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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

sábado, 21 de outubro de 2023

O segredo das palavras*

A espécie de texto que se tem em mente é uma singularidade. Sua estrutura pressupõe a conjugação, nem sempre linear, entre o horizonte discursivo do autor e sua competência em transgredir as páginas conhecidas. Um peregrino das palavras em busca da fonte onde nascem as intencionalidades. 

Com o vocabulário comum, em alguns casos, será possível realizar aproximações, noutros sequer tangenciar as origens da expressividade: os exílios, desvãos, periferias e derivações. Ao transcrever esses conteúdos, na parcialidade de um texto qualquer, é possível entender a razão dos seus segredos serem indecifráveis por inteiro.

Num processo de escritura, sua concepção descreve algo mais, tendo como ponto de partida uma mente repleta de vírgulas, devaneios criativos, irreflexões. Esses escritos nem sempre serão compreendidos numa só mirada. Seus deslizes, lacunas e desestruturas anunciam algo por vir. São vestígios daquilo que não se consegue acessar num primeiro instante. Uma estrutura assim pensada mescla sonho e realidade em inéditos discursos existenciais. Há que se ter uma peculiaridade metodológica - borogodó - para decifrar o chão de onde partiu e se desenvolveu.

Maurice Blanchot contribui: “(...) Uma frase não se contenta com desenrolar-se de maneira linear; ela se abre; por essa abertura, sobrepõem-se, soltam-se, afastam-se e juntam-se em diferentes níveis de profundidade, outros movimentos de frases (...)”. (O livro por vir, 2005, pág. 347).

Essa condição do autor pode reapresentar eventos marginais, desconhecidos, esquecidos, em sua estrutura de pensamento. Os inusitados usos da palavra ampliam as fronteiras do que se conhece. Uma expressão utilizada num contexto, quando afastada de suas origens, ao ser ela mesma já é outra.

Escrever é conjurar o vocabulário conhecido noutras direções. Um saber com sabor de terra nova acolhe a mensagem nas garrafas do náufrago. Sua condição, ao ampliar um foco de luz errante, emancipa territórios, significa a linguagem dos recomeços. Sua alternância dos métodos de leitura (analítica, fenomenológica, dialética...), evidencia um conhecimento refém de suas crenças, atribuições, competências. Assim pode ser legível esse lugar de exceção de onde o texto partiu.

Maurice Blanchot: “(...) A obra exige que o homem que escreve se sacrifique por ela, se torne outro, se torne não um outro com relação ao vivente que ele era, o escritor com seus deveres, suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar vazio e animado onde ressoa o apelo da obra.” (O livro por vir, 2005, pág. 316).

O segredo das palavras reside na rasura da página em branco. Quando algo se escreve, atualiza o devir que o legitima, para, logo depois, perseguir novos caminhos. Assim, a perspectiva da literalidade como sentido único, se desconstrói. Seu saber conjuga-se em enredos de realidade substitutiva.

Nesse sentido, os deuses da escritura costumam ser cúmplices no desenvolvimento do espírito. Os achados nas mais diversas fontes de inspiração e estilos literários, costumam adicionar ingredientes à vida de cada um. A paixão dominante de ler e escrever alimenta o fogo dos dias, aquece o frio das alturas, desaloja refúgios subjetivos. As rotas para esse encontro, desconstroem a figura do escritor e do leitor exilados em suas páginas. 

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica e Literatura – Conversações”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2023.

**Instagram: @helio_strassburger 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A Filosofia Clínica e o robô de escuta*

O site: www.mittechreview.com.br publicou em janeiro/2022: “Terapeutas podem usar Inteligência Artificial para melhorar os resultados das terapias”. O artigo foi assinado pelo: MIT- technology review.

Inicialmente a proposta é de auxílio ao trabalho clínico do profissional da área PSI. Trata-se de uma pesquisa para saber como a terapia funciona. Uma verificação das linguagens utilizadas na hora clínica. Segundo o artigo: “busca identificar as expressões e devolutivas de resposta mais eficazes no tratamento de diferentes distúrbios”. Oferece uma “automação dos princípios ativos da terapia”.

O projeto se desenvolve em universidades como: Washington e Pensilvânia (EUA), numa parceria da IA – inteligência artificial com a psicologia. Diz assim: “Busca-se desvendar os segredos de porque alguns terapeutas obtêm melhores resultados que outros (...) a tecnologia funciona semelhante a um algoritmo de análise de sentimentos”.

Prossegue afirmando: “a IA converte a linguagem de uma sessão em código de barras (...) busca mostrar quanto tempo foi gasto em terapia construtiva versus bate-papo geral.” Na sequência: “(...) desenvolver um software de terapia para ajudar terapeutas a padronizar as melhores práticas. Propõe monitorar os atendimentos. (...) o algoritmo aprendeu a abordagem da TCC (terapia cognitivo comportamental)”. O artigo fala em: “proporções, taxas, métricas, validação... (...)” indica: “devemos seguir protocolos para evitar improvisos. (...) podemos entrar numa era de medicina de precisão em psicologia e psiquiatria (...)”. A investigação deixa escapar - nas entrelinhas - que as terapias da tradição estão despreparadas para cuidar da vida humana.

A ideia não é nova. Em meados dos anos 1990, em Porto Alegre, um mestrando em análise de sistemas ofereceu algo semelhante. Seu software prometia “diminuir o tempo gasto nos atendimentos”. Segundo ele: “aliviaria o trabalho” dos Filósofos Clínicos. Após algumas entrevistas, o jovem profissional entendeu que nosso método era diferente. Ficou contrariado pelo fato de sua ideia não dar conta da Filosofia Clínica, basicamente, por se tratar de uma abordagem singular, oferecendo uma terapia para cada pessoa, sem a camisa de força das tipologias, classificações, hermenêuticas apriorísticas.  

Nos dias de hoje, ao ver essa hipótese - em nova maquiagem - se reapresentando, com o enorme investimento para viabilizá-la, percebo - mais uma vez - o quanto a Filosofia Clínica é diferenciada. Sob muitos aspectos ininteligível - mesmo a espionagem tecnológica - ao pessoal que procura em blogs, textos da internet, palestras, subsídios para montar suas estratégias. Por outro lado, a partir de uma robotização da hora-clínica, essa iniciativa deverá acelerar a desconstrução das metodologias de base PSI. 

Um olhar atento pode pensar: como replicar eventos singulares, incomuns, como os desdobramentos da hora-sessão em Filosofia Clínica numa linguagem de algoritmos? A nova abordagem terapêutica, ao atuar com pressupostos a posteriori, reivindica um profissional que tenha borogodó (mescla de aptidão, talento, sensibilidade...) para exercitar uma clínica aprendiz. Esse conceito por si só, já interdita a possibilidade de se mapear, criar protocolos, estatísticas, métricas de validação, devido ao caráter inédito dos atendimentos.

O novo paradigma oferece múltiplos fatores que escapam a uma lógica de robôs de conversa. Seu constructo metodológico oferece atenção e cuidados singularizados aos partilhantes, encontrando em seu próprio discurso existencial, uma referência viva, única, irrepetível. Não se presta a ser refém de softwares, algoritmos, código de barras. A pesquisa americana, ao buscar um padrão nas melhores técnicas, engessa e robotiza o cuidado com humanos. Talvez essa proposta sirva a países de vocação colonial.  

A transcrição da linguagem utilizada pelo filósofo clínico com um partilhante, não irá servir para outro atendimento, pois além de cada pessoa ter um uso próprio do seu vocabulário, a qualidade da interseção não é a mesma, e o filósofo efetua ajustes singularizados de acordo com os desdobramentos da hora-sessão. Um software não consegue imitar essa modalidade terapêutica, pois teria de ser um humano com borogodó para intervir em um processo não linear.

Essa tese de padronização comportamental através de um código de barras, para acompanhar sujeitos em seus momentos de ressignificação existencial, além de desumana e perversa, visa a manipulação e o controle da vida humana. Sob muitos aspectos, expõe a fragilidade das técnicas de base PSI.

Noutras palavras, a partir dessa estratégia denominada: “robô de conversa”, as metodologias que trabalham com a bíblia DSM serão reféns da IA e sua programação para mediar atendimentos. A pesquisa americana deverá mostrar, após alguns anos ‘faturando alto’ com suas engenhocas, se tratar de mais uma investida para ‘ganhar tempo e dinheiro’, multiplicando espíritos de rebanho. No caso de bem-sucedida poderá ser o fim da raça humana como espécie.

*Hélio Strassburger

@helio_strassburger (Instagram)

**Texto publicado na edição de outono da revista da Casa da Filosofia Clínica.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Pretéritos Futuros*

"Mas a função do filósofo não será a de deformar o sentido das palavras o suficiente para extrair o abstrato do concreto, para permitir ao pensamento evadir-se das coisas?”

                                                                         Gaston Bachelard                                            

A concepção de um esboço para traduzir ideias em atitudes poderia significar a vida em retrospectiva de amanhãs. Um lugar onde se alcançaria a fonte da imaginação a inundar a vida com seus originais.

A linguagem do futuro pretérito busca superar a antítese entre o vivido e sua descrição. Existem pessoas aprisionadas nalguma página de suas vidas. Em uma dialética entre passado, presente e futuro, nem sempre conseguem realizar uma desconstrução de qualidade, capaz de alterar aquilo que já passou. Não é comum transitar com leveza, desenvoltura entre um lugar e outro de sua historicidade.

Partindo do viés singular, numa percepção reflexiva da realidade plural, é possível desconstruir as ideias conhecidas. Permitir o acesso ao novo vocabulário, dado atual sobre as antigas verdades. Nesse sentido, exercitar a flexibilidade existencial pode ajudar, deixando-se surpreender com os eventos de transgressão.

É possível desfocar a atenção, permitir outros movimentos à intencionalidade. Um ensaio para anunciar instantes de reencontro, uma nova versão existencial. Entrementes, o ponto de vista subjetivo costuma ser impactado por aquilo que vê, ouve, sente, vivencia, adaptando roteiros em uma lógica de porvir retroativo.

Talvez ao reconsiderar as miragens do instante, possa-se conceber a aproximação de um embate da ilusão de continuidade com sua ruptura pelo viés do fato novo. Na representação de cada um, a especulação sobre os novos endereços existenciais pode reajustar reminiscências.

Com as lógicas do improvável, através da palavra fora de si, é possível descrever exílios, realizar utopias, acolher singularidades. Um roteiro pela natureza incrível de todas as coisas, por onde se insinua uma arte de desvendar horizontes, resgatar dialetos marginais.

Nesse vão das idas e vindas, a conjugação revive um tempo que ainda não chegou. Uma semiose dos múltiplos jogos de linguagem. Esta aprendizagem com a voz dos rascunhos sugere um quase delírio. Numa estrutura fugaz, refugiada nas entrelinhas do cotidiano, é possível ser a incompletude a essência de viver.

*Hélio Strassburger in “A palavra fora de si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.

domingo, 1 de outubro de 2023

Introdução*

Os textos a seguir constituem uma noção e um convite à Filosofia Clínica. São constituídos de anotações e reflexões de um consultório em seus dias de atenção à vida. Notas para atualizar o discurso do novo método. Uma aproximação com a incompletude dos processos existenciais em cada pessoa, num vislumbre de seu desenvolvimento na atividade clínica.

Existem fundamentos que se integram à terapia do filósofo, como a fenomenologia dos discursos existenciais, pelos quais o partilhante descreve-se em versão própria, num convívio com as rotinas do inesperado; a hermenêutica compreensiva; o exercício da reciprocidade com os jogos de linguagem internados em cada um, permitindo acessar a singularidade em seus dias de processo; bem como o estruturalismo, a considerar e incluir a relação das partes com elas mesmas e o todo que a constitui. Uma dica para acessar a chave de leitura da estrutura de pensamento é identificar pro onde a pessoa se diz, qual sua semiose preferida.

A reconstituição de determinados eventos passados, com base numa leitura atual, concede ao sujeito partilhante a possibilidade de reescrever sua história. Cuida-se, entre outros aspectos, da reconstrução de alguns momentos significativos, em que o ser filósofo clínico se multiplica no acolhimento e na superação das contradições, tecendo seus dias numa interseção aprendiz. Sua prática oferece uma clínica da não obviedade. Ao acolher as vírgulas e reticências da singularidade, leva em conta as narrativas de cada versão. Se tivesse de escolher uma proposta de trabalho, numa terapia libertária, esta seria a busca do partilhante em recomeçar, para devolver o protagonismo a um sujeito, até então, distante de seu melhor. As tramas discursivas de consultório, no ir e vir das interseções, possuem a condição para realizar inúmeros deslocamentos, oferecendo ao partilhante outras vivências – uma estética para resgatar ângulos esquecidos, desconhecidos de si mesmo.

Seu eixo metodológico reconhece e acolhe as tratativas de emancipação das poéticas da singularidade, refugiadas em cada discurso existencial. Antes de localizar alguém existencialmente, pode ser preciso lidar com a inquietude dos momentos preliminares. São ensaios para algo indecifrável por inteiro, em que o filósofo clínico convive com uma estrutura de fenômenos multifacetados.

Ao filósofo compete aperfeiçoar sua aptidão de sentir e perceber os rastros do instante precursor, nos quais se apresentam as originalidades sob seus cuidados. Esse esboço compartilha análises, reflexões, críticas e algo mais sobre sua atividade. Talvez um diário de incompletudes, em que suas narrativas apresentam íntima relação com as práticas de consultório.

Com essa abordagem, a polifonia das crises anuncia sua transição entre um e outro padrão autogênico. Constitui o fenômeno da desrazão em um território privilegiado ao fazer terapêutico do filósofo. Esse estado de coisas costuma se apresentar numa dialética singular, em que o partilhante se desloca e experimenta-se em muitas direções conhecidas e/ou desconhecidas, num processo de reedição pessoal, conduzindo e atualizando sua memória aos dias atuais, formando uma espécie de renascimento a cada novo dia.

A abertura proporcionada pela via da interseção realiza um encontro de qualidade imprevisível, em que o vocabulário existencial pode ampliar-se. Ao decifrar a matéria-prima com a qual irá trabalhar, o filósofo, pela via da construção compartilhada, terá a possibilidade de localizar o território em que realidade e ficção se integram.

Seu constructo metodológico, tendo como ponto de partida a redução fenomenológica, vislumbra uma região de aspecto estranho. Quando um filósofo descreve essa observação investigativa, está propondo compreender e dialogar com o contexto partilhante. Nesse sentido, a nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de seu ser sujeito em ação.

Este texto não é autobiográfico, embora seja reconhecível o traço da autoria em suas crenças, buscas e representações no curso de seu discurso. Reivindica, isso sim, oferecer uma atualização de leituras, contribuição aos estudos e o desenvolvimento do novo modelo terapêutico. Essa versão é a de quem teve o privilégio de conhecer e conviver com seu nascimento, por meio dos primeiros atendimentos, das críticas, de preconceitos, da conjugação dos sonhos e da sua proposta para oferecer algo diferenciado: a superação do entendimento cristalizado pelas instituições oficiais.

Talvez a dificuldade de alguns especialistas acadêmicos de entender a abordagem da Filosofia Clínica resida no grau do seu óculos epistemológico, o qual costuma embaçar diante de novidades muito próximas do olhar. Ao visitar a perspectiva de alguns mestres universitários, é possível compreender suas dificuldades com os novos paradigmas, e isso pode ser compreendido por um exemplo: o novo método acolhe, em sua matriz teórica e prática, filosofias tão díspares e – aparentemente – contraditórias, como a Fenomenologia e a Analítica da Linguagem. Logo, é impossível entender esse fundamento tendo a visão ajustada para reconhecer sempre as mesmas verdades.

Um caminho para acessar os universos singulares, é desenvolver a atitude de espanto diante dos fenômenos que se apresentam, observando e investigando, para saber mais. É, também, compreendê-la como uma abordagem clínica em deslocamento, que se move por várias etapas do constructo metodológico, associando fundamentos que, teoricamente, seriam irreconciliáveis, se entendidos como gavetas. Na prática da Filosofia Clínica, se conjugam horizontes na dialética das sessões.

Fico pensando nas dificuldades que eu teria se tivesse optado por alguma outra formação clínica, talvez impregnada de classificações, tipologias, agendando patologias, a partir de uma leitura predeterminada que desqualifica conteúdos inéditos, presentes nas narrativas das pessoas, pelo foco de certo saber que, antecipadamente, já tem seu eixo interpretativo definido, distorcendo o fenômeno humano singular.

Em Filosofia Clínica se (re)conhece e há a prática de algo diferente, ou seja, a matéria-prima com a qual se trabalha é encontrada no contexto partilhante, a partir das visitas autorizadas aos seus jardins subjetivos. Um lugar inicialmente desconhecido, no qual o filósofo precisa ajustar seu padrão autogênico e ultrapassar os limites da primeira impressão, aguçando sua escuta, visão e percepção de base fenomenológica para acessar os jogos de linguagem de cad partilhante, qualificando a interseção em busca de sua originalidade e reverenciando a prosa poética desses pretextos desmerecidos. Assim é possível constatar e compreender o ser inacessível como uma das qualidades da subjetividade, classificada pelas terapias da tradição nalguma forma tipológica, desvirtuando a atividade clínica.  

Nesse vislumbre da clínica do filósofo, há a descrição de um papel existencial singular, o qual se ajusta - caso a caso – nos eventos de consultório. Um lugar de acolhimento às pronúncias daquilo, até então, desmerecido, que revela um protagonismo de si mesmo com os outros e, dos outros, com outros. Através da interseção cuidadora se esboça certa elaboração, pela qual se faz possível a ressignificação pessoal. E é importante o preparo para uma convivência com o inesperado dos atendimentos, semelhante a encontros em qualquer lugar, em um dia qualquer.

A proposta terapêutica esboçada nestas páginas se traduz em um lugar de acolhimento à errância, à desestruturação pessoal, como possibilidade de reescrever caminhos e integrar o sujeito com o seu melhor. Significa qualificar a intervenção cuidadora, em um chão oferecido pelo próprio partilhante. Me agrada saber que tenho meios, via construção compartilhada, para contribuir com a caminhada existencial das pessoas, seja pelos recursos identificados em sua estrutura de pensamento ou elaborados para seu melhor funcionamento pessoal. Posso encontrar nas palavras pronunciadas, caladas, uma fonte de múltiplas expressões, pela qual se estabelece a cumplicidade aos rascunhos do partilhante. Um desses subterfúgios em que a vida ensaia seus inéditos.

A clínica pode ser reconhecida como um espaço para compreender uma incompletude discursiva, ou uma crise, características importantes aos recomeços. As pessoas aprisionadas em manicômios ou em outra forma qualquer de interdição, possuem uma estranha habilidade para rasurar o quadro da normalidade, muitas vezes pelo simples fato de existir. Uma nova referência e um novo contexto podem ajudar as pessoas exiladas do convívio social, oferecendo uma zona de conforto existencial mais próxima de si próprias, e que consiga que exercitem sua condição singular irrepetível.

Nesse sentido, o livro reapresenta alguns fundamentos do novo paradigma, desde os primeiros anos até hoje. Os atendimentos iniciais, as repercussões nos princípios de verdade, as críticas e superações, os aprendizados, são essenciais para entender seu nascimento e desenvolvimento. As páginas a seguir propõem qualificar práticas e contribuir com a pesquisa e os processos de conhecimento. Nelas se pode, dentre outras coisas, decifrar os fenômenos da atividade clínica, em que eu e o outro, pela via da interseção, constituem algo mais.

É importante lembrar de que não se aprende Filosofia Clínica com textos (de fonte duvidosa) na internet, os quais estimulam equivocidades e desconhecimento, ou seja, um não saber. O convívio entre professor-auno é indispensável ao processo de ensino-aprendizagem, e as boas ferramentas da tecnologia podem ser uma base aos estudos.  

A proposta, aqui, é diminuir o número de ignorantes diplomados. Para além das aulas da especialização, após a graduação em Filosofia, destaca-se a adição de leituras, filmes, grupos de estudo, colóquios e cafés filosóficos clínicos, terapia pessoal e supervisão. E esta concepção é realidade na Casa da Filosofia Clínica.

Com esses textos, são oferecidos alguns manuscritos recuperados das múltiplas interseções entre calmaria e tempestades. Uma descrição de nuances de acolhimento e cuidado com o ritmo das estações de cada um, seus desdobramentos, as singularidades e a inédita condição de redigir seus originais. Quiçá seja um convite para as pessoas saberem mais sobre a clínica do filósofo.

Boas leituras e releituras!

*Hélio Strassburger in Introdução a obra: “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.   

** Instagram: @helio_strassburger