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Você está no espaço Descrituras. Aqui encontrará alguns textos publicados, inéditos e outros esboços de minha autoria. Tratam-se de manuscritos para estudo e pesquisa. Desejo boas leituras.

historicidade das publicações

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Para saber aquilo que se conhece*

  

“Se duvido, penso. Penso logo existo”

                   René Descartes 

Um dos aspectos mais importantes da epistemologia são as derivações, contornos e sua aptidão de inventar e manter interseção com o mundo ao seu redor. Com eficácia de multiplicar desenlaces e engendrar novas formas de racionalidade, destaca-se ao descrever e analisar os eventos que a integram.

Sua investigação analítica transita entre a matéria-prima da experiência compartilhável e a organização interna de cada pessoa. Para entendê-la melhor a introspecção e as vivências podem ajudar. Nesse tópico é possível entender o pensar sobre as coisas a partir dos desdobramentos da estrutura do próprio pensar. Uma reflexão a descobrir algo mais sobre si mesma.

Até os simulacros da realidade podem ser desvendados por essa via precursora do conhecimento. Sua expansão acontece na relação entre atitudes especulativas, dúvidas e as provisórias certezas.

No esboço sobre si, o viés racional desliza para contornos desconhecidos. Muitas vezes as restrições são oferecidas pela própria subjetividade em busca de saber mais. Essa atitude, quando determinante, elabora âncoras para se deslocar com alguma segurança pelo universo ao seu redor.

Seu enfoque, embora possua um caráter de maior abstração, revela um observador atento às tratativas de discriminar com objetividade os fenômenos do viver. Sua atenção evidencia perspectivas inusitadas ao próprio olhar.

No entanto, suas conjecturas podem restringir os esforços para descortinar o que lhe ofusca a visão. Kant na “Crítica da razão pura” compartilha essa faceta do humano: “não possuo nenhum conhecimento de mim como sou, mas apenas de como apareço a mim mesmo”. (Crítica da razão pura, 1983, pág. 95).

O pensamento possui arquiteturas por onde a singularidade se objetiva para se familiarizar consigo mesma, encontra subsídios na linguagem cotidiana e propõe capturar as múltiplas facetas, para reconhecer o mutante da janela em frente.

Nas hermenêuticas para identificar e registrar as tramas discursivas, sua natureza se refugia entre devaneios de segurança, comprovação, onde uma lógica de ver para crer costuma valer mais. Uma vida inteira pode ser vivida na predominância desse tópico estrutural. Sua disposição atenta, embora parcial, sobre o próprio funcionamento, lhe atribui uma perspicácia de ser provável.

Ainda quando inexplicável ao próprio olhar, refere dúvidas, elenca hipóteses e ensaia experimentações. Rituais em conformidade com a matriz determinante do entendimento e sensibilidade. Necessita realizar escolhas e explicar o mundo com a régua sagrada dos próprios juízos. Aproxima-se com reverência dos fatos inexplicáveis.

Para Schopenhauer essa questão assim aparece: “(...) o conhecimento, em geral, faz ele mesmo parte da objetivação da vontade considerada nos seus graus superiores, que, aliás, a sensibilidade, os nervos, o cérebro são, do mesmo modo que nas outras partes do ser orgânico, a expressão da vontade considerada nesse grau de objetividade. (...) a representação que daí resulta é igualmente destinada ao serviço da vontade como meio para chegar a um fim (...)”. (O mundo como vontade e representação, 2001. Pág. 185).

É vastíssimo e nem sempre possível averiguar corretamente o território da Filosofia. Mesmo com algumas igrejas a reivindicar para si a fé cega na razão discursiva, àquela parece se divertir aod escortinar sempre novos pontos de vista.

Assim a brisa agradável não seria uma complexidade difícil de entender, mas aproximaria ideia e sensação, para conceder sabor e cor às coisas ao redor. Nesse sentido, seu devir também aponta uma interminável combinação das incógnitas e esconderijos exilados em cada um. O ar distante da postura ensimesmada parece desconhecer as armadilhas da própria certeza. Acaba encontrando aquilo que já sabia existir.

Ernst Cassirer sustenta: “A tarefa do conhecimento consiste em refletir e reproduzir a essência das coisas”. (A filosofia das formas simbólicas, 2001. Pág. 188).

Sei viés de cegueira, muitas vezes, não consegue ver diante de si mesma. Aprecia destacar a contradição e os erros das outras verdades e, ao inspecionar o próprio aparato, pode não reconhecer as diferenças entre os imbróglios subjetivos e a vida lá fora. Sua análise costuma incorporar protocolos de repetição para discriminar e orientar seu mundo. As leituras e releituras devem ter coerência, sensatez e método.

Sua teia argumentativa se expõe para anunciar e corrigir desacordos. Essas influências costumam surgir em tópicos como: raciocínio, discurso, termos agendados e pré-juízos. Em Merleau-Ponty é possível outro olhar: “O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente, que esteja contido em meu contato com ele”. (O visível e o invisível, 1999. Pág. 41).

O esclarecimento contido nessa forma de pensar aprecia descrições minuciosas, fundamentação e coerência retórica. Ao observar p funcionamento e o resultado de seus registros, é possível interpretar melhor a própria estrutura.

A racionalidade embriagada pelo excesso de si mesma pode se desconcertar exatamente por ter razão. Uma espécie de cegueira tópica a se estruturar nos desatinos da própria visão, a qual descobre aquilo que já suspeitava existir.

A consciência das coisas pode elaborar múltiplos disfarces. Quase sempre constitui um vocabulário próprio, nem sempre possível de traduzir. Ao estar à deriva de si mesma sua coerência e sensatez podem explodir em mil pedaços, esparramando indícios para outros caminhos.

O discurso ideologizado aprecia destituir a singularidade do sujeito para aprisioná-lo na incabível universalidade. Ao tentar incluir tudo na ótica de regra e exceção, comprova o desconhecimento sobre seus limites estruturais.  

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Editora Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.

**Instagram: @helio_strassburger

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Literatura e singularidade***

Ao tecer algumas considerações sobre o fenômeno da leitura, se destaca a interseção entre autor, leitor. A natureza desse envolvimento se apresenta na especificidade de um encontro, inédito a cada página. Os desdobramentos desses achados, prosseguem no cotidiano leitor, o qual, regressando de suas visitas ao enredo da obra, sendo o mesmo já é outro.   

Escrever sobre uma fonte de originais e a diversidade de leituras, propõe uma reflexão sobre a vida de cada um, o que permanece e aquilo que se modifica, no contato com um livro. Que estranha sintonia faz o leitor escolher um texto?  Quando alguém o destaca numa biblioteca ou livraria, a partir de uma indicação, prefácio ou orelhas, delimita, sob muitos aspectos, o que poderá encontrar.   

Em Rubem Alves: “Tinha de ser uma palavra mágica, pois ela tinha de ter o poder de trazer à existência aquilo que não existia.” (Lições de Feitiçaria, 2003).   

Uma obra literária, pode oferecer conteúdo para elaborações de longo alcance. As cenas de um livro, costumam invadir o dia a dia de seus leitores. A literatura oferece uma via de acesso a existência incomum. Numa exploração compartilhada entre autor e leitor, é possível vislumbrar uma singularidade em vias de reescrita. 

As tramas da narrativa convidam a uma percepção de si para si mesmo. Acolhendo ou refutando ideias, um texto instiga a pluralidade de movimentos intelectivos. A experiência da leitura, oferece uma integração entre real e irreal, destacando aquilo que já existia como possibilidade.   

Ricardo Piglia recorda Borges: “Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê”. (O último leitor, 2017). 

A interseção da literatura com a singularidade, retira sua matéria-prima do encontro do leitor com o texto. A leitura, na vida de cada pessoa, se apresenta como opção as lógicas de contenção da expressividade. Em Filosofia Clínica, contraditória com a ditadura das tipologias, a camisa de força dos psicofármacos, a caneta alienista; o conceito de singularidade encontra um método para sua abordagem, tendo como referência a noção de que cada pessoa é um ser único, irrepetível. 

As narrativas de um texto oferecem ao leitor, rotas de acesso a sua farmácia interior. Nesse sentido, as práticas literárias podem significar uma terapia da libertação. Um desacordo com o olhar pré-determinado a enxergar delírio e loucura, onde se ensaiam projetos existenciais incompreendidos. 

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica e Literatura – Conversações”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2023. 

**No Prelo.


sábado, 9 de setembro de 2023

O Texto e a Vida*

Em uma obra de essência inacabada, a pluralidade discursiva, nem sempre coerente e recheada com algum tipo de fundamentação, exibe capítulos de uma subjetividade em vias de acontecer.

Nessa arquitetura de palavras, a versão dos rascunhos se inicia na multidão improvável dos sentidos sem tradução. Por esse não-lugar se alternam pronúncias da voz na palavra escrita. Um apurado senso de irrealidade parecer tomar conta da estrutura narrativa.

Ao (re)nascer de cada pessoa uma nova obra se inicia. As lógicas da incompletude ampliam as chances para descrever o infindável movimento da vida. Sua eficácia institui novos parágrafos existenciais e se oferece como possibilidade inadiável de reescritas.

A autoria, em sua singularidade, esboça um cotidiano de páginas inéditas. A letra parece querer anunciar, desvendar, transgredir cotidianos em roteiros de inconclusão. Uma estranha alquimia ressoa no desajuste das entrelinhas. Como uma literatura que se esboça aos sons do silêncio, das dúvidas sobre a expressividade dos eus possíveis.

O paraíso onde a linguagem se desenvolve é um imenso território que aguarda. Seu dicionário de páginas em branco é um chão para compor o que vier. Nessa arquitetura de alegorias se insinuam outras paragens, como a ilusão das noites a brincar os dias.

Uma poesia interminável se esparrama nas páginas vividas em porvir. A reflexão especulativa tenta imaginar os dialetos impronunciáveis. O sobressalto do texto refugiado no cotidiano se esboça numa estética quase ilegível. Seus manuscritos apontam vestígios de algo mais ao integrar sim e não. A literalidade, embora não diga tudo, realiza uma aproximação com a perspectiva das fontes. As derivações ampliam versões subentendidas para visualizar utopias.

A textura desses testemunhos se oferece ao nascer sem palavras. Em dialeto próprio refere seus exílios num presente difuso. O percurso assim mencionado aprecia descrever, em termos de intimidade, a paisagem desmedida pelos deslocamentos. A interseção entre o texto e a vida acena novos refúgios ao teor discursivo. Nessa página impregnada de originais, autores e leitores reescrevem sua história.

*Hélio Strassburger in “A Palavra Fora de Si – Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem”. Ed. Multifoco/RJ. 2017.   

**Instagram: @helio_strassburger

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Prefácio

Esta obra é uma descontinuidade das ‘poéticas da singularidade’. Busca tecer críticas, provocar reflexões e insinua caminhos para a desconstrução das práticas ideologizadas a partir das tipologias do desatino. Compartilhar vivências de atendimentos, impressões e pesquisas sobre a raridade existencial da pessoa em refúgios de internação, sejam eles dentro ou fora dos muros do manicômio. Lugar onde a palavra usual encontra dificuldades para chegar a manter interseção com a epistemologia da loucura.

A singularidade desfigurada pelas intervenções da tradição mostra, antes de mais nada, a aptidão de exclusão das analíticas da correção discursiva. Ao se levar em consideração a distorção, o erro e as contradições do sujeito, reivindica-se o estudo do entorno da pessoa em crise: o contexto, família e o psiquiatra, que são coadjuvantes com poder (jurídico) para transformá-lo em paciente, ao prescrever suas drogas de lógica normal.  

No saber desajustado dos delírios, algo mais de anuncia entrevistas de tradução. Sua fonte de inspiração ao permanecer incógnita, também se anuncia nas tramas de excesso.

O éthos da loucura encena múltiplos personagens, entremeios de rasuras da normalidade. Diante das pretensões da razão classificatória um viés excepcional assume papéis intermináveis. A internação contrariada, a distorção das originalidades, o saber farmacológico e o alienista fundamentam a exclusão representada pela instituição sanatório.

Ao expor, com sua grande sensibilidade, os absurdos da sociedade que produz sua loucura, o louco a supera outra vez. Seu discurso de transbordamento possui encantos de língua marginal. Aprecia o não-ser como ponto de partida aos esconderijos, até então desmerecidos dentro de si.

A indústria da loucura encontra apoio significativo nas práticas de alienação, onde o consumo a qualquer preço impõe suas regras. As relações passam a ser mediadas pelas bugigangas ao redor. Aptidão de esquiva à introspecção e ao autoconhecimento. Sua característica principal é a insinuação, constantemente remarcada, de alguma forma de ganho, sucesso ou desempenho diferenciado.  

Como a maioria das pessoas pode passar uma vida inteira na periferia de si mesma e a conviver com um ilustre desconhecido, fica relativamente fácil cooptá-las para as verdades ocultas nas relações sociais de objeto para objeto.

No entanto, os rastros da palavra maldita atualizam silêncios, lacunas e transgressões de paradoxo. Devir descontinuado a ensaiar rotas ao ser extraordinário. A imprecisão dessas teias discursivas realiza um trânsito aprendiz pelos ditos exóticos da razão delirante.

Para permanecer como subjetividade indecifrável, o sujeito muitas vezes, desloca-se nalguma forma de silenciar. Um território novo e sem vocabulário conhecido esparrama vestígios de multidão. Antecipa uma epistemologia dos excessos. As coreografias desdobram-se no intermédio invisível da sanha diagnóstica.

Ao lugar inacessível para a sintaxe conhecida, uma incompletude discursiva refere indícios de profecia. Fonte de inspiração desmedida aos esconderijos distantes da normalidade.

A folia do fenômeno carnaval pode desfazer vertentes de uma só verdade. Ensaios de natureza mutante desdobram-se na imensidão dos exageros. O ser errático dos devaneios revela interstícios sem correspondência na realidade conhecida. Saber absurdo nas evasivas de introspecção. Aparente desconexão entre nada e tudo de qualquer coisa. Suas exceções convidam para enxergar através dos escombros da historicidade.

Episódios inesperados apreciam o esboço em caricaturas de aparência incrível. Um querer dizer nem sempre é capaz de transgredir os dialetos conhecidos. Ao visar exaltado da atitude delirante o mundo pode se mostrar alterado.

Uma vasta região segue indescritível, em uma zona de sombra e luz. A lógica das diferenças, ao tentar descrever as desconhecidas rotas, prenuncia disparates de invenção.

Assim, é impreciso resgatar o louco de seu exílio, pois não se trata de considerá-lo a partir do ponto de vista normal, mas de respeitar seu viés existencial em uma busca onde todos se encontram. O fato de não compreender sua língua, rituais ou desvario não justifica sua prisão e tratamentos de reconversão.

A natureza absurda desses abismos sugere outras fontes de razão, mesmo quando desmerecida pela medicina conhecida. A internação involuntária, a camisa-de-força do preconceito e as práticas com base no DSM-IV (manual psiquiátrico americano) encontram ecos de evasiva ao desconsiderar segredos encobertos na desrazão.   

Assim, o caótico instante, as alucinações ou a falta de jeito podem ter diagnóstico de alguma patologia. Sempre que isso ocorre, o discurso estrangeiro do alienista procura traduzir o mundo incompreensível do outro sujeito em linguagem própria. Ao classificar como insanidade seu deslumbramento com a vida, institui refúgios em caricaturas de coisa nenhuma.

Aos desatinos contidos na racionalidade, nem sempre basta seguir suas prescrições. Para ela, os extraordinários presentes da vida singular surgem como confusão, desajuste ou dúvida. Talvez a interseção positiva consiga ressignificar esses instantes de improvável recomeço.

A pessoa exilada em si mesma pode restar a expressão dos monólogos com suas paredes. Em meio ao denso labirinto ampliado pela farmácia do hospital, as vozes e visões atualizam a sobrenatural descontinuidade dos dias. Na aproximação com os outros de sua aldeia, o devir da loucura pode surgir como genialidade, desajuste ou simulacro.

A Filosofia Clínica, como paradigma de obra aberta, aprecia a conversação aprendiz, com a trama maldita nas subjetividades. Quem sabe a compreensão dos excepcionais discursos possa revelar outras verdades?

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – diálogos com a lógica dos excessos”. Editora E-Papers/RJ. 2009.

**Instagram: @helio_strassburger