes esquecidas de sua própria estrutura de pensamento.

Aquelas expressões ativavam memórias distantes, do que um dia imaginava ser, fazer, acontecer, ora refugiadas em algum ponto das suas desconsiderações. Pareciam coisas que haviam ficado pelo caminho...”

A clínica do filósofo, por ter essa essência libertária - que muitos tentam aprisionar nos moldes de uma só versão - se aproxima desses instantes de crise para um decifrar compartilhado sobre os rituais de inquietude em vias de se tornar. Um aspecto é sua tez de acolhimento fenomenológico, hermenêutica compreensiva, analítica da linguagem - fundamentos filosóficos - ingredientes onde o espanto com algo inédito (a representação de mundo da pessoa), ao se descrever em linguagem própria, não é rechaçado como uma patologia, síndrome, desvio comportamental, mas um evento a reivindicar uma aproximação com sua lógica singular.

Cláudia Lage diz assim: “Máscaras, simulacros, onde forjamos uma realidade que nos diz mais do que a nossa. Disfarçados de outros, alcançamos a nós mesmos.” (Labirinto da palavra, 2013. Pág. 9).

Procedimentos como o vice conceito, a esteticidade seletiva, um roteirizar, podem ajudar esses ensaios de vida nova, por onde alguém se exercita, com a ajuda de subterfúgios contraditórios com seu cotidiano, em ensaios para reencontrar-se com suas possibilidades existenciais.  

Talvez assim, no tempo que ainda resta, com a força dos desajustados, se possa reencontrar os sonhos nas noites sem lua, nas páginas da literatura incompreendida, na vertigem de uma vida que não se vê, mas suspeita existir. Quem sabe até melhorar as coisas ao redor, amar como se não houvesse amanhãs. As poéticas da singularidade, quando encontram sua melhor versão, apreciam saborear uma porção improvável de paraíso.    

Cláudia Lage lembra Cortázar: “(...) nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas sim em estar de acordo com a sua visão literária.” (Labirinto da palavra, 2013. Pág. 64). 

Ao ser levado pelas propostas de ser bem-sucedido, na ótica dos princípios de verdade, uma pessoa pode desviar-se de sua condição de maior intimidade, passando a desempenhar atividades que possam lhe alcançar alguma recompensa na comunidade dos desavisados. Sendo reféns das mesmas verdades, seguem multiplicando velhos ensinamentos sem pensar.   

Para ser inteiro consigo mesmo, em meio a tanta distorção de sua expressividade, pode ser preciso navegar por águas desconhecidas, localizar e aprender a ler a geografia subjetiva de sua singularidade. Vivenciar as rotas de autodescoberta para um endereço existencial incomparável, onde ser sujeito de sua história não seja um crime ou pecado, punido com o fogo das classificações ideológicas.  

Aquele abraço,

hs